É hora da batota no recreio
Os They're Heading West têm cantores-compositores que não cantam nem compõem. Mas não soam a mais ninguém.
O rock’n’roll tem regras muito simples: nasce-se na classe média baixa em zanga permanente com o universo, faz-se uma banda com os amigos e essa banda, depois do inevitável processo de imitar outras, cria canções originais – uma tarefa que, como se sabe, recai no guitarrista. Edita-se um par de discos de originais, só há um vocalista (que dá as entrevistas) e um belo dia sai um disco ao vivo, gravado, como a expressão indica, num concerto ao vivo – nunca um disco gravado em estúdio em que se reproduzem as canções que se tocam ao vivo.
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O rock’n’roll tem regras muito simples: nasce-se na classe média baixa em zanga permanente com o universo, faz-se uma banda com os amigos e essa banda, depois do inevitável processo de imitar outras, cria canções originais – uma tarefa que, como se sabe, recai no guitarrista. Edita-se um par de discos de originais, só há um vocalista (que dá as entrevistas) e um belo dia sai um disco ao vivo, gravado, como a expressão indica, num concerto ao vivo – nunca um disco gravado em estúdio em que se reproduzem as canções que se tocam ao vivo.
“Esta banda não funciona assim”, diz Francisca Cortesão, também conhecida por Minta, enquanto bebe uma água com limão no bar do Teatro Maria Matos, em Lisboa. Lá fora há uma tempestade, mas ela é a calma em pessoa. “Houve uma altura em que pensámos que tínhamos de compor originais. Foi quando voltámos da primeira viagem que fizemos aos EUA. Mas depois pensámos 'Porquê? Onde está escrito que uma banda tem de ter originais?' E nunca mais nos preocupámos com nisso."
Francisca é um quarto dos They’re Heading West, que acabam de editar o seu disco homónimo de estreia e actuam no Vodafone Mexefest, em Lisboa, no sábado, na Casa do Alentejo, às 20h15. Francisca representa também um terço dos compositores que compõem a banda – mas não para a banda. Tudo isto é muito confuso, ao ponto de, no bar do Teatro Maria Matos, um jornalista coçar a cabeça a ver se entendia.
Ora bem: os They’re Heading West não são uma banda tradicional. Apesar de três dos seus quatro elementos serem compositores, não almejam escrever canções originais. De facto, dos 15 temas que compõem o disco, apenas Kind of Nelson, Random Nelson e Old habits são originais da banda. O resto é feito de versões que eles criaram para os seus outros projectos, ou de versões de outros compositores (de Samuel Úria a JP Simões, passando por Capicua ou Nuno Prata) cantadas, bem, cantadas por uma data de pessoas que não fazem parte da banda (e não obrigatoriamente pelos compositores originais).
Vamos lá ser claros: “A banda chama-se como se chama porque queríamos ir aos EUA."
Na mala do carro
Os They're Heading West não nasceram de um conjunto de amigos de infância com vontade de tomar o mundo. Apenas queriam tocar juntos e angariar dinheiro para a viagem. De modo que em Fevereiro de 2011 deram o primeiro concerto. Acharam que “sendo uma banda nova, chamava mais a atenção se houvesse convidados". Desde então, tem havido "sempre”.
Os primeiros foram os You Can't Win Charlie Brown e a regra era simples: quem canta escolhe o que quer cantar e os They're Heading West funcionam como banda de suporte. Da lista de gente que já integrou essas actuações fazem parte Ana Bacalhau, Ana Moura e Camané, por exemplo. “Com eles deu muito trabalho. Não cantaram coisas deles, deram-nos uma lista de canções que queriam cantar." No Mexefest estarão em palco Afonso, dos You Can't Win Charlie Brown, Bruno Pernadas, Capicua e Nuno Prata.
Agora sim, já nos começamos a entender: João Correia, Francisca Cortesão, Mariana Ricardo e Sérgio Nascimento (o homem das percussões, que não compõe) juntaram-se para fazer concertos de modo a conseguirem dinheiro para ir aos Estados Unidos. Nesses concertos, os convidados eram reis: escolhiam as canções que queriam cantar, não obrigatoriamente suas. Quatro anos depois, surge o disco de estreia, homónimo, dos They’re Heading West, e o alinhamento, segundo Francisca, “é uma espécie de best-of dos concertos ao vivo”, embora tenha sido “gravado em estúdio”.
Confusos? Não deviam estar – ao fim e ao cabo, os combos de jazz fizeram isto a vida toda, e uma boa parte dos temas de They’re Heading West foi escrita por eles. O que é interessa é: e resulta?
Extraordinariamente, sim. E com uma identidade bem marcada: tudo se resume a percussão básica, uma guitarra acústica, um ukelele e melodias de voz. Kind of Nelson, o tema inicial, marcadamente americano, dá o tom: estamos num território que é português de voz, mas que tem o coração nos EUA. A escolha dos instrumentos, a forma cambaleante como cada canção avança, são a identidade das canções. E os factos de haver para aí uma dezena de cantores diferentes e de se cantar em inglês e português não põem minimamente em causa a identidade: Vayorken, de Capicua, fica com um som de demo soul da década de 60 e ainda é folk delicada e minimal.
