Observações sobre a novíssima maioria de esquerda
Alguns socialistas terão a expectativa de uma mudança de natureza do PCP. Será uma miragem.
A maioria de esquerda não existia no dia 4 de Outubro. Hoje, depois de chumbar o segundo governo PSD-PP e de António Costa ter tomado posse como primeiro-ministro, passou a existir e a ter de prestar provas. A querela da legitimidade fica para trás. O que agora se torna determinante é a relação entre o PS e o PCP perante o imperativo de governar no mais difícil dos contextos económicos.
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A maioria de esquerda não existia no dia 4 de Outubro. Hoje, depois de chumbar o segundo governo PSD-PP e de António Costa ter tomado posse como primeiro-ministro, passou a existir e a ter de prestar provas. A querela da legitimidade fica para trás. O que agora se torna determinante é a relação entre o PS e o PCP perante o imperativo de governar no mais difícil dos contextos económicos.
Declarou em Outubro António Costa ao Financial Times a propósito das negociações do PS com a esquerda da esquerda: “É como se estivéssemos a deitar abaixo o que resta do Muro de Berlim.” O “muro” seria a divisão das “duas esquerdas”, a socialista e a comunista, desde 1975.
Ao optar pelo acordo com o PCP e o Bloco, o PS mudou as regras do jogo. A mudança está na polarização da disputa política entre esquerda e direita, suspendendo o chamado “arco da governação”. Carlos Gaspar chamou-lhe “o fim do 25 de Novembro” e precisou: “A coligação PSD-CDS e a maioria aritmética das esquerdas são fórmulas simétricas. Partem ambas do reconhecimento da incapacidade dos dois grandes partidos para voltarem a obter maiorias absolutas sozinhos” (PÚBLICO, 16/11/2015).
Partido tribunício
A bipolarização é normal em muitos países. Mas, no caso português, rapidamente começam as complicações. O PCP e o PS, afirmando-se ambos de “esquerda”, não só pertencem a famílias e tradições políticas opostas como são incompatíveis. Centro a análise no PCP e não no Bloco. Este teve (e terá) um papel activo na operação “maioria de esquerda” mas a sua identidade política não está consolidada.
Levantei o problema num texto anterior (PÚBLICO, 8/11/2015), a propósito da União da Esquerda em França — socialistas, comunistas e radicais — na era Mitterrand, nas décadas 1970-80. Resumo: a estratégia do Partido Comunista Francês (PCF) assentava numa função tribunícia, tal como a definiu o politólogo Georges Lavau. Era o porta-voz do descontentamento social, organizava o protesto mas não queria partilhar responsabilidades de governo. Só teria interesse em governar se pudesse ter um papel hegemónico. A função tribunícia é uma alternativa à incapacidade de exercer o poder e um método de garantir a influência política. É ao mesmo tempo perturbadora e útil para a estabilidade do sistema político: ao dar voz ao protesto, desempenha o papel de válvula de segurança para as tensões sociais.
Os estudiosos portugueses não o ignoram. Resumiu José Pacheco Pereira: “A parte estratégica do PCP corresponde a um aspecto fundamental da acção do partido, a sua função tribunícia, o reverso da ‘responsabilidade de partido de governo’ que anima o PS. (...) O PCP vive da conjugação entre uma acção tribunícia, com os seus efeitos de propaganda, identidade e afirmação, e o seu papel na protecção da sua ‘clientela’ eleitoral, nos sindicatos e nas autarquias” (Abrupto, 1.7.12).
Noutra vertente, o PCP “faz gala da sua excepcionalidade, acentuando a ortodoxia doutrinária, a intransigência dogmática e o sectarismo político”, escreveu Vital Moreira a propósito do congresso de 2008. “Não deixa de ser surpreendente, depois do soçobrar do comunismo soviético, uma tão grande fé nos dogmas do ‘marxismo-leninismo’ e nas virtudes do socialismo real’, lá onde ele persiste.” Conclui: “Pelos exemplos alheios por esse mundo fora, receia que mudar pode significar morrer depressa. Por isso prefere não mudar, na esperança de adiar continuamente o fim, ou morrer devagar” (PÚBLICO, 2/12/2008).
Até agora sobreviveu — dando aparente razão à intransigência de Cunhal perante coisas como o eurocomunismo ou a perestroika. De resto, ele seguiu com atenção a experiência francesa, que culminou no irreversível declínio do PCF.
Jerónimo abre o jogo
Jerónimo de Sousa fez o convite à dança a 9 de Outubro: “O PS só não forma governo se não quiser.” Não escondeu ter em mente uma coligação negativa: “Uma solução política para isolar a travar a ofensiva da coligação PSD-CDS.”
Alguns socialistas terão a expectativa de uma mudança de natureza do PCP. Será uma miragem. O PCP sempre teve uma cultura de flexibilidade táctica, o que não se deve confundir com rupturas estratégicas, de que não há qualquer sinal. Por que fez a abertura ao PS? A direcção comunista não teria querido assumir o ónus da “divisão da esquerda” perante uma oportunidade única de derrubar a coligação PSD-CDS. Mas não será a única razão. A sua táctica é racional. O acordo com o PS permite-lhe defender interesses vitais, como a anulação das propostas do PS sobre a flexibilização dos despedimentos ou a travagem da privatização dos transportes colectivos, chave da capacidade grevista da CGTP. Gostaria ainda de esvaziar a concertação social e marginalizar a UGT. Reformas estruturais? Nem pensar. E faz estas “conquistas” sem entrar no governo e sem abdicar da sua liberdade de acção.
É um equívoco falar na exclusão do PCP do “arco da governação”. É uma “auto-exclusão” decorrente do seu programa, do marxismo-leninismo e da estratégia tribunícia. O apoio ao governo não autoriza que se fale na ruptura desta lógica. Não se trata de um julgamento moral ou ideológico. O PCP cumprirá os compromissos que assumir e apenas esses. É assim que funciona. É difícil pedirem-lhe que mude a estratégia e a ortodoxia em que crê assentar a sua sobrevivência e a sua influência. Não se vislumbra onde estão os famosos “restos do muro de Berlim”.
PS sob pressão
Na ausência de um acordo programático como o que Mitterrand pôde impor aos comunistas e depois forçar a sua participação no governo — porque sempre teve a iniciativa e estava em posição de força — o executivo socialista estará sob permanente pressão dos aliados, agravada pela rivalidade entre PCP e Bloco. Esta pressão será particularmente sensível no caso dos compromissos europeus e dos equilíbrios financeiros. Costa precisa que os aliados votem sempre ao seu lado. Se tivesse ganho as eleições, poderia governar como “partido charneira”, fazendo acordos à esquerda e à direita. Mas não foi o que aconteceu.
O garante da unidade da nova maioria reside num argumento de bom senso que só tem valor transitório: “Se se dividem vão todos ao fundo”. E este argumento tem um reverso: se hoje a maioria de esquerda é popular nas bases do PCP, a sua elasticidade para digerir “medidas impopulares” ou desmentidos à sua estratégia é evidentemente limitada.
Hoje, na sequência de uma implacável disputa do poder, a polarização esquerda-direita tornou-se forte. Mas há uma outra divisão mais poderosa e que envolve os constrangimentos externos: europeístas e eurocépticos. A nova e contraditória maioria assenta em 50,8% dos votos. A maioria pró-europeia teria representado mais de 70%. Depressa as “duas maiorias” entrarão em competição.
Perante o agravamento das crises europeias, o PCP pode ser tentado a explorar uma viragem soberanista e eurocéptica. Mas este é um caminho vedado ao PS e a António Costa. O resto é terra incognita.