Um Tetris e pouco mais que a felicidade
Quem tem a maior pontuação no Tetris? Não sei, nenhum de nós sabe. Pouco importava, porque não havia rede social para o partilhar
Hoje fui a casa da minha avó, encontrei um Tetris, inerte num dos armários que vergou com o tempo.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Hoje fui a casa da minha avó, encontrei um Tetris, inerte num dos armários que vergou com o tempo.
Recordei os cheiros, as pessoas, a rua, o pó que levantava com as malhas, a ausência de preocupações, a hora de jantar que nunca era à hora de jantar.
O tempo era movido apenas pelo horários dos jogos sem fronteiras, as tardes eram passadas com o meus primos, o meu irmão e os amigos da rua, que eram família. Lembro-me da Joana, da Leonor, da Luísa, da Verónica, do meu irmão e dos primos que ainda hoje são irmãos: a Vera e o André. E aos domingos ainda vinham mais primos, o David e o Eduardo, que costumavam levar "sovas" de bola num espaço de terreno que não tinha mais de três metros quadrados. Às vezes, a rua levantava ainda mais pó, quando chegavam os da rua abaixo para jogar, só jogar, não importava o jogo, podia ser à bola, naquele campo atrás de casa da minha avó, com as balizas de madeiras feitas por nós.
As pastilhas Gorila do café do meu avô eram o ponto alto do dia. Gostava de apanhar pássaros e metia-os nas gaiolas que havia lá por casa dos avós — sei que isso hoje é errado, mas na altura eles eram novos amigos para juntar aos que tinha, até lhes dava nomes e por isso o pássaro é hoje em dia ainda o meu animal favorito.
Na rua abaixo da nossa havia uma casa assombrada, tinha uma palmeira no jardim, ela ainda lá está, nós é que não. A "fava" daqueles tempos calhava ao que ia buscar a bola ao terreno que a ladeava, porque ia lá sempre cair uma bola.
O assobio do meu avô é o som que marca a minha infância. O cheiro a mimosas venceu a qualquer um dos outros. O terraço da casa dos meu avós é o local onde vi passar aqueles tempo e os vivi. Se revisitar a infância em condições, pauso aquelas noites entre o som das cigarras e os jogos sem fronteiras - "Um ponto para o País de Gales...".
Em 1994, o Romário foi o rei da nossa rua, na ausência dos nossos. E o meu avô era o herói a sério: deu-nos a conhecer o sabor a Sumol ou a gasosa, uma coisa épica naqueles tempos. Sei que no dia em que o Eládio Clímaco partir, vai com ele uma parte de todos nós.
Quem tem a maior pontuação no Tetris? Não sei, nenhum de nós sabe. Pouco importava, porque não havia rede social para o partilhar. As fotos não tinham filtro e pouco existem, porque existem as memórias, foram elas a lente que as captou. E éramos felizes assim. Tão felizes que não o escondíamos.