Nanni Moretti sabe algumas coisas sobre a depressão. Pode nem ser a tecla mais batida quando se analisa a sua obra, mas a depressão, a depressão psicológica, habita quase todos os seus filmes. De Ecce Bombo a Habemus Papam, passando pela Palombella Rossa ou por O Quarto do Filho, é possível descrever todos estes filme como histórias de homens (ou mulheres) deprimidos. Psicoterapia e psicanálise, de forma mais séria ou mais jocosa, espreitam quase sempre, e num dos primeiros filmes de Moretti (os Sogni d’Oro de 1981) o próprio Freud aparecia como “personagem”.
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Nanni Moretti sabe algumas coisas sobre a depressão. Pode nem ser a tecla mais batida quando se analisa a sua obra, mas a depressão, a depressão psicológica, habita quase todos os seus filmes. De Ecce Bombo a Habemus Papam, passando pela Palombella Rossa ou por O Quarto do Filho, é possível descrever todos estes filme como histórias de homens (ou mulheres) deprimidos. Psicoterapia e psicanálise, de forma mais séria ou mais jocosa, espreitam quase sempre, e num dos primeiros filmes de Moretti (os Sogni d’Oro de 1981) o próprio Freud aparecia como “personagem”.
Vem esta introdução para dizer que Minha Mãe talvez seja o filme de Moretti mais concentrado na depressão. Em sentido estrito, através da evolução das suas personagens principais (nomeadamente a de Margharita Buy, a assumir aquilo que, isso sim, é raro em Moretti: uma protagonista feminina); mas também em sentido figurado: socialmente, politicamente, e até artisticamente (a protagonista é uma realizadora em plena rodagem de um filme sobre uma greve numa fábrica), Minha Mãe é um filme sobre uma grande depressão, uma depressão total.
Não é errado, mas é curto, ver Minha Mãe como um espelho de O Quarto do Filho. Esse era um filme sobre o luto dos pais, sobre a perda súbita e inesperada. Este é um filme sobre a perda anunciada, sobre o luto dos filhos — ou mais correctamente, sobre a sua antecipação, visto que a senhora (Giulia Lazzarini, um prodígio de delicadeza enxuta) está viva durante praticamente todo o filme. A personagem da mãe não sai diminuída com isso, o olhar de Moretti sobre ela é sempre inteiro, mas o centro do filme e das suas preocupações não é tanto a velhice (pelo menos da mesma forma como em Habemus Papam), é mais aquele momento da meia idade em que a velhice passa a estar à vista. Na complexa teia emocional de Minha Mãe, e sem prejuízo do que se joga na relação entre mãe e filhos (e neta), o papel decisivo da senhora é representar esse capítulo final, fazer as outras personagens confrontarem-se com ele, e assim desencadear a crise, ou a grande depressão. É o filme que Buy está a fazer que avança mal, a realizadora cheia de dúvidas sobre o seu retrato de um conflito laboral (questão “lateral” mas que não deixa de estar presente e é obviamente uma preocupação morettiana: como abordar hoje, com justiça, sem a “retórica” que “cansa” como diz a personagem, os assuntos de política laboral); é ela que se descobre num impasse, numa espécie de vala subitamente visível a afastá-la de todos os outros — da mãe, do irmão (Moretti ele mesmo), da filha, dos ex-maridos ou ex-namorados. Esta solidão, caída como um nevão de que não se estava à espera, é o verdadeiro motor do filme, que pode, a partir dela, desenhar os contornos pouco definidos entre a realidade tangível e a realidade “interior”: os sonhos, a descrição dos sonhos, sempre na maneira mais correcta e eficaz de os filmar, ou seja, sem distorções nem sinalizações oníricas, sempre tão realistas como qualquer cena quotidiana, com o despertar e a revelação do que afinal era sonho a nunca estarem mais longe do que um simples corte e mudança de plano. Por vezes trazem mistérios, como aquela cena belíssima (ao som do Famous blue raincoat de Leonard Cohen) em que a protagonista se descobre anos atrás, numa fila enorme para um cinema onde se projecta — percebemo-lo pela alusão no cartaz, mas nunca explicitada — As Asas do Desejo de Wim Wenders. Para além de um “outro tempo” — o tempo em que os adultos iam ao cinema —, o que traz essa referência (ainda implícita num diálogo da velha senhora) ao filme de Moretti? Não é certo, e não é nada de certo, mas é algo que fica a pairar, assim como um “clima”, assim como, de resto, as palavras de Cohen naquela canção, talvez os mais desconsolados versos de abertura de qualquer canção (“são quatro da manhã no fim de Dezembro”), e tudo concorre para que este seja também o “tempo” do filme de Moretti.
Mas o mais arriscado talvez seja a inclusão da personagem de John Turturro, na pele de um actor americano que vem interpretar um papel no filme de Buy. Está sempre fora de tom, incapaz de encontrar o perfil justo, no “filme dentro do filme”, mas por inerência também sempre em “dessincronia” com o filme de Moretti, ou como um peixe fora de água — e isso atribui à personagem dele uma qualidade solitária, que se estranha primeiro e depois se entranha, como se ele fosse o reflexo bufão da personagem de Margharita Buy e acabasse por haver, no reconhecimento desse reflexo, uma possibilidade de entendimento. Também contribui para Moretti dizer algumas coisas sobre o cinema, num filme obcecado por uma ideia de justeza (e Turturro é tão mais “justo” quanto mais “falso” ou “artificioso”, num milagroso paradoxo conseguido por Moretti), mas que talvez também evoque aqueles tempos em que era frequente ver actores americanos a trocarem o aquário de Hollywood pelas “selvagens” terras italianas (Broderick Crawford no Bidone de Felllini, Steve Cochran no Grito de Antonioni, Orson Welles na Ricotta de Pasolini, e outros).
Nos seus modos “benigni-escos”, Turturro é a expressão da inquietação que a personagem de Buy abafa e interioriza. E se, para o final, está reservada a cena mais pacífica de todo o filme (a velha senhora a ajudar a neta nos trabalhos de latim — e o latim sempre como um eco profundo), essa inquietação não se resolve: Minha Mãe fecha-se entre a paz da morte e o desassossego da vida, sem um sorriso nem uma saída.