O que fazer com este incrível “corrector ortográfico” dos genes?

É rápida, barata e o seu uso experimental está a difundir-se a grande velocidade pelos laboratórios de todo o mundo. Mas há quem receie que nova técnica possa um dia vir a ser utilizada para gerar bebés “pós-humanos”.

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Cortar a molécula de ADN humano no sítio certo para curar uma doença pode estar ao alcance da genética DR

Na mesma semana em que decorre nos Estados Unidos (de segunda a quarta-feira, 1 a 3 de Dezembro) uma cimeira internacional onde peritos de mais de 20 países se debruçam sobre as potenciais implicações médicas, éticas e sociais de uma nova técnica de "edição" genética, cientistas anunciam na revista Science que conseguiram ultrapassar um dos maiores obstáculos técnicos que ainda limitavam a precisão deste autêntico “corrector ortográfico” dos genes.

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Na mesma semana em que decorre nos Estados Unidos (de segunda a quarta-feira, 1 a 3 de Dezembro) uma cimeira internacional onde peritos de mais de 20 países se debruçam sobre as potenciais implicações médicas, éticas e sociais de uma nova técnica de "edição" genética, cientistas anunciam na revista Science que conseguiram ultrapassar um dos maiores obstáculos técnicos que ainda limitavam a precisão deste autêntico “corrector ortográfico” dos genes.

Esta coincidência torna sem dúvida ainda mais premente, para alguns especialistas, a necessidade de definir recomendações quanto ao uso adequado desta técnica. Porquê? Porque, entre outras coisas, ela poderia um dia permitir a geração de bebés “feitos à medida” – e talvez até “pós-humanos”, isto é, com características genéticas "melhoradas".

O método tem um nome complicado e pouco sexy: CRISPR-Cas9. Mas por detrás desta árida designação, está uma nova e poderosa técnica de manipulação dos genes que poderá mudar para sempre a maneira de fazer genética.

A nova técnica, co-inventada, em 2012, por Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia, e pela francesa Emmanuelle Charpentier, do Instituto Max Planck de Berlim, permite essencialmente “editar” o ADN, alterando e corrigindo genes-alvo, com uma facilidade e uma precisão que até agora nunca tinham estado ao alcance da ciência.

“Não é preciso ser profissional para piratear genomas”, lia-se no início da semana numa notícia no site da revista Nature. Esta tecnologia fez com que alterar o ADN fosse “tão fácil e barato que já há biólogos amadores a experimentá-la em garagens reconvertidas em laboratórios”.

Tesoura molecular
Mais precisamente: utilizando uma enzima chamada Cas9 – uma “tesoura molecular” proveniente da bactéria Streptococcus pyogenes –, acoplada a um bocadinho de ARN (molécula semelhante ao ADN), tornou-se possível penetrar nas células vivas e levar a Cas9 a cortar o ADN em qualquer sítio previamente escolhido e determinado pelo bocadinho de ARN, que funciona como um “guia” para a Cas9.

“É um pouco como um canivete suíço que corta o ADN num sítio preciso e que pode ser utilizado para introduzir toda uma série de alterações no genoma de uma célula ou de um organismo”, explicou Emmanuelle Charpentier, citada pela agência de notícias AFP.

A nova técnica pode ser aplicada tanto às plantas como aos animais e ao ser humano. E, ainda segundo esta cientista, “uma das aplicações potenciais mais importantes será a de permitir novas abordagens terapêuticas contra certas doenças genéticas humanas”.

Mas acontece que, para além de servir para alterar o ADN de algumas células do corpo de um doente, a técnica também poderia ser utilizada para alterar o genoma de embriões ou de gâmetas humanos (ovócitos e espermatozóides), afectando assim toda uma linha de descendência por aí em diante.

Tratar-se-ia então de uma manipulação genética dita da linha germinal, muito mais radical do que aquilo a que se costuma chamar “terapia genética” e cujo objectivo é tratar ou curar a doença de uma dada pessoa.

Ora, justamente, as preocupações relativas ao uso da CRISPR-Cas9 surgiram quando, há uns meses, cientistas chineses anunciaram na revista Nature que tinham aplicado a técnica para modificar o ADN de dezenas de embriões humanos, de forma a “editar” um gene cujas mutações provocam uma doença do sangue, a beta-talassemia, potencialmente mortal.

Os embriões utilizados naquela experiência não eram viáveis e nunca teriam podido dar origem a uma criança, mas isso bastou para muitos vislumbrarem potenciais escolhos éticos e sociais derivados da aplicação da técnica.

