Em sete anos, 12.500 enfermeiros foram trabalhar para o estrangeiro
São os países com mais enfermeiros por habitante, como o Reino Unido, a França e a Alemanha, que vêm recrutar profissionais a Portugal.
Gabriel, 28 anos, estava efectivo num hospital, mas só conseguiu começar a passar mais tempo com a família em Portugal depois de ter ido trabalhar para Angola. Sofia, 27 anos, ainda tentou encontrar emprego cá, mas percebeu que o seu problema era “não ter aquilo a que se chama cunha”. Cansada de entregar currículos sem receber resposta, enviou um email para uma agência de recrutamento e numa semana responderam-lhe. Trabalha em Inglaterra desde 2011.
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Gabriel, 28 anos, estava efectivo num hospital, mas só conseguiu começar a passar mais tempo com a família em Portugal depois de ter ido trabalhar para Angola. Sofia, 27 anos, ainda tentou encontrar emprego cá, mas percebeu que o seu problema era “não ter aquilo a que se chama cunha”. Cansada de entregar currículos sem receber resposta, enviou um email para uma agência de recrutamento e numa semana responderam-lhe. Trabalha em Inglaterra desde 2011.
Sandra, 29 anos, foi para um hospital na Alemanha há dois anos e meio, depois de um curso intensivo de alemão, pago pela unidade de saúde. Tem um namorado alemão e vem de três em três meses a Portugal. Eduardo, 31 anos, até conseguiu emprego cá no fim do curso, mas não lhe davam possibilidade de progredir na carreira. Em Londres, o hospital paga-lhe formação profissional no horário de trabalho.
Gabriel, Sofia e Sandra e Eduardo são apenas quatro casos pescados num mar de histórias de enfermeiros que emigraram desde 2009. São milhares por ano. Apesar de difícil de contabilizar com rigor (há países que não disponibilizam os números), a debandada parece imparável.
Há um dado que permite perceber a magnitude do fenómeno: desde 2009 até Setembro deste ano, foram 13.752 os licenciados que pediram à Ordem dos Enfermeiros o certificado de equivalência de que necessitam para poderem exercer noutro país. Nos últimos três anos, são quase três mil pedidos por ano. Alguns podem desistir e ficar em Portugal, mas a maior parte acaba mesmo por emigrar, até porque aquilo que os espera cá é muitas vezes o desemprego ou um emprego precário.
A Ordem dos Enfermeiros estima que cerca de 12.500 terão emigrado desde 2009, um “êxodo” que é lamentado pelo bastonário porque saem profissionais que fazem cá muita falta (Portugal tem um rácio de enfermeiros de 6,2 por mil habitantes bem abaixo da média da OCDE: 8,6).
Pouco conhecido apesar de ser muito mediatizado, o fenómeno é aprofundado no livro Vidas Partidas – Enfermeiros Portugueses no Estrangeiro, da autoria de Cláudia Pereira, investigadora do Observatório da Emigração, do CIES (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia) do Instituto Universitário de Lisboa. O livro, que inclui os relatos de muitos enfermeiros e vários estudos sobre o tema, é apresentado esta quinta-feira em Lisboa.
Desemprego e desmotivação
Primeiro, um aparente paradoxo: habitualmente são os países com um maior número de enfermeiros por habitante, como o Reino Unido, a Alemanha e a França, que vêm cá recrutar profissionais. São países que contratam estrangeiros para suprir lacunas até porque os seus profissionais também emigram para outros países que pagam salários mais elevados, como os Estados Unidos (no caso dos ingleses) e a Suiça (no caso dos alemães).
Mas por que razão começaram a emigrar tantos enfermeiros portugueses nos últimos anos? No caso do primeiro país recrutador, o Reino Unido, a explicação é simples. Desde 2010, quando o governo conservador de David Cameron colocou obstáculos à contratação de profissionais de países de fora da União Europeia, foi necessário reforçar os esforços de recrutamento no Sul e no Leste da Europa.
Sem poder recorrer aos enfermeiros da Índia e das Filipinas, que até então predominavam, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) britânico e as agências de emprego começaram a recrutar enfermeiros nos países do Sul e Leste da Europa. Ora este fenómeno coincidiu com a recessão económica em Portugal e as severas restrições económicas no SNS, que levaram à desmotivação profissional de muitos enfermeiros, não só os mais jovens, mas também os veteranos, explica a investigadora, que é docente no ISCTE, em Lisboa.
Aos factores que “puxam” a ida para o estrangeiro – a partir de 2008 o número de enfermeiros à procura do primeiro emprego disparou, enquanto o recrutamento estrangeiro acelerou –, juntam-se os que “empurram” a saída, como a impossibilidade de progredir profissionalmente, os cortes no salário e a escassa comunicação com as chefias. A vontade de emigrar para conhecer outro país é, aliás, pouco referida. A saída funciona mais como “um escape para o desemprego e as condições precárias em Portugal”, sintetiza.
À pressão internacional para recrutar enfermeiros junta-se o facto de os portugueses serem dos poucos na Europa que têm uma licenciatura de quatro anos e a experiência prática em estágios desde o primeiro ano. “A formação e a componente prática distingue-os”, acentua. Com as escolas a formarem entre 3000 a 3500 novos profissionais por ano, para muitos estudantes, a hipótese de emigrar é equacionada logo no primeiro ano, perante a diferença “gritante” entre as condições oferecidas no estrangeiro e a realidade laboral em Portugal.
O resultado é um movimento de saída que começou por crescer exponencialmente para se fixar agora em mais de dois mil por ano. Pelas contas de Cláudia Pereira, que excluem os países que não têm ou não revelam dados (como a Irlanda, o Luxemburgo, a Arábia Saudita), a emigração de enfermeiros em 2013 e 2014 corresponde a cerca de 2% da emigração total do país.
Foram trabalhar para o estrangeiro 2366 profissionais, em 2013, e 2278, no ano passado. Para se ter uma ideia dimensão do "êxodo", basta dizer que “entre um terço e metade dos recém-licenciados pediu a declaração para poder emigrar”, conclui.
Apesar de preferir esperar mais alguns anos para afirmar que estamos a assistir “a um momento histórico”, por se tratar de um volume de emigração de um sector profissional específico “sem precedentes”, Cláudia Pereira acredita que “quase de certeza assim será, porque o volume [de saídas] é contínuo e muito elevado e os emigrantes já se estão a enraizar”.
O importante, agora, é perceber quais são as implicações para o sistema de saúde português do facto de este não conseguir os enfermeiros nacionais. “O problema não é estarem a sair. É estarem a sair quando não o querem e não estarem a entrar [outros enfermeiros em Portugal]”, reflecte a investigadora.
Para o alto comissário para as migrações, Pedro Calado, a emigração dos enfermeiros é sobretudo uma evidência da “corrida global pelo talento” que hoje se observa a nível internacional. A grande novidade, defende, é que actualmente saem também “os que escolhem emigrar”.