A balada de Tavira
Há anos que ingleses, suíços, franceses pousam aqui porque querem mudar de vida. A cidade majestosa e a serra à sua volta são hipnóticas. Agora, a ameaça chamada “petróleo e gás de xisto” pode transformar Tavira num paraíso perdido.
O carro na noite avança lentamente na ponte negra e reluzente. Os reflexos luminosos multiplicam-se. Tavira surge suavemente da escuridão. E, a seguir, os cheiros. A pinheiro, a iodo, a esteva, a limo do rio e do campo. Tavira-Tabira, do árabe “a escondida, a discreta”. Aliás, como que ecoando um passado imemorial, nas alturas capta-se a rádio marroquina. Esta cidade é o belo segredo mais repetido do momento. Tavira dorme e no entanto palpita e daqui a umas horas a vida vai jorrar de todo o lado, radiosa.
A lânguida majestade e a luz da região de Tavira têm atraído numerosos pintores e artistas plásticos portugueses e estrangeiros. Bartolomeu dos Santos viveu lá, Paula Rego lá ficou muitas vezes, Pedro Cabrita Reis é um habitué da serra, tal como Felim Egan, pintor contemporâneo irlandês. A lista é longa.
Mais espantoso ainda, o concelho de Tavira também é um destino de músicos. A vila de Estorninhos, nas ondulações da serra de Tavira, é disso um exemplo interessante. Ao virar de uma estrada sinuosa, praticamente invisível aos olhos dos passantes, esconde-se uma encantadora casinha, um antigo moinho restaurado. Foi construída por Dick Morrissey, saxofonista e jazzman britânico com dezenas de álbuns editados, tornado célebre a partir dos anos 1960. Ele viveu lá até ao fim da vida e compunha, com os montes em seu redor por únicos companheiros e o silêncio apenas ornamentado pelo ruído dos insectos e das aves, perante pores do Sol de cortar a respiração. E sem nada à volta.
O acaso — mas será mesmo o acaso? — fez com que um outro casal de artistas conhecidos se instalasse a umas centenas de metros de Dick Morrissey. Os suecos Kärsti Stiege e Johan Zachrisson. Ela, fotógrafa de renome e autora imbuída de cultura budista; ele, compositor de world music com vários álbuns de muito honorável sucesso na Suécia e noutros sítios da Europa. Como o disco Ritmo de Estorninhos, onde Johan mistura todo o tipo de influências, portuguesas, árabes e muitas outras. Quando Johan ouviu dizer que havia um saxofonista a dois passos dali, apresentou-se em casa de Dick Morrissey, o contacto estabeleceu-se logo e deu-se o início de uma bela amizade musical e produtiva.
O casal sueco viajou sempre muito, mas foi em Estorninhos que decidiu pousar. A história é invulgar: quando, em 1986, tem lugar a catástrofe de Tchernobil, Kärsti e Johan estão na Suécia. Kärsti, preocupada, faz averiguações, liga para a Greenpeace para saber para onde ir de maneira a fugir à contaminação radioactiva. Para a Nova Zelândia? Demasiado longe. Kärsti lembra-se então das maravilhosas férias passadas nos anos 1950 em Tavira, com a filha do casal ainda bebé (imita o gesto de embalar).
O bebé cresceu na natureza selvagem e inspiradora. Diga-se que a criança, hoje adulta, de seu nome Lykke Li, cantora e compositora, tornou-se uma estrela planetária em 2011 com o seu hit I Follow Rivers (com mais de 230 milhões de visionamentos no YouTube). A partir de Los Angeles, Lykke Li diz-nos algumas palavras sobre a sua vida em Estorninhos: “Crescer lá foi uma experiência muito especial e libertadora. Corríamos como selvagens nas montanhas, roubávamos laranjas e apanhávamos cobras. Fico muito agradecida por isso tudo e espero um dia poder dar a mesma oportunidade aos meus filhos.”