Prudência ou arrojo?
Deve ou não este tipo de experiência ser por enquanto banido – ou deve ser permitido em moldes ainda por definir? A aceitabilidade deste tipo de manipulação genética para fins puramente terapêuticos não parece estar realmente em causa, desde que seja segura – o que ainda nem sequer é certo, diga-se de passagem.

Seja como for, a urgência da situação deve-se, aos olhos de muitos especialistas, a dois aspectos principais. Por um lado, à falta de unanimidade na comunidade científica sobre as utilizações adequadas da técnica. Assim, por exemplo, num artigo publicado esta quarta-feira na Nature, o conhecido geneticista George Church, da Universidade de Harvard (EUA), centra-se na necessidade de "editar" a linha germinal justamente para ajudar a prevenir a transmissão de doenças hereditárias. E que, visto que já existe a proibição de utilizar técnicas não validadas no ser humano, os investigadores deveriam ser encorajados a continuar a estudar esta tecnologia no quadro das estritas regulamentações existentes. “Proibir a edição da linha germinal humana poderia travar a investigação médica de mais alta qualidade e ao mesmo tempo tornar a prática clandestina”, escreve este cientista.

Mas este argumento prende-se, por sua vez, com o segundo aspecto que alguns especialistas consideram preocupante: o facto de não haver dois países com a mesma legislação na matéria – se é que ela existe. Nos EUA, por exemplo, embora o financiamento público da experimentação com embriões humanos esteja proibido, vários governos estaduais permitem a sua realização com fundos privados. E em Portugal, embora a lei permita a experimentação com embriões humanos para fins de investigação médica, os projectos científicos têm de ser aprovados caso a caso pela autoridade competente e a sua potencial utilidade terapêutica tem de ser indiscutível.

Mas na China, na Irlanda ou na Índia, explica ainda a notícia já referida no site da Nature, as directivas são simplesmente “impossíveis de fazer cumprir”. Os participantes na cimeira – organizada em conjunto pela Academia Nacional de Ciências e a Academia Nacional de Medicina dos EUA, pela Academia de Ciências chinesa e pela Royal Society britânica –, esperam, aliás, que ela forneça a oportunidade de começar a criar linhas orientadoras internacionais.

Voltando aos receios de alguns especialistas, num outro texto na edição desta quarta-feira da Nature a co-inventora da técnica, Jennifer Doudna, reitera que, embora a proibição total da investigação nesta área possa efectivamente afectar o desenvolvimento de futuros tratamentos, é preciso delinear um “caminho prudente” a seguir.

“A 'edição' da linha germinal humana com vista à geração de humanos com genomas modificados não deveria ir para a frente nesta altura”, escreve esta cientista, “em parte devido às suas consequências sociais desconhecidas, mas também porque a tecnologia e o nosso conhecimento do genoma humano simplesmente não estão prontos para o fazer de forma segura”.

Precisão muito maior
Entretanto, a tecnologia, essa, deu um passo de gigante, segundo os resultados que deverão ser publicados na quinta-feira, no site da Science, por Feng Zhang, do Instituto Broad do MIT e Harvard (EUA), e seus colegas.

Acontece que, até aqui, um dos maiores obstáculos técnicos da CRISPR-Cas9 era o facto de poderem surgir “cortes” do ADN em locais imprevistos – tornando o método potencialmente perigoso para a saúde (nomeadamente, gerador de cancros).

Mas, agora, a equipa de Feng Zhang arranjou uma forma de diminuir drasticamente o número desses “tiros" ao alvo errado. Como explica em comunicado o Instituto Broad, estes cientistas descobriram que bastava alterar três aminoácidos (componentes de base das proteínas e portanto das enzimas) dos cerca de 1400 aminoácidos que compõem a enzima Cas9 da bactéria Streptococcus pyogenes para o número de cortes errados passar para níveis quase indetectáveis.

Os autores pensam que foi o facto de substituir esses três aminoácidos, com cargas eléctricas positivas, por aminoácidos electricamente neutros que fez o truque. A nova enzima, que baptizaram eSpCas9 – a Cas9 do S. pyogenes “reforçada” (enhanced em inglês) está a ser “imediatamente colocada à disposição dos investigadores do mundo inteiro” pela equipa, salienta ainda o comunicado.

Isso não impede, porém, Feng Zhang, que também participa na cimeira, de se mostrar prudente. “Esperamos que o desenvolvimento da eSpCas9 ajudará a resolver algumas das preocupações dos participantes, mas não a vemos, de modo algum, como uma bala mágica. A área está a progredir rapidamente, mas ainda temos muito para aprender antes de podermos considerar aplicações desta tecnologia na clínica médica.”