Morreu Luc Bondy, um dos grandes do teatro europeu
Doente há muitos anos, o encenador dirigia desde 2012 uma das mais importantes instituições teatrais de Paris, o Odéon - Théâtre de l'Europe. A França voltou a ficar de luto.
Teve uma infância "intratável", talvez a única ao alcance de um filho de refugiados judeus que se abrigaram da violência nazi em Zurique (o seu pai era o jornalista e intelectual François Bondy), e depois dela uma vida que nunca lhe permitiu manter uma distância de segurança em relação à doença que acabou por matá-lo este sábado de manhã, em Paris, aos 67 anos, mais de quatro décadas depois do primeiro dos seus múltiplos encontros (que no caso dele nunca pareciam ser fatais) com o cancro.
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Teve uma infância "intratável", talvez a única ao alcance de um filho de refugiados judeus que se abrigaram da violência nazi em Zurique (o seu pai era o jornalista e intelectual François Bondy), e depois dela uma vida que nunca lhe permitiu manter uma distância de segurança em relação à doença que acabou por matá-lo este sábado de manhã, em Paris, aos 67 anos, mais de quatro décadas depois do primeiro dos seus múltiplos encontros (que no caso dele nunca pareciam ser fatais) com o cancro.
Perseguido desde a juventude por essa sombra ameaçadora, o encenador suíço Luc Bondy, que actualmente dirigia um dos mais importantes teatros franceses, o Odéon - Théâtre de l'Europe, foi sempre um sobrevivente: apesar das notícias de que o seu estado de saúde se tinha agravado mais seriamente, forçando o adiamento para Março da próxima produção que ia encenar no Odéon (um Otelo cuja estreia tinha chegado a estar prevista para o próximo mês de Janeiro), a ministra da Cultura francesa, Fleur Pellerin, disse-se "chocada" ao saber da morte "de um dos maiores encenadores europeus". E assim a França volta a estar oficialmente de luto: o Presidente da República François Hollande homenageou Bondy num comunicado em que quis sobretudo sublinhar, pela forma como “exemplificava a cultura da Europa”, a incomparável persistência de uma figura "que não renunciava a nada, trabalhando sem parar, sofrendo mas prosseguindo incansavelmente uma obra". A sua última encenação no Odéon, aliás, foi um trabalho que fez em parte a partir da cama do hospital (já em 2009 tinha dirigido uma ópera em Paris numa cama instalada em cima do palco): estreado em Julho, o “triunfal” Ivanov de Luc Bondy (palavras do diário francês Le Figaro) foi reposto no início desta temporada quando estava hospitalizado; a sua mulher, a encenadora, dramaturga e libretista Marie-Louise Bischofberger, que com ele colaborava artisticamente desde 1989, assumiu então o comando das operações.
Natural de Zurique, onde nasceu a 18 de Julho de 1948, Luc Bondy tornou-se, ao longo de uma carreira que atravessou cinco décadas (chegou à Escola Jacques Lecoq pouco depois de abandonar os estudos aos 16 anos) e se cruzou com as mais importantes instituições (incluindo a mítica Schaubühne de Peter Stein, que acabaria por substituir em 1985), um verdadeiro almanaque vivo do teatro europeu. Apesar de ter sido um dos seus mais celebrados e mais prodigiosos protagonistas, tinha uma invulgar compulsão para desaparecer nos seus actores, como o público do Festival de Almada pôde testemunhar em 2009, quando aqui trouxe uma encenação de As Criadas, de Jean Genet em que se escondia atrás de uma enorme actriz, Edith Clever. Não tinha outra maneira de estar no teatro, como explicou então, por e-mail, numa entrevista ao Ípsilon: “Passa tudo pelos actores, vem tudo dos actores. Nunca tentei limitar o espaço deles ou subjuga-los aos outros elementos da produção.” Antes disso, tinha estado em Portugal apenas uma única vez, também a convite do Festival de Almada, com uma versão longamente adiada (Bondy tinha medo, como também confessou a este jornal...) do À Espera de Godot de Samuel Beckett mostrada no Porto e em Lisboa em Julho de 2000.
Beckett, dizia, sabia das “dificuldades do que se passa connosco entre o princípio e o fim”. Pela sua terrível história pessoal, uma história pessoal de superação mas também de dor e de excessiva proximidade com a morte, poderíamos dizer o mesmo de Luc Bondy.
Alemanha-França
Antes mesmo de Luc Bondy se aproximar do teatro, o teatro já se tinha aproximado de Luc Bondy: quando a sua família se estabeleceu em Paris, vinda de Zurique, Genet, como outros escritores e filósofos, passou a ser visita de casa. Descendente de uma família de intelectuais da grande burguesia austro-húngara entretanto fixada na Alemanha, e daí obrigada a refugiar-se na Suíça, o encenador gostava de lembrar que os seus pais “não tinham um tostão e, como judeus, esconderam-se onde puderam”. Décadas depois, ele faria o movimento contrário, regressando à Alemanha – a mesma Alemanha que teve de reparar os seus avós pelos crimes cometidos pelo regime nazi, que lhes confiscara os bens – para aí fazer descolar a sua carreira, primeiro em Hamburgo, como assistente de Ionesco (outro amigo do pai), depois em Frankfurt, Colónia, Munique e Berlim. A França chegou apenas em 1984, a convite de Patrice Chéreau, que então dirigia o Théâtre de Nanterre-Amandiers, e segundo conta o Figaro não foi possível esquecer o barulho das bolas de ténis trocadas por Michel Piccoli e Bulle Ogier nessa Terre étrangère, de Arthur Schnitzler, que o tornou finalmente famoso no país onde tinha crescido.
Schnitzler, herdeiro como ele desse espaço-tempo muito particular que foi a Mitteleuropa, foi um dos seus autores – mas também o foram Beckett, Genet, Gombrowivcz, Shakespeare, Goethe, Tchékhov, Yasmina Eeza. Mas Bondy foi também um militante da ópera, à qual chegou em 1977 com a Lulu de Alban Berg e que depois encenou em diversas casas europeias (era um clássico no Festival de Salzburgo). Também na Áustria, foi durante 12 anos o director para a secção de artes performativas do festival Wiener Festwochen – tudo isto apesar das sucessivas idas e vindas da doença e das suas recidivas. Os primeiros tempos no Odéon, que dirigia desde 2012, terão sido, a par do cancro, uma das experiências mais amargas da sua carreira: chegou, recorda o Le Monde, acusado de ter empurrado para a porta dos fundos o seu antecessor Olivier Py, que a tutela não quis reconduzir no cargo, e de ter sido directamente escolhido por Nicolas Sarkozy numa idade (tinha então 63 anos) já perigosamente próxima do limite imposto pela lei. A controvérsia não durou assim tanto; foi apagada, escreve a imprensa francesa, por uma direcção artística extraordinariamente bem-sucedida tanto junto do público como da crítica – e, claro, dos seus fidelíssimos actores.
Irremediável bilingue, ao ponto de já não saber em que língua sonhava, como confessou numa entrevista ao Libération, Luc Bondy nunca perdeu o seu sotaque germânico. Nem a mania de se fazer sempre acompanhar por um livro, nem a incapacidade de se fixar num só assunto quando começava uma conversa. Agora que morreu ninguém parece conseguir enumerar muito mais defeitos desse encenador de irrepetíveis qualidades, que talvez os seus gémeos nascidos em 1992 tenham a sorte deherdar: “Herdamos de tudo. Tanto qualidades como defeitos de fabrico. Creio aliás que herdamos sobretudo os defeitos.”