Podíamos pensar que esta voz foi muito pensada, mas nasceu fruto das conveniências. Na realidade, a culpa é da mala do carro. Passamos a explicar: os They're Heading West foram “duas vezes aos EUA, em 2011 e em 2014”. Não havia grandes planos além destes: “Vamos fazer uma viagem, vamos tocar as músicas uns dos outros." A viagem acabou por definir o futuro da banda, que ainda não era bem uma banda, apenas um conjunto de pessoas que queriam viajar.
“O que é que ocupa imenso espaço no carro?”, pergunta Francisca, como se fosse suposto adivinharmos. “Amplificadores e bombos. Então resolvemos não usar. No lugar do bombo estão um adufe, uma tarola, uma pandeireta e um prato. Depois há uma guitarra acústica, um baixo e um ukelele. Tinha de ser uma instrumentação que coubesse na mala do carro que alugássemos." As questões pragmáticas acabaram por ajudar a então ainda-não-banda: “Desde então usamos basicamente a mesma instrumentação. E a nossa linguagem parte sempre de subtrair. Juntamo-nos e tentamos não aldrabar: uma guitarra eléctrica ou uma segunda guitarra não valem."
Subir ao altar
Quando se enfiaram num avião e depois num carro alugado, os quatro They're Heading West não eram amigos de longa data: “Eu e o Joca conhecemo-nos em 2009, a Mariana conheci em 2009, do Serginho somos todos fãs há muito tempo”, conta Francisca. Da primeira vez foram de Vancouver a San Diego, e fizeram “oito ou nove concertos em três semanas": "A ideia era vermos sítios pelos quais tínhamos imensa curiosidade, por haver música e imagens que vinham dali."
Esteve longe de ser um sucesso: “Quisemos ir a Anacortes, a terra do [músico] Mount Eerie, a uma loja de disco ligada à K Records. Na loja pediram-nos para tocar lá fora. E mesmo assim só pararam para nos ver umas três pessoas”, recorda, com humor.
Um dos concertos que deram, porém, correu muito bem. A descrição talvez dê indicações acerca de como ver os They're Heading West ao vivo: “Tocámos em L.A., no que pensávamos ser uma galeria de arte mas afinal era o estúdio de uns putos que estavam todos pedrados com marijuana medicinal – adoraram."
Nessa altura, não lhes "passava pela cabeça" fazer mais do que uma viagem: “Pensávamos voltar para casa e pronto. Mas ao fim de dois concertos pensámos: 'Isto é uma banda'. Tínhamos uma identidade, dada pelos instrumentos que havia à mão." Agarraram-se a ela, passaram a fazer residências na Casa Conveniente em Lisboa, em que os convidados... – bem, já sabem, já contámos o resto. Demoraram “três anos a juntar dinheiro para a segunda viagem”, mas dessa segunda vez, em 2014, “a recepção foi muito boa”.
"Já éramos muito diferentes. Já andávamos a tocar juntos todos os meses há três anos. Já éramos uma banda." De tal modo que, apesar de o roteiro se ter assemelhado ao da primeira viagem, reservaram “dois dias no estúdio do Mount Eerie, que era uma antiga igreja" – a capa do disco com que agora se estreiam, explicam, "é o antigo altar”.
Queriam gravar ali porque gostam “do som que saiu de lá”. “Mas não sabíamos o que íamos fazer. Na pior das hipóteses fazíamos uma maquete. Foi já em digressão que decidimos reproduzir em estúdio as canções que tocávamos ao vivo." Note-se que não tinham vocalistas com eles, de modo que gravaram as bases – as exactas mesmas bases das canções que se ouvem no disco. Só mais tarde os vocalistas deram voz aos temas. E é a isto que teremos direito no Vodafone Mexefest: a uma imensa festa, com os quatro a serem acompanhados no microfone por Afonso, Bruno Pernadas, Capicua e Nuno Prata. Não se pense que, por exemplo, Capicua só cantará temas de Capicua. “Fomo-nos especializando em juntar pessoas que não têm nada a ver umas com as outras e já nos habituámos a criar um alinhamento de modo a que as pessoas entrem e saiam do palco de forma natural. Nós somos o fio condutor e elas têm liberdade."
Ok, e perante tudo isto: será que eles vão fazer novo disco? “Não sei se faz sentido haver outro disco físico. Para já estamos satisfeitos com este”, diz Francisca, que tem uma definição curiosa para banda: “Isto começou por ser um recreio e continua a ser um recreio."
Resumindo: ao contrário das outras bandas, os They're Heading West não são um casamento, são um namoro. “É uma banda só com as coisas boas, é uma batota."