Johan Zachrisson também se lembra: “A vida na Suécia era muito moderna e cheia de constrangimentos. Aqui, encontrámos uma vida que estava sempre muito ligada à cultura da terra, ‘minha terra!’, uma pequena aldeia do campo. Quando chegámos a Estorninhos, só havia um telefone em toda a aldeia, quase nenhum televisor e nenhum computador. Não havia turismo nem semáforos. Mas havia mulas, galinhas, ovelhas e sobretudo vizinhos tão amáveis que passavam pela nossa casa de regresso dos seus lotezinhos de terra e nos ofereciam uma parte das coisas frescas que tinham acabado de colher. Era uma vida muito mais livre, em suma.”
A serra ouve-se no seu trabalho: “A nossa casa e a natureza envolvente enchem-nos de inspiração criativa e são um bom ambiente para a música. Utilizei registos sonoros dos arredores, o latir dos cães, o ruído dos pássaros, os grilos que no Outono, após a primeira chuva, sobem na noite e produzem um som muito especial, como que a pedir por mais chuva.”
Hoje em dia, o compositor continua muito activo e ligado a muitos músicos da região. Quanto a Kärsti, publica e expõe regularmente livros de fotografia e textos, nomeadamente sobre os tempos antigos em Tavira, os ofícios tradicionais e a vida no campo. Uma das suas fotos a preto e branco, de um camponês a caminhar ao lado da sua mula, teve aliás uma tiragem de milhares de exemplares.
Artista à sua maneira e num domínio mais inesperado, Fred Levy é muito conhecido na região: criou uma empresa de design e concepção de espaços verdes e de construções duráveis. É um artista da coisa viva e é a mascote dos donos de estalagens chiques e outros felizes proprietários de belas moradias que desejam criar jardins ao mesmo tempo pensados, autónomos e ecologicamente responsáveis. Francófono e belga, chegou a Tavira há 30 anos. Naquela altura, salienta, havia “ainda uma forte marca da presença harmoniosa das três religiões monoteístas, que me parecia ser um bom sinal para uma terra de acolhimento numa altura em que as culturas judaico-cristã e muçulmana já começavam a desgarrar-se mutuamente. Tavira foi literalmente um amor à primeira vista: uma relação física que ia muito para além da estética arquitectónica ou paisagística.”
Cheio de vitalidade, de espiritualidade, cidadão de causas, Fred foi o iniciador do movimento Tavira em Transição, que promove a permacultura, esse modo de exploração durável e ecológico da natureza que, nas suas palavras, “faz de cada problema um recurso. É um novo fôlego que nos vem de uma geração que sabe aliar as tecnologias ao respeito pelo ambiente”.
Tavira, explica, conservou o seu carácter antigo e um centro vivo. As zonas rurais foram marcadas por uma agricultura tradicional de sequeiro, o que confere um carácter muito particular à região. Trata-se de uma forma de agricultura não intrusiva para a natureza, uma vez que se adapta aos factores limitadores naturais (escassez de água, forte exposição solar, terreno muito calcário). “Infelizmente, há dois ou três anos, assistimos a uma degradação devido a políticas agrícolas que não parecem medir o seu drástico impacto sobre a identidade e a verdadeira riqueza da região. O movimento Tavira em Transição reúne jovens e menos jovens atraídos pelos valores autênticos e actuais: uma vida saudável ao ar livre, uma relação directa com a natureza sem cair num consumismo desenfreado.”
Eles produzem o que consomem, mas continuam online no seu iPad. Vivem em tribos onde os géneros e as gerações se misturam e fazem parte das redes sociais.
O acesso e o desenvolvimento da cultura representam aliás uma linha importante do orçamento municipal. Um grande esforço tem sido feito na educação, a acção social e o desendividamento da cidade, que representava 120% do PIB anual de Tavira, segundo o actual presidente da câmara.
Aos 48 anos, com uma expressão aberta e sorridente e uma palavra amável para cada um, gestos tranquilos e o ar seguro e decidido de quem exerce o poder, não há dúvidas: o presidente da Câmara de Tavira vestiu perfeitamente a camisola da sua função. Jorge Botelho dirige a cidade há dois mandatos (eleito pelo PS em 2009) e não esconde que tenciona concorrer a um terceiro em 2017. O autarca indica-nos que pelo menos 10% do orçamento é dedicado à animação cultural, à reabilitação do património — que é abundante e precisa de restauro — e aos museus e concertos. No passado mês de Setembro, por exemplo, o conhecido cantor pop Agir, de 27 anos, deu um concerto no largo principal. O seu público tem a reputação de ser jovem, enérgico e urbano.
