“Há um Portugal novo que está a nascer”
Marisa Matias, 39 anos, é eurodeputada e candidata a Belém apoiada pelo BE. Diz ter a “vantagem” de conhecer Portugal por dentro e a partir de fora e que, “se fosse eleita, seria provavelmente a Presidente mais constitucional” até agora. Sobre o momento político? “Abriram-se janelas de esperança".
As primeiras lições de política que teve foram as narrativas sobre a clandestinidade que ouvia da boca de Álvaro Febra, um comunista que vivia em Alcouce. Soube muito nova que era de esquerda, foi esse vizinho dos avós que lhe ensinou “a pôr o nome nas coisas”. Como sempre foi boa aluna, diziam-lhe que podia ser médica. Mas, nessa altura, Marisa Matias achava que não conseguia ver sangue. Descobriu mais tarde, em Gaza e na Síria, que conseguia. Mas acabou em Sociologia. Quando leu Pela mão de Alice, do sociólogo Boaventura Sousa Santos, pensou: “É isto.”
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As primeiras lições de política que teve foram as narrativas sobre a clandestinidade que ouvia da boca de Álvaro Febra, um comunista que vivia em Alcouce. Soube muito nova que era de esquerda, foi esse vizinho dos avós que lhe ensinou “a pôr o nome nas coisas”. Como sempre foi boa aluna, diziam-lhe que podia ser médica. Mas, nessa altura, Marisa Matias achava que não conseguia ver sangue. Descobriu mais tarde, em Gaza e na Síria, que conseguia. Mas acabou em Sociologia. Quando leu Pela mão de Alice, do sociólogo Boaventura Sousa Santos, pensou: “É isto.”
PÚBLICO: É de uma pequena aldeia, Alcouce. Guardava cabras, não tinha água em casa, trabalhava a terra, fazia cerca de cinco quilómetros a pé para ir e vir da escola… De que forma Alcouce contribuiu para ser quem é hoje?
Marisa Matias: Permitiu conhecer outra forma de viver, mais em comunidade, em que dependemos mais uns dos outros. Isso é muito importante para tudo o que faço. Também o saber viver com pouco ou nada e ter tido oportunidade de absorver as conquistas da democracia na minha própria vida. Por exemplo, quando chegou água canalizada ou ter a extensão de saúde na sede de freguesia. Essas coisas percebem-se de maneira diferente quando são vividas na pele. Ficam quase como tatuagens. E também percebemos quando elas são retiradas.
É eurodeputada e já teve vários trabalhos. Fez limpezas, serviu em cafés, fez investigação académica. Este percurso vai ser valorizado?
Não sei. Orgulho-me das coisas que fiz, aprendi em todas elas. É uma liberdade enorme conseguirmos fazer várias coisas. Sou eurodeputada, mas é uma comissão de serviço que tem uma duração, não é uma profissão. Saber fazer várias coisas é sempre melhor do que saber fazer poucas.
É feminista. Como vê o facto de nunca ter havido uma mulher na Presidência da República e de só ter havido uma mulher primeira-ministra, Maria de Lourdes Pintassilgo, que não foi eleita, mas indigitada?
Não é compreensível, há muito caminho a fazer. Sendo que metade da sociedade é composta de mulheres, não é um bom sinal democrático.
Já se sentiu discriminada enquanto mulher na política e fora dela?
Sim. Podemos pensar no que se está a passar agora, por exemplo, com a candidatura às presidenciais, a quantidade de coisas que já vi sobre o primeiro outdoor que apareceu da minha candidatura. Seria impensável fazer esse tipo de comentários se a fotografia fosse de um homem [o slogan “uma por todos” originou frases como “uma para todos”]. Tem dado para as maiores derivas criativas, com uma carga discriminatória grande e de sexismo.
Por que decidiu candidatar-se à Presidência da República?
Na impossibilidade de existir um candidato único à esquerda, que unisse todas as perspectivas…
Por que não se entende a esquerda e apoia um único candidato?
