O pavilhão que atravessou o Atlântico

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As notícias mais recentes sobre os projectos de reabilitação que, segundo técnicos da Câmara Municipal de Lisboa, poderão pôr em causa a identidade do Pavilhão Carlos Lopes levaram-me a subir o Parque Eduardo VII para olhar novamente para o velho Pavilhão dos Desportos. Parecia, à primeira vista, uma viagem pequena, mas acabou por me levar muito mais longe do que o previsto.

O pavilhão lá estava, naquele silêncio magoado dos edifícios que foram sendo esquecidos pelas suas cidades. Dois homens olhavam para ele com curiosidade, mas de resto não havia mais do que carros — o local em redor é hoje um parque de estacionamento — e alguns sem-abrigo. A decadência é grande: as estátuas estão sujas e perderam partes, faltam azulejos em quatro painéis de Jorge Colaço representando um Portugal épico (Cruzeiro do Sul, A Ala dos Namorados, Batalha de Ourique e Sagres), as portas estão fechadas, os vidros partidos.

Mas, seja qual for o futuro que lhe estiver reservado, vale a pena conhecer o passado deste edifício que já viveu grandes aventuras. Projectado pelos arquitectos Guilherme e Carlos Rebello de Andrade e Alfredo Assunção Santos, foi criado inicialmente para ser o pavilhão português na Exposição Universal do Rio de Janeiro, que se realizou entre Maio de 1922 e Março de 1923. Fabricado em Portugal, foi mandado para o Brasil onde desempenhou com dignidade o seu papel como Pavilhão Português das Indústrias.

A exposição brasileira foi grandiosa. Era a primeira grande festa depois do fim da I Guerra Mundial e, além disso, o Brasil, que comemorava 100 anos de independência, queria mostrar ao mundo o seu desenvolvimento. Os países participantes ergueram pavilhões faustosos e no Rio de Janeiro surgiu uma gigantesca cidade nova, que foi visitada por três milhões de pessoas.

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Quando tudo terminou, aquele que viria a ser o Pavilhão dos Desportos de Lisboa não voltou imediatamente a casa e, em 1925, ainda recebeu a Primeira Exposição de Automobilismo do Rio de Janeiro. Quatro anos mais tarde, é finalmente desmontado e, em peças, inicia a travessia do Atlântico até Lisboa e, mais exactamente, ao Parque Eduardo VII, onde volta a ser montado a tempo de inaugurar a Grande Exposição Industrial Portuguesa, em Outubro de 1932.

Curiosamente, quando se procura na Internet alguma referência a esta Grande Exposição Industrial, o que se encontra não são imagens da inauguração do pavilhão, mas sim do que se passou em frente dele. O pequeno filme, realizado por Raul Reis e Salazar Diniz e disponibilizado pela Cinemateca Portuguesa, intitula-se África em Lisboa – Os Indígenas da Guiné na Grande Exposição Industrial Portuguesa.

As imagens iniciais são do mar e de um mapa. Logo passamos para outro plano em que julgamos reconhecer as árvores do Parque Eduardo VII, mas rapidamente a câmara leva-nos até à Aldeia Nova de Sam Corlá (o nome está escrito em português e em árabe). A legenda (o filme está sem som) é esclarecedora: “…onde nada lhes falta”. Estamos em África mas não saímos do parque no centro de Lisboa e o pavilhão está mesmo ali ao lado.

Vemos galinhas, cabras, palhotas, homens e mulheres de trajes tradicionais, a tratar os animais e a varrer o chão de terra com um feixe de pequenos ramos de árvore. Outra legenda: “Descascando o arroz, o seu principal alimento”. As mulheres trabalham, como se estivessem em África, lançando de vez em quando um olhar para a câmara. Os homens dedicam-se a artes e ofícios tradicionais. Percebe-se que são muçulmanos.

As legendas, desconcertantes, informam-nos que entre eles há um príncipe e uma princesa, sua irmã: “A fina flor da Guiné, cujos olhos mentem por não terem fé”. É o espectáculo do outro naquilo que pode ter de mais humilhante — e que chega ao ponto de, num capítulo intitulado “Indiscrições da objectiva”, acompanhar algumas das guineenses enquanto elas, nuas da cintura para cima, se lavam.

A minha intenção era contar o resto da história do Pavilhão dos Desportos (nome que passou a ter a partir de 1946), os grandes campeonatos desportivos, sobretudo de hóquei, as festas, os espectáculos, os comícios políticos, a nova mudança de nome, em 84, para Pavilhão Carlos Lopes, e, nos últimos anos, o encerramento por falta de condições e a decadência.

Mas a verdade é que o espaço desta crónica acabou e, como me acontece muitas vezes, a viagem levou-me para outros lados e acabei por me deter na tristemente anacrónica aldeia africana em pleno Parque Eduardo VII, aos pés de um pavilhão vindo do Rio de Janeiro para uma Lisboa que ainda não tinha aprendido a olhar o mundo.