A tectónica dos povos
Faz portanto 40 anos que Tavira assiste à instalação de grupos cada vez maiores de europeus no seu solo. Os ingleses, para começar, seguidos dos suecos e mais recentemente dos franceses. Há também um bom número de alemães e de holandeses. Uma espécie de tectónica dos povos. As razões desta afluência de residentes vindos de paragens longínquas são múltiplas. A qualidade de vida e o clima, obviamente. O menor custo de vida, claro. O efeito de arrasto, de moda em rápido desenvolvimento nos países insulares ou de tamanho modesto. Mas também a abertura de linhas aéreas directas e low cost, a martelagem mediática em torno de Portugal e as vantagens fiscais concedidas pelo Governo português aos reformados suecos e franceses.
Frantz Pigneul, um francês de 43 anos, é um globe-trotter que se instalou há muito em Lisboa. Renova, decora e comercializa imóveis e vivendas de topo de gama para clientes ricos. É amante de coisas belas e conhecedor de mil e um sítios fabulosos no globo, mas mesmo assim investiu o seu dinheiro pessoal (e, por uma vez, não o dos clientes) numa casa em ruínas do centro histórico. E, como a sua paixão por Tavira é contagiosa, arrastou com ele mais quatro franceses, que por sua vez compraram casa na região.
João Rodrigues, vereador do urbanismo na câmara, explica que a municipalidade pôs aliás em marcha um plano para motivar e facilitar a reabilitação de prédios devolutos, definindo para isso uma zona de intervenção prioritária no centro histórico. Esta zona permite aos senhorios que fazem renovações obter isenções e facilidades. Mesmo que as condições de elegibilidade das casas a estas vantagens pareçam por vezes complexas a alguns senhorios.
Prossigamos a nossa exploração. Camisas às flores, óculos de hipster, uma alegre maldade que surge em contínuo para ser rapidamente substituída por uma generosa gargalhada e a bondade que se lê nos seus olhos: Leif e Philip são dois reformados cheios de vida, um inglês e o outro sueco. Este casal de estetas procurou longamente uma ilha de paz e de beleza para se fixar. “Estávamos muito desiludidos por não ter encontrado uma região em Espanha que não tivesse sido estragada e, uma noite numa pizzaria de Cadiz, desistimos de procurar. E como ambos falávamos português, decidimos passar uns momentos agradáveis em Portugal. Depois de ultrapassarmos o primeiro obstáculo — não havia estradas directas para Portugal, estávamos em 1988 —, tivemos de dormir uma noite na fronteira, antes de apanharmos, na manhã seguinte, um pequeno ferry que circulava no rio Guadiana. Às 9h de uma manhã de Outubro de 1988, entrámos no hotel Princesa do Gilão. Ficámos surpreendidos com a beleza natural da região e o seu sossego. As vistas eram de cortar a respiração e percebemos então que tínhamos acabado de encontrar aquilo com que sonhávamos.”
O cônsul da Suécia, Peter Morawetz, atesta da presença não só de reformados, mas também de investidores e de empresas suecas que recebe quando se deslocam a Tavira.
Mas o que é que os tavirenses autênticos pensam disto tudo? Como corre a coabitação entre estes povos aparentemente tão diferentes? Não há um sentimento de perda de identidade e de invasão, visto o elevado número de casas do centro histórico ou de terrenos que são postos à venda pelos portugueses e comprados por estrangeiros?
Rui Horta é advogado e trabalha para os estrangeiros que compram propriedades e se radicam em Tavira. Aos 50 anos, parece dez anos mais jovem e passa com vivacidade de um dossier para outro, atende o telefone, distribui recomendações às colaboradoras. No passado, dedicou-se à política local durante mais de dez anos (eleito pelo PSD).
