Estado Islâmico ou Daesh? Guerra de palavras, guerra de legitimidades

O Daesh e o seu líder procuram criar uma legitimidade aos olhos dos muçulmanos, pela propaganda e demonstração de força. Cabe-nos a nós, europeus, não alimentar essa suposta legitimidade.

1. As palavras são poderosas. Reflectem a maneira como nos vemos a nós próprios, ou queremos que nos vejam. Espelham uma identidade individual, social ou política. Podem conflituar com a forma como os outros nos vêem, ou pretendem ver. Evocam imagens mentais da realidade. Têm conotações positivas ou negativas. Induzem acção, ou bloqueiam-na. A luta política é um terreno clássico da guerra de palavras, para traduzir ou criar uma realidade. A manipulação da linguagem, sofisticada ou não, é incontornável na luta político-ideológica e na propaganda de guerra. Induz a acção sem reflexão, ou então inibe-a, condicionado o pensamento crítico. A estratégia foi magistralmente descrita no enredo no romance distópico 1984, de George Orwell.

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1. As palavras são poderosas. Reflectem a maneira como nos vemos a nós próprios, ou queremos que nos vejam. Espelham uma identidade individual, social ou política. Podem conflituar com a forma como os outros nos vêem, ou pretendem ver. Evocam imagens mentais da realidade. Têm conotações positivas ou negativas. Induzem acção, ou bloqueiam-na. A luta política é um terreno clássico da guerra de palavras, para traduzir ou criar uma realidade. A manipulação da linguagem, sofisticada ou não, é incontornável na luta político-ideológica e na propaganda de guerra. Induz a acção sem reflexão, ou então inibe-a, condicionado o pensamento crítico. A estratégia foi magistralmente descrita no enredo no romance distópico 1984, de George Orwell.

2. Estado Islâmico ou Daesh? A escolha não é inócua. Não é uma questão de saber qual o termo mais rigoroso, mas de legitimidade ou de recusa desta. Está aí a essência do problema que a escolha das palavras encerra. Daesh é o acrónimo em língua árabe para ad-Dawlah al-Islamiyah fi 'l-?Iraq wa-sh-Sham. Na transliteração da língua árabe para português seria Estado Islâmico do Iraque e Levante (ou Estado Islâmico do Iraque e Síria). Essencialmente, é o mesmo que o mais conhecido acrónimo da transliteração árabe para língua inglesa: ISIS (Islamic State in Iraq and Syria); ou ISIL (Islamic State in Iraq and the Levant); ou, apenas, Estado Islâmico (Islamic State). Minúcias à parte, em termos puramente linguísticos, as diferentes designações poder-se-iam considerar basicamente equivalentes. Abstraindo de outras considerações, a opção por qualquer uma delas poderia ser considerada uma mera questão de estilo. Mas não é. Estamos no terreno na luta político-ideológica e com uma guerra em curso. As palavras são instrumentos desse conflito. O seu uso não é neutral.

3. O acrónimo Daesh tem conotações fortemente negativas em língua árabe. Por isso, tem sido preferencialmente usado por todos aqueles que se lhe opõem no mundo árabe-islâmico. Em língua árabe, a palavra ecoa um termo usado para esmagar com os pés, ou seja espezinhar. A sua sonoridade e grafismo são também parecidos com “dahes" (lançar a discórdia), com uma poderosa carga histórica negativa para os muçulmanos. Evoca as divisões e batalhas entre tribos árabes, de Dahes wal-Ghabra (ou Dahis e El Ghabra, na transliteração para língua francesa), ocorridas na primeira metade do século VII, na península Arábica dos primórdios da era islâmica. Essas tribos guerreavam-se entre si antes de se converterem e unirem sob a bandeira do Islão. Para um grupo que se vê, a si próprio, como recriando um “Estado Islâmico”, chamar-lhe Daesh é uma afronta à sua identidade e legitimidade. Quando o grupo conquistou Mosul, no Iraque, em 2014, os habitantes que usavam essa designação terão sido ameaçados de punições, como cortar a língua, caso persistissem em usar essa palavra. (Ver Armen Alefi, “Daesh-État islamique: la guerre des noms à commencé” in Le Point, 22/09/2014, http://www.lepoint.fr/monde/daesh-etat-islamique-la-guerre-des-noms-a-commence-22-09-2014-1865537_24.php). Mas a designação, como “Estado Islâmico”, procura também evidenciar uma outra realidade, simultaneamente política e simbólica. A Al-Qaeda, o principal rival islamista-jihadista, não conseguiu, pelo menos até agora, criá-la no terreno. Trata-se de um poder, de facto – visto, pelos próprios, como de jure face à lei islâmica (Sharia) –, sobre um território e população. É (auto)designado como ad-Dawlah al-Islamiyah / “Estado Islâmico”. Mas a legitimidade procurada não é do Direito Internacional, tal como normalmente é aceite na comunidade internacional.