Nós fizemos reuniões nesse sentido. Mas, quando terminaram as legislativas, já havia muitos candidatos. Se era um cenário pensável há uns meses, deixou de ser. O próprio contexto e cenário político em Portugal mudaram muito. Estamos num novo ciclo político. Abriram-se janelas de esperança que estavam fechadas pelo medo há muito tempo. Ouvimos as pessoas a discutir política, a política voltou a ocupar um espaço importante e central na vida das pessoas. É o espaço para mostrar que a política pode ser feita de maneira diferente e que todos os perfis são importantes para este debate político. Entendi que teria vantagem por conhecer bem Portugal por dentro e muito bem a partir de fora. Esta experiência, nos últimos anos no Parlamento Europeu, dá-me essa diferenciação em relação aos outros candidatos. É fundamental trazer esse debate para as presidenciais, porque está no centro das funções do Chefe de Estado. E há um Portugal novo que está a nascer, não sabemos qual vai ser, ainda é muito ténue para perceber. São tempos muito difíceis, complicados, mas muito interessantes para nos entregarmos a estes debates políticos, que são diferentes do que vivemos até hoje.
Quando apresentou a sua candidatura em Lisboa, disse o seguinte: "Num Palácio de Belém que cheira a bafio vai ser preciso abrir as janelas para entrar ar fresco.” Qual a pior recordação do mandato de Cavaco Silva?
Há imensas. Desde logo, não ter respeitado o que jurou respeitar e defender que foi a Constituição e que poderia ter evitado, por exemplo, as idas ao Tribunal Constitucional para verificar a constitucionalidade das leis, quando foi do corte dos salários e das pensões. Estes dois mandatos foram muito atravessados por um Presidente que foi sempre muito parcial.
Ainda está ser?
Sim. Está a demonstrar que não quer ser o Presidente de todos os portugueses. Um Presidente de facção, que protege um conjunto de interesses muito específicos, mas não o de Portugal.
O que devia fazer Cavaco Silva agora? Ou o que faria Marisa Matias se fosse agora Presidente?
O que eu faria é não confundir as funções e os deveres de um Presidente ou de uma Presidente com os de outros órgãos de soberania como a Assembleia da República. Cabe ao Presidente nomear um Governo, não lhe cabe aprová-lo ou rejeitá-lo. A decisão de Cavaco Silva em nomear para o Governo Passos Coelho é uma decisão que, do ponto de vista formal, jurídico, é legítima, mas quando a tomou sabia que já não havia um apoio parlamentar para esse Governo. Sabia que o desfecho ia ser a aprovação da moção de rejeição.
O que faria?
O Presidente sempre falou tanto de estabilidade e acabou por converter-se no maior factor de instabilidade da democracia em Portugal. Se o Presidente é um árbitro da democracia, não pode apitar sempre a favor da mesma equipa. Não pode aceitar ou nomear apenas governos de que gosta. Tem de estar à altura de nomear um Governo que é a vontade dos portugueses. Se eu, daqui a quatro anos for Presidente da República e se Pedro Passos Coelho chegar ao Palácio de Belém com uma proposta de Governo que tenha o apoio maioritário da Assembleia da República, não hesitarei em nomear Passos Coelho como primeiro-ministro. Porque depois será a Assembleia da República, com o seu apoio maioritário, que lhe poderá aprovar ou não o seu Governo. Da mesma maneira, Cavaco Silva não devia hesitar nem um segundo. É uma questão simples e básica de fazer cumprir a Constituição.
Quando anunciou que a apoiava, o Bloco de Esquerda disse que Marcelo Rebelo de Sousa era “retrógrado”? É? Porquê?
Marcelo Rebelo de Sousa esteve mais de 10 anos com um palco privilegiado, com uma exposição mediática enorme, em que chegou a muitos portugueses e muitas portuguesas nos seus comentários semanais e não usou esse espaço para defender a Constituição, quando ela foi atacada. Não me dá garantias, nem a mim, nem aos portugueses, que o vá fazer. Reconheço que Marcelo Rebelo de Sousa se apresenta de forma diferente, mais simpático, mais sorridente, mais aberto, mas não deixa de ser um Presidente associado aos interesses que têm destruído este país e que não têm permitido a democracia florescer e completar-se como devia. É um conjunto de factores que não dão garantias de que seja o Presidente que nós precisamos para um novo Portugal que se está a construir. Se estamos num ciclo político novo, precisamos não só de novos protagonistas ou novas protagonistas, mas também de maneiras muito diferentes de fazer política.