“A aquisição de um imóvel gera uma necessidade permanente de serviços aos mais diversos níveis, que os tavirenses souberam criar e oferecer, gerando agora emprego e riqueza, fora dos períodos típicos de Verão. Em Tavira surgiram muitas e variadas ofertas na área da restauração, construção e remodelação, jardinagem, gestão de imóveis, negócios de consultoria e imobiliário, que geram oportunidades de negócio e trabalho para os residentes locais. Todo este movimento gera novas formas de pensar e de fazer as coisas. Tavira e os tavirenses estão hoje num rumo com futuro.”
Continua: “Durante anos, Tavira foi apontada como uma cidade onde nada acontecia, onde ninguém investia, onde os privados não acreditavam e que o sector público ignorava. Se foi certo que estas condições remeteram a cidade para algum isolamento e atrasos, também é verdade que isso nos protegeu das aventuras urbanísticas gananciosas, dos investimentos sem regras e da loucura ‘turística’, que agora se revelam, em muitos outros locais, como opções não muito boas. E também é verdade que a evolução das regras e boas práticas urbanísticas, ambientais, de protecção do património, aliadas a uma maior consciência dos decisores políticos e investidores, serviram de barreira e de salvaguarda para Tavira.”
Quando perguntamos ao presidente da câmara se não há um paradoxo no facto de gerir uma cidade onde muitos constituintes com um peso económico importante não votam nas eleições porque são estrangeiros, e como é que se adapta a esta dupla população de tavirenses e estrangeiros, responde sem hesitar: “Não fazendo distinções. Costumo dizer que tavirense é quem cá está, quem gosta da nossa terra e quem faz desta terra a sua própria terra. Nós temos uma grande comunidade estrangeira, cerca de 10% da população. Uns votam, outros não, nunca fiz nenhuma distinção. Os estrangeiros e turistas fazem uma coisa que é a base de toda a comunidade: promovem o comércio, promovem o emprego. Quando há emprego, há estabilidade social.”
Nunca os nossos entrevistados evocam qualquer mal-estar entre os tavirenses, que pelo contrário demonstram muito boa vontade e simpatia para com os novos residentes. A vereadora Ana Martins, encarregada da acção social entre outras coisas, confirma-o mais uma vez, sublinhando ao mesmo tempo que existem apesar de tudo em Tavira bairros e populações em apuros, cuja inserção tem sido objecto de esforços por parte da câmara e que têm dificuldade em apanhar o comboio dos benefícios ligados à imigração. Segundo o último recenseamento que nos fornece e ao contrário do que se poderia pensar, em dez anos houve um aumento de jovens com menos de 24 anos três vezes maior do que a média nacional. A população total de Tavira aumentou 20%, ou seja dez vezes mais do que no conjunto do país. Mas a taxa de desemprego permanece superior à média nacional, nos 15,12%.
Petróleo e gás de xisto: vandalização iminente?
Corre um boato, cada vez mais forte, segundo o qual o céu limpo de Tavira arrisca-se a ficar ensombrado nas próximas semanas. As informações passam dificilmente e, não fosse o alerta dado por várias associações de protecção do ambiente, é provável que nada teria ainda vindo a público. Uma quinzena de contratos foram efectivamente assinados, entre Fevereiro de 2007 e Setembro de 2015, entre o Estado português e uma série de empresas de exploração petrolífera e de gás: a Repsol (Espanha), a Portfuel, a Galp, a Partex (Portugal), a Australis (Austrália), a ENI (Itália). Segundo as informações comunicadas por associações de defesa, tais como a ASMAA (Algarve Surf and Marine Activities Association), zonas inteiras do Algarve, incluindo Tavira, mas também do Oeste e do Norte de Portugal, foram concessionadas, tanto para construir plataformas petrolíferas no alto mar como no interior das terras do Algarve, para a exploração de gás de xisto. O que é muito mais inquietante.
As directivas europeias impõem que, antes de se fazer qualquer exploração do subsolo, seja tornado público um estudo do impacto sobre a saúde e o ambiente (ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde a ausência de regulamentação deste tipo já desencadeou a procura em grande escala de gás de xisto e vários desastres ecológicos). Os contratos devem igualmente ser tornados públicos e, mesmo que sejam difíceis de descodificar, estão acessíveis no site da Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis: http://enmc.pt ou, mais simplesmente, em http://palp.pt.
