Metade da colecção Miró já pode ser classificada se o novo Governo quiser
Das 85 obras de Joan Miró (1893-1983), 41 completam agora os dez anos em Portugal, podendo assim ser classificadas sem a autorização dos proprietários, as sociedades Parvalorem e Parups, que sempre se opuseram à protecção legal das peças.
Menos de uma semana depois de ter tomado posse, o novo ministro da Cultura, João Soares, terá em mãos o dossier Miró. Este mês de Dezembro, 41 das 85 obras de Joan Miró na posse do Estado desde a nacionalização do Banco Português de Negócios (BPN) — e que o Governo de Passos Coelho quis vender no ano passado em leilão na Christie’s de Londres — completam os dez anos em Portugal. Podem, assim, ser classificadas como de interesse nacional sem ser necessária como até aqui a autorização dos proprietários, a Parvalorem e a Parups, sociedades criadas para abater a dívida do BPN.
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Menos de uma semana depois de ter tomado posse, o novo ministro da Cultura, João Soares, terá em mãos o dossier Miró. Este mês de Dezembro, 41 das 85 obras de Joan Miró na posse do Estado desde a nacionalização do Banco Português de Negócios (BPN) — e que o Governo de Passos Coelho quis vender no ano passado em leilão na Christie’s de Londres — completam os dez anos em Portugal. Podem, assim, ser classificadas como de interesse nacional sem ser necessária como até aqui a autorização dos proprietários, a Parvalorem e a Parups, sociedades criadas para abater a dívida do BPN.
O caso tem ainda dois processos pendentes em tribunal, levantados pelo Ministério Público, que defende, exactamente, a classificação e manutenção das obras em Portugal e que já tiveram como consequência o cancelamento do leilão em Londres. Foi, aliás, com base no cruzamento dos dados do processo com o catálogo da leiloeira que o PÚBLICO apurou quais as obras que já estão há dez anos em Portugal. Neste conjunto está, por exemplo, Femmes et Oiseaux (Mulheres e Pássaros), de 1968, obra que foi anunciada como uma das estrelas do leilão cancelado e que foi avaliada entre os quatro e os oito milhões de euros.
Desde que esta venda em leilão foi anunciada no final de 2013, o Partido Socialista (PS) tem também defendido a inventariação e eventual classificação das obras de arte e a sua manutenção em Portugal, uma posição que não se alterou, segundo as deputadas Gabriela Canavilhas e Inês de Medeiros, ouvidas agora pelo PÚBLICO.
O director do Museu Colecção Berardo, Pedro Lapa, não tem dúvidas que algumas das peças terão de ser protegidas legalmente: “Estas obras têm de ser classificadas”. Lapa defende que a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) não pode agora repetir o que fez no Verão, quando não classificou quatro obras deste conjunto por considerar tratar-se de peças menores. Nestas 41 obras que agora completam os dez anos em Portugal há peças “importantíssimas”. Lapa foi dos poucos especialistas em Portugal que chegou a ver a colecção, no seu caso a convite do então presidente do BPN, José Oliveira e Costa.
“Estamos numa fase nova, há novas intenções, é tempo de isto ser tudo equacionado”, defende o director do Museu Berardo.
Contactado pelo PÚBLICO, o novo ministro da Cultura não quis comentar o caso, por ter acabado de chegar à tutela. Mas há um ano, quando este caso explodia, João Soares não ignorou o que se passava. Na sua página pessoal do Facebook, foram várias as publicações que partilhou a dar conta da posição do PS em relação às obras.
No dia em que o leilão foi cancelado pela leiloeira, a 4 de Fevereiro de 2014, Soares partilhou mesmo a foto da pintura Femmes et Oiseaux com a seguinte legenda que dizia citar de um amigo: “Nem sabem tratar do que lhes caiu no colo!” E acrescentava ainda a posição de Luís Raposo, então presidente da comissão nacional do Conselho Internacional de Museus (ICOM), que considerava a decisão de vender estas 85 obras como “um erro muito grave de política cultural”.
“A posição do PS foi sempre que esta colecção devia ficar em Portugal e será essa a posição que o novo Governo vai tomar”, defende Gabriela Canavilhas, garantindo que o Partido Socialista não mudou de ideias por agora estar no poder. “Parto do princípio que o actual Governo terá uma posição diversa do anterior e por isso esta matéria deixa de me preocupar porque tenho a certeza que esta colecção passará a ser uma prioridade”, continua a deputada socialista, lembrando que a decisão de classificar ou não estas peças, pelo menos estas 41 obras, “já não compete aos ‘proprietários’ e passa a ser da competência da DGPC, que terá agora orientações diferentes daquelas que tinha no anterior Governo.”
Quando fala dos proprietários das obras, a Parvalorem e a Parups, Canavilhas faz questão de os colocar entre aspas por entender que as obras são do Estado. Este é, aliás, o argumento do Ministério Público (MP) nos dois processos que ainda correm em tribunal: as empresas que querem vender as obras são entidades públicas e, por isso, os seus bens, obras de arte incluídas, também são públicos. Já Francisco Nogueira Leite, que preside às duas sociedades, defende que, apesar de serem públicas, as empresas se regem pelo direito privado.
