O homem em queda
Sem piedade pelo leitor, Hermann Ungar faz um retrato expressionista dos abismos da condição humana, dos lugares onde o instinto prevalece sobre a moral
Publicado em 1923, o romance Os Mutilados encabeçou a lista das obras literárias a destruir pelo regime nazi, acusado de obscenidade e, como toda a obra expressionista, de ser “arte decadente”. O seu autor, Hermann Ungar (Morávia, 1893 – Praga, 1929) – nascido numa rica e poderosa família judia – fizera durante algum tempo parte do “Círculo de Praga”, onde privara, entre outros, com Franz Kafka e Max Brod (em Berlim, fora também amigo de Alfred Döblin e de Joseph Roth). Como alguns daqueles que viveram a primeira Guerra Mundial (e que esperavam uma segunda), também Hermann Ungar testemunhou o fim do sonho humanista, sendo influenciado pela filosofia de Nietzche e pelas teorias do inconsciente de Freud. Deus morrera, o Homem estava só e despido diante do seu abismo; aqueles eram os anos do expressionismo alemão, da oposição consciente a uma sociedade burguesa imersa no racionalismo, e em que as artes (com todos os seus cenários exagerados e personagens muito distorcidas) eram expressão da subjectividade emocional e psicológica, de tudo aquilo que emanava do inconsciente. Como notou Cioran, o Homem não se converte numa besta, mas simplesmente dá-se conta de que o é.
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Publicado em 1923, o romance Os Mutilados encabeçou a lista das obras literárias a destruir pelo regime nazi, acusado de obscenidade e, como toda a obra expressionista, de ser “arte decadente”. O seu autor, Hermann Ungar (Morávia, 1893 – Praga, 1929) – nascido numa rica e poderosa família judia – fizera durante algum tempo parte do “Círculo de Praga”, onde privara, entre outros, com Franz Kafka e Max Brod (em Berlim, fora também amigo de Alfred Döblin e de Joseph Roth). Como alguns daqueles que viveram a primeira Guerra Mundial (e que esperavam uma segunda), também Hermann Ungar testemunhou o fim do sonho humanista, sendo influenciado pela filosofia de Nietzche e pelas teorias do inconsciente de Freud. Deus morrera, o Homem estava só e despido diante do seu abismo; aqueles eram os anos do expressionismo alemão, da oposição consciente a uma sociedade burguesa imersa no racionalismo, e em que as artes (com todos os seus cenários exagerados e personagens muito distorcidas) eram expressão da subjectividade emocional e psicológica, de tudo aquilo que emanava do inconsciente. Como notou Cioran, o Homem não se converte numa besta, mas simplesmente dá-se conta de que o é.
Na prosa perturbadora de Hermann Ungar, Os Mutilados é o relato da vida de Franz Polzer – uma espécie de paradigma do homem que se deixa alienar pela escravidão do trabalho ao mesmo tempo que nega a sua natureza. Desde os vinte anos de idade que é funcionário de um banco (passaram entretanto dezassete anos), “nunca lhe passou pela cabeça que poderia fazer outra coisa que não ir dia após dia ocupar a sua cadeira”, não houve um único dia em que tivesse faltado ao trabalho, às oito menos um quarto de todas as manhãs dirigia-se ao seu escritório, “alheado e sem se fazer notar, mais um entre os demais”. O inesperado, o insólito, são para ele um perigo que teme mais do que tudo, a ordem na disposição dos objectos, o controlo completo das situações, são a sua maneira de fuga. A assiduidade, a pontualidade, “a inevitável infalibilidade de como seria o dia seguinte”, já tinham começado então a aniquilá-lo.
Nascido numa família sem posses, órfão de mãe, Polzer fora criado pelo pai, “um sujeito duro, trabalhador e fechado”, e por uma tia, irmã do pai; foi severamente maltratado por ambos na infância, sujeito a humilhações. Vive num quarto humilde alugado a uma viúva, a senhora Porges, mulher de uma sexualidade exacerbada, cujo risco no cabelo lhe faz lembrar a tia (é recorrente a imagem da sua infância em que viu e ouviu, uma noite, o pai visitar a irmã no quarto desta), e que se afirma através da dominação sexual de Polzer (numa relação sadomasoquista, sem jogo, em que apenas conta o prazer da humilhação infligida e a despersonalização). São as memórias do pai e da tia que o dominam. “Queria pedir à viúva que desmanchasse o risco do cabelo, mas não o ousava. Pensava que assim seria tudo mais fácil, se ela desmanchasse o risco do cabelo. Assim não teria aquele pensamento, aquele pensamento pecaminoso e blasfemo de o fazer com a irmã que nunca tivera.”
Polzer é incapaz de ultrapassar os problemas emocionais que lhe foram causados pelas experiências traumáticas da infância, ele é o homem em queda que se descobre horrorizado diante do abismo que é ele próprio. Está desesperado, perturbado perante a depravação e a violência atávica. Um ego que tem o inconsciente como tirano. Franz Polzer torna-se apático e asténico, inseguro, incapaz de se auto-afirmar, afastado do mundo fecha-se em si próprio, nega a sua natureza, tem vergonha do sexo, tem medo de decidir e de ser ele próprio.
Karl Fanta é o único amigo de Franz Polzer. Oriundo de uma família rica, o seu pai ajudou Franz economicamente quando este decidiu deixar a casa do pai e da tia. Foram companheiros de estudos. Karl Fanta combateu na guerra e voltou doente, mental e fisicamente. Vive numa cadeira de rodas pois tem as pernas amputadas, em pouco tempo também um braço lhe será cortado. Tortura psicologicamente a mulher para se afirmar por pura maldade. Passado algum tempo, e para que seja tratado por um enfermeiro, Sonntag (antigo talhante e homem beato para quem a religião é um eterno retorno à expiação dos pecados pela via da humilhação), Karl Fanta muda-se para a casa da viúva Porges, onde também vive Franz Polzer. Habitam agora naquela casa, quatro seres mutilados, desumanizados, sem qualidades morais. Cada um deles reage de maneira diferente frente ao horror da visão do abismo.
Os Mutilados – romance em que o autor não mostra qualquer piedade pelas personagens (nem pelo leitor) – é um grandioso retrato expressionista e uma viagem, numa atmosfera opressiva e doentia, aos abismos da condição humana quando o instinto prevalece sobre a moral.