Big data: nova forma de fazer sentido

Cerca de 90% dos dados existentes actualmente foram gerados nos últimos quatro anos. O emaranhado de informação é cada vez mais complexo e obriga as empresas a repensarem a forma como fazem negócios. Um tema que estará hoje em debate numa conferência PUBLICO/EDP, em Lisboa.

Foto
Cada dia de actividade na Bolsa de Nova Iorque gera 1 terabyte de dados Spencer Platt/Getty Images/AFP

A cólera chegou a Londres numa manhã durante o verão de 1854. E a razão por que esse momento é hoje em dia recordado no mundo dos negócios prende-se com duas palavras: Big Data. Uma expressão recorrente nos dias de hoje, e que será objecto de uma conferência, esta manhã, em Lisboa, na sede da EDP, e que ilusoriamente se considera ser um tema que só agora ganhou importância.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A cólera chegou a Londres numa manhã durante o verão de 1854. E a razão por que esse momento é hoje em dia recordado no mundo dos negócios prende-se com duas palavras: Big Data. Uma expressão recorrente nos dias de hoje, e que será objecto de uma conferência, esta manhã, em Lisboa, na sede da EDP, e que ilusoriamente se considera ser um tema que só agora ganhou importância.

Os primeiros registos da doença na Grã-Bretanha datam de 1831. Um ano depois, a bactéria chegou à capital inglesa e esteve na origem de três grandes surtos, o primeiro dos quais em 1841. Mas é do de 1854 que ainda hoje se fala em muitas conferências de negócios. Porquê? Porque o mapeamento dos casos, feito pela primeira vez por um médico, John Snow, permitiu identificar a origem do problema. Há duas semanas, em Lisboa, durante a conferência Mobile Edge 15, que se realizou na sede da Microsoft Portugal, Kevin Benedict, analista da Cognizant, voltou a destacar a importância e o carácter inovador do trabalho de John Snow, que no seu tempo viu mais de 600 pessoas morrerem em menos de 15 dias. Quando naqueles dias entrou na paróquia de St. James, para dar conta da mortandade, Snow não levava uma lista de mortos, mas sim um mapa com a localização das moradas dos primeiros 83 mortos. Rapidamente se percebeu que essas vítimas viviam todas à volta de uma fonte de água, na então chamada Broad Street. “Ele pôs os dados em contexto. Não só ajudou a fundar a epidemiologia como é um exemplo da relevância que a análise de dados tem no nosso dia-a-dia””, frisou Kevin Benedict.

Moral da história: graças a Snow e ao seu “Big Data state of mind” — como lhe chamou Alon Peled, professor associado de Ciência Política na Universidade Hebraica de Jerusalém e doutorado por Harvard —, de repente pôs-se a hipótese de a cólera poder ser transmitida por água contaminada, quando antes se acreditava que ela se transmitia por via aérea, graças ao “mau ar”, isto é, do ar poluído.

O que o caso de Snow nos mostra é, na essência, o que hoje fazem cada vez mais empresas em todo o planeta: extrair conhecimento a partir de dados. Só que, actualmente, “as fontes de dados são mais diversas e dispersas”, salienta Pedro Campos, professor de Economia da Universidade do Porto. “O que tem mudado nos últimos anos, a grande velocidade, é a quantidade e a dispersão das fontes de dados com que temos de lidar”, assinala este docente que coordena uma pós-graduação em Business Intelligence.

“A ideia de criação de valor para os negócios a partir da análise de dados não é nova. No entanto, o uso efectivo dos dados no auxílio da tomada de decisão tem vindo a crescer e, hoje em dia, é genericamente aceite que nos dados reside informação relevante e insights de negócio que poderão ser determinantes no ambiente competitivo que as empresas vivem hoje em dia”, sublinha, por seu lado, Roberto Henriques, coordenador das pós-graduações em Business Intelligence do Instituto Superior de Estatística e Gestão de Informação, na Universidade Nova de Lisboa. Para Kevin Benedict, o “Big Data era no passado sobre o negócio”, mas agora “passou a ser o negócio”.

Para se ter uma ideia da ordem de grandeza da quantidade de dados que a humanidade está a gerar diariamente — e de como essa criação de dados está a acelerar —, basta pensar que 90% dos dados existentes no mundo hoje foram criados nos últimos quatro anos, de acordo com números publicados pela IBM, que é uma das empresas tecnológicas que hoje participam na conferência sobre Big Data, a realizar em Lisboa e que é uma organização conjunta entre EDP e o jornal PÚBLICO. Subordinada ao tema “Oportunidades e Ameaças da Nova Revolução nos Negócios”, a iniciativa começa às 9h, na sede da EDP, em Lisboa, e conta com dois painéis de quatro oradores, cada um subordinado a um tema específico. O tema do primeiro é “Big Data e o relacionamento com o cliente”, e conta com representantes da Google, EDP, Vodafone, Sonae e a já referida IBM. O tema do segundo é “Cibersegurança e Fraude” e nele participam representantes da PT, da EDP, da Feedzai, da Sixgill e da AnubisNetwork.

Cada dia de actividade na Bolsa de Nova Iorque gera um terabyte de informação. Uma ninharia, quando comparado com o que se passa na Internet, ou nas redes sociais, como YouTube (4000 milhões de horas de vídeo visualizados todos os meses) ou Facebook (30 mil milhões de pedaços de conteúdo partilhados todos os meses). “Dados de redes sociais, plataformas móveis e de sensores cada vez mais espalhados pelas nossas vidas permitem, conjuntamente com os dados internos da organização, a construção de análises mais detalhadas e com maior exactidão sobre os clientes dessas organizações”, observa Roberto Henriques. “Contudo, a proliferação de dados relativos às escolhas, preferências e características dos clientes vem lançar novos desafios às tradicionais fontes de vantagem competitiva das empresas. A distinção de informação relevante para o negócio versus todo o ruído gerado só é possível com a combinação de novas formas de armazenar, analisar e gerir estes dados.”