O que aconteceria, uma vez que o Estado é dono do subsolo, se uma empresa decidisse fazer perfurações numa concessão onde há agricultores ou habitações? Expropriação obrigatória com indemnizações — mas que quantias? Mistério. Esta é uma das questões que as associações de defesa tencionam colocar ao Governo.
Os comerciantes que souberam o que poderia vir a acontecer ficaram obviamente atónitos. Rui Nabais é o jovem dirigente de uma agência imobiliária situada no centro histórico de Tavira: a Manor Properties. Como muitos outros, ouviu os boatos que correm, mas sente-se desorientado quando se trata de saber se deve informar ou não os seus clientes sobre o que poderia acontecer. Sabe sem saber e a inexistência de explicações claras e oficiais enfurecem-no: “Como cidadão, acho terrível que quem nos governa possa tomar estas decisões sem consultar os habitantes, favorecendo apenas os interesses das megacompanhias petrolíferas preocupadas com o lucro que vão obter com mais uma exploração.”
Como sócio-gerente de uma empresa em que 95% dos clientes são estrangeiros que procuram Portugal, neste caso a região do Algarve, para habitar ou passar férias, “com certeza toda a economia local será afectada. Estamos a falar de uma região que vive do turismo muito pelas suas características geográficas e pela sua beleza natural, beleza essa que é o nosso património, que temos e devemos preservar”, diz.
Mas então o que é que se sabe ao certo? Nada melhor, para perceber, alertar e combater eficazmente os mastodontes do petróleo, do que uma antiga profissional do sector, com grande experiência dos costumes das empresas e fina conhecedora do interior do reactor desse mundo impenetrável. Laurinda Seabra fez quase toda a sua carreira na indústria petroquímica, mineira e da energia na África do Sul. O seu currículo é impressionante e a sua tese de MBA sobre o tema “Riscos de contaminação da água, do ar e dos solos pelas empresas petroquímicas na África do Sul” (que inclui um estudo do impacto sobre a saúde pública) ainda se encontra sob a alçada de uma cláusula de confidencialidade assinada com uma empresa petrolífera…
Laurinda, hoje instalada no Algarve, criou há quatro anos a associação ASMAA, que tem entre as suas razões sociais a defesa do ambiente marinho e sobretudo a sensibilização e a luta contra a exploração petrolífera na costa do Algarve e do Oeste, para prevenir e impedir a contaminação das águas e das praias, bem como outros estragos ambientais. O site da ASMAA fornece uma série de informações acerca dos contratos, das negociações, dos riscos e dos prazos. A leitura dos contratos revela, por exemplo, que os oito primeiros anos serão dedicados a sondar o subsolo com vista à realização de testes geológicos e sísmicos. A seguir serão feitas perfurações à procura de gás, dando-se depois início a um período de produção de 25 anos.
Quando lhe perguntamos se tem uma lista dos produtos químicos utilizados, misturados com a água a alta pressão (obtida no local, apesar de ser um bem tão escasso e precioso), para fazer explodir o subsolo e libertar o gás de xisto, envia-nos 60 referências que fariam as delícias dos estudantes de química orgânica. A quantidade, os nomes e as funções exóticas são estonteantes: metaborato de potássio, cloreto de tetrametilamónio, lauril sulfato, hidróxido de sódio, copolímero de acrilamida, ácido clorídrico, sulfato de hidroximetilfosfónio. Bom apetite.