Acha possível uma segunda volta?
Espero que haja. Bater-me-ei para que haja. A multiplicação de candidaturas à esquerda pode ajudar.
Pondera desistir em alguma circunstância antes da segunda volta?
Apresento-me com a intenção de ir a votos e de disputar a segunda volta.
Mas não afasta completamente a possibilidade de haver uma circunstância em que desista?
Irei bater-me com todas as forças para ir até ao fim e para disputar a segunda volta. As sociedades são sempre processos em transformação e as pessoas que estão na política estão ao serviço das sociedades e não ao contrário. Nunca digo nunca, mas uma coisa digo com toda a convicção neste momento: farei tudo o que estiver ao meu alcance para disputar a segunda volta.
Como tem visto a intervenção de Sampaio da Nóvoa?
Com nenhuma dificuldade. Não tenho nenhuma crítica especial a apontar. Gostaria provavelmente de, em alguns momentos, ver mais clareza na tomada de posições, em relação a algumas questões que são fundamentais, mas cada um sabe da sua candidatura. Mas não tenho nada a apontar e sei que, no fim de contas, o objectivo é comum.
Por que não o apoia?
Temos um conjunto de candidatos e candidatas com trajectórias muito semelhantes, embora defendam programas diferentes. Mas, se não sentisse que pudesse trazer ou acrescentar alguma coisa de novo a esta campanha, não me apresentaria. Sinto que posso fazê-lo nesse eixo estratégico que é o da relação de Portugal com as instituições europeias e o Portugal a partir de dentro e visto de fora.
E como tem visto a intervenção de Maria de Belém?
Também haverá coisas em comum, mas, e aqui de forma mais evidente, penso que é necessário que tenha posições muito claras em relação a todos os temas, sem margem para dúvidas.
Como vai ser a sua campanha? O que vai privilegiar em termos de meios e de mensagens?
Vai ser uma campanha com pouca pompa, mas muita circunstância. Não vai ser de muitos recursos. Quero que seja de proximidade. Vou procurar, na medida do possível, que sejam trazidas vozes a esta campanha que normalmente estão ausentes ou silenciadas na sociedade portuguesa. Há sectores da população, grupos sociais que têm estado demasiadamente invisibilizados e é preciso dar-lhes voz. A política é das pessoas.
No seu mandato, o que pretende privilegiar?
O cumprimento da Constituição. É o que toda a gente diz, mas nos últimos dez anos não foi cumprida. Por aquilo que é o meu posicionamento político, os valores e linhas programáticas que defendo, não tenho muitas dúvidas de que, se fosse eleita, seria provavelmente a Presidente mais constitucional que Portugal alguma vez teve. Em que havia uma maior convergência entre o programa político que defendo e o que está inscrito na Constituição. Não há nenhuma cedência que tenha de fazer, não tenho de fingir nada, abdicar de nada e a Constituição não tem de abdicar de nada também para se fazer cumprir. Nesse sentido, obviamente a prioridade é nas áreas em que há uma zona mais cinzenta, as mais sacrificadas e que têm a ver com os direitos sociais. Saúde, educação, cultura, habitação, os direitos do trabalho.
O que fez no dia em que o Governo de direita foi derrubado por uma maioria de esquerda na Assembleia da República? Foi festejar?
Estava em Bruxelas, andei a correr o dia todo, com imensas reuniões e compromissos. Mas tive sistematicamente no gabinete uma ligação permanente às notícias em Portugal. Não pude festejar, mas vivi com a alegria o ter visto pela primeira vez as três bancadas à esquerda a aplaudirem juntas uma votação.
Uma das causas pelas quais tem lutado é a dos refugiados. Os recentes atentados em Paris vão fazer crescer os nacionalismos, os discursos xenófobos?
Infelizmente já começaram. A resposta tem de ser solidariedade. Tenho apresentado inúmeras vezes uma proposta no Parlamento Europeu, que nunca passa, que é haver um embargo por parte dos países europeus à venda de armas para os territórios, conflitos e grupos armados que estão a fazer esta guerra, e à compra de petróleo. Gostava que houvesse um compromisso assinado por todos governos europeus para não haver um litro de petróleo ou gasolina nos nossos carros com origem nos poços controlados pelo autoproclamado Estado Islâmico.