Um Governo sem tempo para errar

Os últimos dias deram muitas razões de alegria aos democratas. Não, não digo às pessoas de esquerda. Digo aos democratas. Àquelas pessoas que acreditam que a soberania reside no povo e que todos os cidadãos, todos sem excepção, são iguais em direitos e devem ser livres para exercer esses direitos e para beneficiar dos seus frutos. Àquelas pessoas que acreditam que a liberdade é um valor universal e que pertence a todos por igual e não apenas aos que têm mais rendimentos, um nome de família mais ilustre, mais instrução ou mais qualquer outra coisa.

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Os últimos dias deram muitas razões de alegria aos democratas. Não, não digo às pessoas de esquerda. Digo aos democratas. Àquelas pessoas que acreditam que a soberania reside no povo e que todos os cidadãos, todos sem excepção, são iguais em direitos e devem ser livres para exercer esses direitos e para beneficiar dos seus frutos. Àquelas pessoas que acreditam que a liberdade é um valor universal e que pertence a todos por igual e não apenas aos que têm mais rendimentos, um nome de família mais ilustre, mais instrução ou mais qualquer outra coisa.

Depois de um Governo onde a desigualdade foi transformada em valor supremo, onde nos tentaram convencer de que a educação devia ser distribuída conforme a origem de classe dos estudantes, que a cultura apenas devia servir para benefício dos ricos, que o desenvolvimento do país exigia que se aumentassem as desigualdades salariais porque aí estava o segredo da competitividade, que a posição de Portugal na União Europeia devia ser a de um subalterno dos países mais poderosos, que a segurança no desemprego, na doença e na velhice dos cidadãos apenas podia ser garantida a quem tivesse um pé-de-meia considerável no banco, pôr um ponto final nessa iniquidade não pode ser visto senão como um sinal de esperança pelos democratas.

O grande motivo de alegria é pois o fim de um Governo de patriotas de lapela e colaboracionistas no coração que se dispunha a destruir alegremente o país, pilhando o património que pudessem, destruindo o Estado e humilhando os trabalhadores, aumentando a dívida pública e recusando-se a defender o país nos organismos internacionais para não indispor os poderes.

Outro motivo de alegria é o programa do Governo do Partido Socialista, onde o combate ao empobrecimento, ao desemprego, a defesa dos serviços públicos e a aposta na educação, na investigação e na inovação ocupam um papel central. É curioso que os senhores antiliberais que se chamam a si mesmo “liberais” para fingir que prezam a liberdade, mas que apenas defendem a liberdade dos poderosos explorarem os mais frágeis, nunca vieram a terreiro dizer que a pobreza e o desemprego eram intoleráveis porque reduziam a nada a liberdade de escolha dos cidadãos.

Outro motivo de alegria - aqui, principalmente para os cidadãos de esquerda - são os acordos de incidência parlamentar celebrados entre os PS e os partidos à sua esquerda para viabilizar o Governo, o programa e a governação socialista.

Estes acordos não deveriam ser apenas motivo de satisfação para as pessoas de esquerda porque eles significam algo que todos os democratas deveriam prezar: o fim do famigerado conceito antidemocrático de “arco da governação”, que defendia e pretendia incutir no espírito dos cidadãos a ideia segundo a qual alguns partidos possuíam um direito divino a exercer a governação e que outros deveriam para sempre ficar relegados à oposição, numa espécie de coro sem poder; e o fim de uma tradição de acção política por parte dos partidos à esquerda do PS baseada na crítica e no protesto mas que só raramente era submetida à prova da realidade. A entrada do BE, do PCP e do PEV para o clube dos partidos que podem participar na governação - como manda o direito, a democracia e a decência em relação a todos os partidos com assento parlamentar - significa que, pela primeira vez na história da democracia, a reserva de ideias onde mergulham as raízes da governação é mais rica do que antes e permite, por isso, encontrar melhores soluções.

Agora que o Governo está em funções e que tivemos uns dias para celebrar, entramos na fase mais séria da acção política. Sabemos todos que os riscos são imensos: a nossa economia está tão frágil como antes do XIX Governo de Passos Coelho; as nossas finanças estão ainda mais frágeis (apesar da propaganda); as reformas estruturais necessárias (justiça, administração pública, energia, inovação, formação profissional, etc.) não foram feitas e apenas se procedeu, com esse nome, à redução dos salários e à precarização do trabalho; a fragilidade dos bancos é maior; a situação económica e financeira da Europa está mais frágil; o ambiente internacional mais agitado. O que nos espera é difícil e será provavelmente duro. Como cidadãos, o que nos cabe é exercer o dever da maior exigência cívica que este país já viu em relação ao Governo de António Costa. A nossa responsabilidade é - ao contrário da deselegante descarga de fel de Cavaco Silva e da irresponsável oposição sistemática prometida pelo PSD e pelo CDS - garantir ao novo Governo toda a lealdade e toda a cooperação mas nenhuma condescendência, nenhuma complacência. Não temos tempo. Este Governo vai ter de governar bem em tempos difíceis e isso também depende de nós, da exigência que demonstrarmos, da vigilância que exercermos, das críticas que fizermos, dos debates que promovermos.

Uma das circunstâncias que me dão maior confiança neste Governo é, curiosamente, uma que preocupa alguns comentadores: a sua dependência parlamentar do BE e do PCP. A mim, essa vigilância dá-me confiança e espero que, com ela, o PS possa mostrar o melhor de si.

jvmalheiros@gmail.com