Laurinda Seabra não tem papas na língua: “Na minha opinião, todo o processo foi gerido de maneira irresponsável. O que coloca a questão dos porquês. Por que é que a população visada não foi informada e ouvida? Por que é que o segredo foi mantido até finais de Julho 2015? Por que é os media não falaram de temas como a inexistência de uma agência de informação sobre a energia? Porquê tanta reticência em questionar os contratos?” Só uma pessoa falou alto, em 2012-2013: Mendes Bota (PSD), diz Laurinda. “O BE e o Partido Comunista levaram a questão ao Parlamento, mas receberam respostas insignificantes. Cabe perguntar o porquê destas não respostas. Por que é que ninguém fez perguntas acerca dos 3%, 6%, 8% por barril de gás natural — taxa que o Estado português deverá cobrar por cada barril, mas só quando as companhias tiverem recuperado o que gastaram em investigação, desenvolvimento, custos operacionais de produção (o que, segundo Laurinda Seabra, é demasiado pouco comparado com o que se pratica nos outros países, onde a taxa vai de 10% a 30% ou mais)? Por que é que os contratos não foram contestados ou discutidos pelos partidos da oposição? Por que é que nenhum partido político falou da exploração petrolífera durante as eleições anteriores? Muitas perguntas… Mas nenhuma resposta satisfatória. ”
A associação Plataforma Algarve Livre de Petróleo (PALP), pela voz de Rosa Guedes, faz eco destas preocupações. E acrescenta que o Estado português publica decretos destinados a favorecer a exploração de hidrocarbonetos, mas muito pouco deverá ganhar em caso de descoberta de depósitos. Cita ainda os contratos: para além dos escassos 3, 6 e 8% por barril, no caso do contrato “Tavira”, “o contrato acrescenta ainda: ‘A concessionária pagará ainda impostos e rendas de superfície nos primeiros três anos no valor de 20€ até 40€ por km2’.”
Há também uma outra fórmula confusa. No caso de Tavira, as empresas deverão “disponibilizar”, em média, 20 mil euros por ano. Mas trata-se de um empréstimo por parte das empresas? Ou de um pagamento? O contrato não especifica. Seja como for, é claro que as quantias pagas a Portugal parecem bastante baixas em relação aos riscos e estragos possíveis — e sobretudo aos ganhos que se imaginam para as empresas.
Quando o tema do petróleo e do gás de xisto surge na conversa, o presidente da câmara sabe que se trata de um terreno… escorregadio. Jorge Botelho baixa um pouco a voz, mas o olhar continua a reflectir determinação. Na altura em que falamos, sabe que o boato começa a espalhar-se na população (em particular, entre alguns profissionais do imobiliário e as associações). E também sabe que há contratos que foram assinados e que, daqui para frente, poderá vir a haver um braço-de-ferro entre a população de Tavira e o Governo. Por último, sabe que o silêncio obstinado do Governo na matéria está a ser muito mal interpretado pelas associações. E sê-lo-á ainda mais pela opinião pública (comerciantes, cabeleireiros, operários, utentes de instalações desportivas, grande público: nenhuma das cerca de 20 pessoas inquiridas sobre o acaso tinha ouvido falar das perfurações previstas).
O nosso pedido de entrevista demorou algum tempo a ser ouvido e foi preciso insistirmos várias vezes. Mas a espera valeu a pena, porque Jorge Botelho vai brindar-nos com um discurso sem qualquer ambiguidade. “Em relação à questão que agora surgiu com um contrato assinado para a exploração de gás de xisto aqui no concelho de Tavira, o fracking, posso dizer-lhe que não há nenhum documento entregue na câmara sobre isso, nós não fomos envolvidos.” Afirma que soube da celebração do contrato pela comunicação social. “Foi conhecido há dois meses? Não fui a nenhuma reunião, não fui envolvido, ninguém me pediu a opinião. Uma coisa é o envolvimento do Governo e outra o envolvimento e o consentimento das autarquias em relação às decisões do Governo.”
O autarca adianta: “O que lhe posso dizer é que eu sou contra. Sempre fui e serei contra. Primeiro sou contra a exploração do gás natural offshore no Algarve, porque o Algarve é muito mais do que exploração de gás natural. E aqui em Tavira, em relação a este último contrato assinado, eu sou absolutamente contra. Não me parece que seja o caminho para o Algarve e o território. Nós não fomos envolvidos, verdadeiramente não sabemos o que quer dizer o processo e as consequências hipotéticas para os territórios, nomeadamente em relação às construções e à forma com a sondagem é feita. Nós somos uma zona reconhecidamente sísmica e tudo que seja mexer neste território não me parece bem.”