A questão crítica para ter essa competência é a existência de pessoal qualificado, já que do lado das máquinas podemos contar com o contínuo crescimento da capacidade de processamento e de armazenamento, com a cada vez maior utilização da cloud. Já em relação ao factor humano, como salienta Pedro Campos, ainda há um défice. Recentemente, a União Europeia publicou um documento em que afirmava que a Europa tem um milhão de vagas por ocupar no sector dos Sistemas de Informação, uma área vasta de actividade que inclui muitas indústrias e serviços, e do qual o Big Data, o Business Intelligence e a análise de dados é apenas uma parte. “O mercado do Big Data em Portugal está a dar os primeiros passos”, corrobora Roberto Henriques. “Muitas são as empresas que estão a iniciar este processo de inclusão de Big Data nas suas análises, mas não são ainda muitos os exemplos de integração do Big Data com o Business Intelligence mais tradicional. A área do Business Intelligence é, no entanto, uma área bem sedimentada em Portugal e com muitas empresas com provas dadas. A evolução para o Big Data está a acontecer de forma natural e estruturada”, prossegue, acrescentando: “A procura de recursos humanos com competências nesta área é já maior do que a oferta existente no mercado, pelo que essa situação tenderá ainda a agravar-se.”

Para as empresas, ter ou não ter Big Data já não é uma questão, afirma Pedro Campos. A logística, o marketing, o apoio ao cliente, as operações, a estratégia empresarial são áreas alimentadas pelo Big Data, e o conhecimento que é extraído a partir daí dá suporte à decisão de gestores de topo ou operacionais. “O impacto nas empresas é assim a diferença entre ser ou não capaz de conhecer melhor os clientes, conseguir entendê-los, melhorando os serviços de acordo com a tendência dos mesmos em quererem cada vez mais um serviço individualizado e único’”, destaca, por seu lado, Roberto Henriques.

Desde ajustar a oferta à procura em empresas como a Uber — ou como um fornecedor de energia poderá vir a fazer no futuro quando a rede de distribuição estiver ligada à Internet — passando pela gestão mais eficaz e eficiente de stocks ou matérias-primas numa indústria (ou num hospital), até elaborar perfis de consumidores de empresas de retalho, que hoje em dia registam um sem número de dados que lhes permitem compreender quem são os clientes e como podem gerir o seu negócio em função deles, há um sem número oportunidades, mas também de riscos. Como a fraude ou falhas de cibersegurança.

“Com o Big Data muda-se não apenas o paradigma em que os dados são recolhidos de forma individual e não anónima, mas também a forma como se faz essa medição, passando da percepção humana para o registo de eventos. Por exemplo, perguntar a um cliente, de forma anónima, quantas horas dorme por noite, ou a quantidade de exercício físico feito, é diferente de ter acesso aos dados registados por inúmeros sensores que medem o regime físico, os hábitos de sono, os percursos feitos em cada dia, etc. Estes dados comportamentais, sendo muito mais interessantes e ricos, podem ainda levar a maiores esforços e, consequentemente, a ataques mais sofisticados à segurança dos mesmos”, explica o mesmo docente da Universidade Nova. “Outras variáveis como a computação em nuvem e as diversas e distribuídas fontes de dados tornam a segurança dos mesmos um processo mais complexo de gerir.”

Mas também há o reverso da medalha: com as redes de distribuição inteligentes, um fornecedor de energia poderá detectar mais facilmente acessos fraudulentos ou desvios irregulares no consumo, a partir do tratamento e análise de dados. Ou a banca, com um tratamento adequado dos dados, pode mais facilmente tomar decisões de grande impacto sobre a concessão de crédito, por exemplo, ou desenvolvimento de produtos.

Num artigo publicado no início deste ano pela McKinsey, David Court, director desta consultora em Dallas, afirmava que o “mundo não se entusiasmou pelo Big Data e pela análise dos dados só porque os dados são em grande quantidade, mas também porque o potencial impacto [sobre o negócio] é enorme”. Quatro anos antes, um relatório da mesma consultora estimava que a correcta exploração do Big Data, no retalho, ajudara a aumentar a margem operacional em mais de 60%, ao passo que o sistema de saúde norte-americano (privado), conseguira reduzir os custos até 8%. Quatro anos volvidos, e apesar dos casos de sucesso como Amazon ou Google — em que a cultura dos dados faz parte da própria fundação das empresas —, “esse nível de impacto tarda em provar ser verdadeiro”. Mas isso, defende o autor, acontece também porque o Big Data implica mudanças estruturais que requerem mais tempo e implicam uma própria mudança de cultura empresarial. “Foco na gestão da mudança, desenhar tarefas e processos e incluir uma cultura de dados na cultura da empresa” são os passos mais difíceis e demorados. Como aproveitar as oportunidades e evitar os riscos? Não há um segredo prestes a ser revelado, até porque como resumia Kevin Benedict, “data is chaos”. Mas, à semelhança de um quadro de Pollock, quem consegue destrinçar o essencial do emaranhado de informação que todos os dias se tece à volta das pessoas e das empresas, estará certamente mais perto de encontrar respostas que sirvam.