A deputada Inês de Medeiros é mais cautelosa nas palavras, mas garante que a posição do PS não mudou. “A prioridade agora é perceber exactamente onde é que estão as obras, como estão as questões em tribunal. Só se podem tomar decisões com base em dados que sejam credíveis. Em relação a este assunto, sempre tivemos grande dificuldade no acesso à informação”, conta a deputada socialista. Medeiros defende a inventariação da colecção antes de qualquer outro passo: “Primeiro, a inventariação; depois, a classificação total ou imparcial. Só depois, em função disso, é que podemos perceber o que se faz às obras.”
“Não duvido que o novo ministro irá ter uma postura completamente oposta àquela que teve o anterior executivo”, diz Canavilhas, lembrando que no programa de Governo para esta legislatura vem explícita essa preocupação e vontade.
Quando, em Maio, António Costa apresentou o projecto de programa eleitoral para o seu partido, a colecção Miró não foi esquecida. Num dos pontos dedicados à Cultura, lia-se que a acção do PS no sector passaria pela manutenção destas obras em Portugal. Agora, no programa de Governo, desapareceu a referência explícita a Miró, mas promete-se uma intervenção mais abrangente com “um levantamento rigoroso das colecções de arte que inicialmente estavam na esfera privada e que actualmente se encontram em risco de extradição definitiva, para eventual consolidação das colecções de arte contemporânea nos museus portugueses”.
Uma colecção?
Além do óleo de 245 cm de altura por 124 cm de largura pintado em 1968, Femmes et Oiseaux — os pássaros são um tema recorrente na obra de Miró e, segundo o catálogo do leilão, a pintura é um exemplo “poético e importante da liberdade de execução e da audácia” do artista nos anos 1960 —, Pedro Lapa destaca ainda a série de pinturas em platex que Miró fez no Verão de 1936. Há pelo menos três destas pinturas (tituladas Peinture) em vias de poderem ser classificadas.
“São das mais importantes de toda a colecção. Todo este núcleo das pinturas sobre platex é um dos melhores deste grupo de obras de Miró. Qualquer uma destas pinturas é muito importante, muito característica de um determinado período, nomeadamente dos anos 1930”, explica Lapa, destacando “a relação entre a violência dos próprios materiais, a dissociação de todos os elementos pictóricos, a integração de valores aparentemente casuais como o reverso do platex”. As estimativas da Christie’s para estas obras variavam entre os 830 mil euros e os 1,8 milhões de euros.
Deste grupo de 41 obras, o historiador de arte destaca ainda o óleo Écriture Sur Fond Rouge (1960), com 195 cm por 130 cm, avaliado entre os 1,5 milhões de euros e os 2,1 milhões de euros. “Para mim, é uma das melhores obras deste conjunto. É uma peça absolutamente assombrosa do trabalho de Miró”, diz, com a certeza de que estas são peças com valor museológico. “O Miró é um dos artistas mais relevantes da arte moderna do século XX e estas 85 obras são representativas das suas diferentes fases ao longo de várias décadas”, continua, explicando que, por exemplo, o núcleo dos anos 1930 representa “um momento fundamental de Miró”.
Pedro Lapa lamenta a forma como o caso destas obras tem sido discutido e não aceita o argumento de que este conjunto não é uma colecção: “Isto representa o estado de rebaixamento a que o conhecimento da história da arte foi submetido neste país. É preciso ver que esta colecção parte da maior colecção do mundo de Miró, organizada pelo filho de Matisse que foi o galerista de Miró durante muitos anos e, portanto, este núcleo em concreto foi escolhido por alguns dos maiores especialistas e não por Oliveira e Costa.”
Tanto Canavilhas como Medeiros têm dúvidas de que as 41 obras completem só agora os dez anos em território nacional, defendendo que esta parte da colecção deve estar no país há mais tempo do que isso. Argumento também usado pelo Ministério Público em tribunal, que junta ao processo documentos de uma importação temporária, contestado, no entanto, por Nogueira Leite, que garante que as obras voltaram a sair posteriormente.
As datas aqui são, de facto, fundamentais, porque o artigo 68.º da Lei de Bases do Património Cultural determina que, “salvo acordo do proprietário, é vedada a classificação como de interesse nacional ou de interesse público do bem nos dez anos seguintes à importação ou admissão”. Para efeitos da Lei de Bases, o que conta são os documentos de importação definitiva e esses datam de Dezembro de 2005. Já em 2016, nomeadamente em Março, são mais 23 obras a completarem uma década em Portugal.
De acordo com a lei de bases, o pedido de abertura de um procedimento administrativo para avaliação da colecção Miró para a sua eventual classificação pode ser feito por qualquer indivíduo ou entidade, português ou estrangeiro. O PÚBLICO questionou a DGPC para saber se alguma diligência já foi tomada neste sentido, mas não obteve resposta.
Questionado pelo PÚBLICO, Francisco Nogueira Leite limitou-se a dizer que “não se justifica efectuar qualquer comentário na medida em que não se registaram nos últimos tempos alterações significativas em relação a este assunto”. E lembrou que “subsistem dois processos judiciais ainda pendentes”.