Depois, há uma segunda questão: “Todo o Algarve e Tavira são uma terra que é reconhecida pela UNESCO, tem paisagens mediterrânicas, tem territórios que devem ser preservados e acima de tudo são uma terra turística. Sendo uma terra turística, têm de ser conservados os habitats, a sua reserva agrícola, a sua reserva ecológica (temos 80% de área protegida), temos REN, temos RAN e temos a ria Formosa.”
Jorge Botelho diz ter sido contactado pelo departamento do Governo que trata da regulação do petróleo para marcar uma reunião com os autarcas e explicar o que se está a passar, para haver uma primeira conversa sobre o processo. “Ainda não foi marcada, mas será brevemente. Não sei a opinião dos outros autarcas, veremos na altura. Nós juntamos-nos, mas primeiro temos de verificar qual é o estado de maturação dos processos.”
Mas o que é que os autarcas das cidades costeiras do Algarve poderão fazer contra os gigantes do petróleo depois de o Governo português ter assinado os contratos?
“Há meios judiciários e há a força da opinião pública. É uma questão do Algarve todo. Eu tanto não quero aqui, como não quero no concelho vizinho. Considero que é uma situação negativa para a economia algarvia. As pessoas acham que o Algarve é um jardim à beira-mar plantado e que deve ser livre de um conjunto de empresas poluentes, por muito que nos digam que as explorações são 100% seguras. A opinião pública terá força, mas isto é um processo que está iniciado e terá seguramente muito caminho para andar.”
Depois, continua, também depende do Governo. “Porque há governos sensíveis aos argumentos e governos não sensíveis. A única coisa que os cidadãos têm de saber é que o presidente da câmara fará tudo para impedir um processo destes, dentro das suas capacidades e dentro do seu poder, que tem algum, mas não tem todo.”
Fred Levy, do movimento Tavira em Transição, bem como muitos cidadãos oriundos de toda a região, tem-se empenhado, há várias semanas, na organização da informação e da resposta. “[A data de] 29 de Novembro é o dia da marcha mundial do clima. Decidimos participar nesta marcha e aproveitar a oportunidade para apontar o dedo a estas decisões tomadas pelo poder actual, em total contradição com as preocupações do momento. Trata-se de beneficiar alguns em detrimento de todos…”
O objectivo “é informar as populações locais sobre as consequências reais destas actividades e de fazer saber quem beneficia delas. Fala-se em furar poços petrolíferos ao largo das nossas costas e de fracking para a procura de gás de xisto numa grande parte do concelho de Tavira. Obviamente, esta notícia foi percebida como uma real aberração. O choque desta informação reforçou-se com a aproximação do COP21, em Paris: enquanto o planeta inteiro se debate contra as repercussões de uma política energética que nos levou à beira do abismo, Portugal decide pregar mais um prego na questão. É tão descabido que muita gente nem consegue acreditar!”
O artigo 7 dos contratos relativos ao Algarve estipula que os petroleiros deverão tomar as medidas necessárias para “minimizar o impacte ambiental, assegurando a protecção do ecossistema envolvente e salvaguarda do património cultural (…)” e terão obrigação de “repor, quando aplicável, a situação original ou equivalente”. Tentemos acreditar que assim será.
Numa espécie de irónica homenagem, alguns dos contratos de exploração que dividem o Algarve têm nomes de crustáceos: Caranguejo, Sapateira, Camarão, Amêijoa, Mexilhão, Ostra, Lavagante, Santola e Gamba.
As iniciativas populares e associativas vão portanto multiplicar-se, seguindo o exemplo das duas petições que podem ser assinadas online nos sites da ASMAA e da PALP.
Tavira, pérola do Algarve, ainda enche o ar com o perfume dos pinheiros, do iodo, das estevas, dos limos do rio e do campo. Mas por quanto tempo? É por vezes vital que certos segredos se tornem públicos e sejam conhecidos de todos para se transformarem em informação… e não em desastre.
Leia a versão francesa deste artigo: La balade de Tavira