4. O sistema internacional de Estados e o Direito Internacional Público actuais têm raízes europeias. Os Tratados de Münster e de Osnabrück (1648), celebrados em Vestefália, Alemanha, pondo fim à guerra dos Trinta Anos (1618-1648), são um marco simbólico. Apontam, inequivocamente, para um passado europeu. A consequência política mais importante foi o abandono das aspirações medievais de unidade política da Cristandade Ocidental (a Respublica Christiana). Lentamente, na Europa, as comunidades políticas organizadas sob a forma de Estado soberano (ou vestefaliano), ou seja, independentes da autoridade do Papa e/ou Imperador, foram assumindo os contornos que hoje conhecemos. Mais tarde, também no resto do mundo, assistiu-se a uma progressiva institucionalização e consolidação da prática política e jurídica europeia sobre o Estado. Ficou plasmada no Direito Internacional pela influência europeia no mundo dos séculos XIX e primeira metade do século XX. A Carta das Nações Unidas reflecte-a também. Para o Daesh, a sua legitimidade não vem do sistema internacional de Estados vestefalianos. Nem do Direito Internacional Publico com raízes europeias, cristãs e seculares. A sua contestação de legitimidade é total. Pretende expurgar tudo que é visto como não islâmico. Pretende fundar o seu “Estado” na tradição política e jurídica do Islão. É, nesse contexto, que adquire sentido a (auto)proclamação de um califado.

4. Historicamente, os califas foram os sucessores do Profeta Maomé na liderança religiosa e política da umma, a comunidade dos crentes muçulmanos, a partir de 632, o ano da sua morte, no século VII da era cristã. Para o mundo islâmico em geral – e para os árabes em particular –, os tempos dos primeiros califas têm uma poderosa conotação positiva, simultaneamente por motivos seculares e religiosos. Seculares, porque é inquestionável que ocorreu uma rápida e notável expansão territorial do Islão. Os seus exércitos derrotaram aquilo que, aos olhos muçulmanos, normalmente é visto como sendo as duas potências mundiais da época: os Impérios Persa e Bizantino. Religiosas, porque essa vitória é interpretada como claro sinal da graça de Alá e de conformidade com a vontade divina. Historicamente, a fase árabe do califado perdurou, sob várias formas, até à destruição no século XIII pelo invasor Mongol. As cruzadas apenas o conseguiram ferir. Mais tarde, foi reactivado pelos turcos, sob o Império Otomano, a partir do século XVI. Manteve-se até ao século XX e à derrota do Império na I Guerra Mundial, sendo abolido em 1924, por Mustafa Kemal Atatürk. Em seu lugar, surgiu um Estado secular, a República da Turquia. A memória do califado perdura no Islão, como um passado idealizado em termos religiosos mas também políticos. É instrumentalizada pela ideologia islamista-jihadista. É dessa instituição islâmica que o Daesh e o seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, se pretendem apropriar. Procuram criar uma legitimidade aos olhos dos muçulmanos, pela propaganda e demonstração de força. Cabe-nos a nós, europeus, não alimentar essa suposta legitimidade.

Investigador