Morreu uma grande dama do fado: Beatriz da Conceição
Uma grande intérprete, com uma postura autêntica, e uma referência para as novas gerações, de Ana Moura a Camané, de Helder Moutinho a Aldina Duarte. Decidiu começar a cantar em 1960, depois de lhe terem dito que ia "ser uma grande fadista".
A fadista Beatriz da Conceição, de 76 anos, intérprete de êxitos como Ovelha negra ou emblemáticos como Meu corpo, que recebeu em 2008 o Prémio Amália Rodrigues de Carreira, morreu esta quinta-feira, no Hospital de S. José, em Lisboa, disse à agência Lusa um familiar.
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A fadista Beatriz da Conceição, de 76 anos, intérprete de êxitos como Ovelha negra ou emblemáticos como Meu corpo, que recebeu em 2008 o Prémio Amália Rodrigues de Carreira, morreu esta quinta-feira, no Hospital de S. José, em Lisboa, disse à agência Lusa um familiar.
A "Tia Bia", como era conhecida no meio fadista, era uma "diva" na forma de estar e na atitude de autenticidade. Uma grande intérprete, ao nível das melhores. E uma referência para as novas gerações. É assim que a maioria evoca a fadista nascida no Porto a 21 de Agosto de 1939, que começou a cantar na década de 1960, depois de uma visita à casa de fados Solar de Márcia Condessa, em Lisboa.
Em 2012, numa entrevista ao PÚBLICO, falou sobre essa época e disse que decidiu cantar depois de Márcia Condessa lhe ter dito que ia "ser uma grande fadista". Também a sua musa, Lucília do Carmo, a incentivou: "Ó menina, você canta à sua maneira e muito bem. Assim é que é bonito."
O musicólogo e historiador do fado Rui Vieira Nery não hesita em dizer que ela foi “uma das três ou quatro figuras mais importantes da história do fado do último meio século”, destacando-lhe o “talento”, a “originalidade”, o “carácter único da sua arte” e “o grande cuidado na escolha dos poetas que queria cantar, com uma enorme exigência na escolha do repertório”, lembrando que “teve um papel importante como modelo para muitos fadistas das novas gerações”, pois “foi uma figura que esteve em actividade até ao fim".
O fadista Hélder Moutinho, que lhe dedicou um fado de homenagem (O fado da Bia), escrito por Fernando Tordo, não tem dúvidas: "Se no fado, enquanto intérprete, houve Alfredo Marceneiro, também houve uma mulher chamada Beatriz da Conceição.” Visivelmente emocionado, no Canadá, o fadista falou ao PÚBLICO por telefone acerca da sua “fadista preferida”, como ele a designa. “É muito difícil dizer o que quer que seja neste momento, porque a Beatriz era como se fosse da minha família. É sem qualquer dúvida a minha fadista preferida de sempre. Trabalhámos juntos. Fomos os melhores amigos. Enfim, tanta coisa para dizer. Mas não é fácil. Conheci-a em 1993, foi ela que, no fim de contas, me pôs a cantar. E não sou eu apenas que o digo. Era uma intérprete notável. Fica um enorme vazio.”
Camané recorda a Bia, como lhe chama, como uma das grandes fadistas. "Está ao nível da Maria Teresa de Noronha e da Amália”, diz ao PÚBLICO, acrescentando que é uma das suas referências: “Foi uma das pessoas com quem mais aprendi porque privei muito com ela, inclusive numa fase inicial do meu percurso, há 30 anos. Foi uma pessoa que me ensinou quase tudo”. Considera-a “uma figura incrível, óptima intérprete com um estilo muito próprio e um percurso fantástico”. “Beatriz da Conceição é o fado”, acrescenta.
Ela é uma forte referência para as novas gerações. Aldina Duarte revelou em diversas ocasiões que foi depois de a ouvir cantar que desejou ser fadista. Mafalda Arnauth homenageou-a interpretando o tema de Max Pomba branca, pomba branca, e Ana Moura convidou-a para o palco do Coliseu dos Recreios, em 2008, para interpretar Meu corpo, num espectáculo que viria a ser lançado posteriormente em DVD.
São muitos os sucessos que criou, nomeadamente no teatro de revista, como Lisboa da Cor da Ponte ou Três Santinhos Populares. Cantou em diversas casas de fado, como A Viela, Adega Machado, Nonó, Os Ferreiras, Taverna do Embuçado e Senhor Vinho. Há 50 anos, gravou o seu primeiro disco, um EP, para a etiqueta RCA, intitulado Fui por Alfama, tema de Guilherme Pereira da Rosa com música de Francisco Carvalhinho.
No texto da contracapa desse disco podia ler-se, num texto da editora, que "era jovem, turbulenta e irreverente, como uma rajada de ar fresco no meio fadista nacional." Pertencente à chamada nova vaga do fado, nesse tempo, interpretava com a mesma convicção o género alegre ou o dramático, embora fosse neste último que a emoção era mais exaltante.
O maestro Paul van Nevel, fundador do Huelgas Ensemble, que gravou Tears of Lisbon com ela, em 1996, realçou, no texto desse álbum, "a força contida" da fadista, afirmando que a sua interpretação é de uma tal tristeza emotiva que consegue imprimir poesia "mesmo aos silêncios entre as palavras e versos".
Rui Vieira Nery evita comparações com Amália, alguém que "transcende o fado", mas reitera que Beatriz da Conceição está na lista dos grandes fadistas do último meio século. “É uma figura que definiu uma personalidade própria, marcou o terreno, soube preservar a identidade do fado e transformou-a à sua maneira”.
A sua voz fez-se ouvir em Portugal mas também no estrangeiro, seja entre as comunidades portuguesas dos Estados Unidos e Canadá, seja para audiências mais transversais, como aconteceu em 2007, no contexto do festival londrino Atlantic Waves. No Queen Elizabeth Hall, numa noite muito simbólica, intitulada The Grand Divas Of Fado, reuniram-se vozes de diversas gerações, com ela a cantar ao lado de Maria da Fé, Mafalda Arnauth, Aldina Duarte ou Raquel Tavares.
Ao longo dos anos cantou poetas como Ary dos Santos, Domingos Gonçalves Costa, João Dias, César de Oliveira ou Vasco de Lima Couto e nunca perdeu a garra na forma como se apoderava dos fados, sempre de cabeça levantada, numa atitude afirmativa, cantando as relações e os desencontros amorosos, como em Fado para esta noite, Meu Corpo ou Voltaste.
Uma das suas últimas presenças em palco foi no espectáculo de Ana Moura, no Coliseu de Lisboa, em 2013. "Estas gajas, agora, imitam todas. Umas imitam-me a mim", disse ela, naquela sua maneira muito própria, na mesma entrevista de 2012, a propósito da nova geração de fadistas.