Delaunay: Eles vieram por causa da guerra mas foi pela luz que ficaram
Sonia e Robert Delaunay viveram mais de um ano em Portugal, durante a Primeira Guerra. Um tempo feliz em que os dois pintores trabalharam com Viana e Amadeo. Exposição na Gulbenkian volta a juntá-los.
Numa casa frente ao mar, com cactos no jardim, tiveram aquilo a que ela chama a “vida sonhada”, trabalhando de manhã à tarde, tranquilamente. Vila do Conde era “um mundo à parte”, feito de “casas brancas, de um branco brilhante”, e de “mulheres hieráticas como formas antigas”. Um mundo que se revelava nos pormenores - das cores dos xailes às “melancias verde-escuras, por dentro vermelho-vivo a desmaiar em rosas”. É esta a memória – a cores - que a pintora Sonia Delaunay guarda da sua chegada a Portugal com o marido, Robert. É pelo menos assim que a regista na autobiografia Nous irons jusqu’au soleil, publicada em 1978, um ano antes da sua morte.
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Numa casa frente ao mar, com cactos no jardim, tiveram aquilo a que ela chama a “vida sonhada”, trabalhando de manhã à tarde, tranquilamente. Vila do Conde era “um mundo à parte”, feito de “casas brancas, de um branco brilhante”, e de “mulheres hieráticas como formas antigas”. Um mundo que se revelava nos pormenores - das cores dos xailes às “melancias verde-escuras, por dentro vermelho-vivo a desmaiar em rosas”. É esta a memória – a cores - que a pintora Sonia Delaunay guarda da sua chegada a Portugal com o marido, Robert. É pelo menos assim que a regista na autobiografia Nous irons jusqu’au soleil, publicada em 1978, um ano antes da sua morte.
O casal de artistas vem de Madrid com um filho pequeno, Charles, e encontra no Norte do país uma espécie de paraíso à espera de ser descoberto. A Primeira Guerra Mundial impede-os de regressar a França. Ficam em Portugal entre Maio de 1915 e Janeiro de 1917, com uma estadia em Vigo e uma acusação de espionagem pró-alemã pelo meio. Pintam muito e, garante Sonia, fazem progressos nas suas pesquisas sobre a cor e o movimento.
É neste período que intensificam a sua relação – pessoal e de trabalho – com artistas portugueses como Eduardo Viana, Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros e José Pacheco (autor da capa do primeiro número da revista modernista Orpheu), e com o americano Samuel Halpert, hoje pintor esquecido, que acabaria por se tornar seu agente no Estados Unidos.
Algumas das obras que nasceram neste período – ou por ele influenciadas – estão agora em exposição no Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. O Círculo Delaunay (até 22 de Fevereiro) reúne 100 pinturas e desenhos da colecção da casa, mas também de particulares e de museus como o Pompidou (Paris) e o Metropolitan (Nova Iorque). Cerca de metade é da autoria do casal francês (ela de origem ucraniana) e as restantes de alguns dos artistas deste núcleo que chegou a ter Vila do Conde e o Minho (Valença e Monção) por epicentro. Há muitas coisas que as aproxima – como o artesanato e a poesia de Arthur Rimbaud -, mas isso não significa que os portugueses aderissem sem reservas às pesquisas e experiências pictóricas dos Delaunay.
Natureza comestível
Boa parte da ligação que o casal estabelece com Portugal assenta na luz, que diziam ser crua, límpida, e capaz de criar contrastes fortes. É claro que os mercados e feiras populares, com o seu artesanato e danças, os lenços coloridos das mulheres e a generosidade das pessoas, em particular a de Beatriz, a empregada que se ocupa de Charles e que lhes serve muitas vezes de modelo, também contam, mas não são determinantes.
“O que lhes interessa verdadeiramente é a nossa luz, límpida, porque é ela que faz as cores falarem, vibrarem. É ela que os agarra a Portugal”, explica Ana Vasconcelos, a comissária desta exposição, cujo catálogo conta com textos de outras investigadoras, como Joana Cunha Leal, Mariana Pinto dos Santos ou Margarida Mafra.
Em muitas das obras que agora se podem ver no Centro de Arte Moderna notam-se bem as intensas pesquisas dos Delaunay envolvendo luz, cor e movimento, que têm nos seus discos, os que se vêem em obras como Marché au Minho (Sonia Delaunay, 1916) ou Natureza-Morta Portuguesa ou Sinfonia de Cor (Robert Delaunay, 1915-17), um dos seus principais reflexos.
Os mesmos discos que depois chegam à obra de Viana e de Amadeo, sem que estes artistas tenham “professado” por completo ao simultaneísmo que Robert tanto defende, com base no estudo do círculo cromático e na ideia dos contrastes simultâneos das cores desenvolvida por Michel Eugène Chevreul. Este teórico argumentava que era ao nível da percepção que a cor variava de forma mais complexa, esclarece a comissária no texto que assina no catálogo, “consoante a proximidade ou o afastamento de determinadas cores entre si”.
Segundo Chevreul, cores complementares como o azul e o laranja realçavam-se mutuamente, ao passo que cores mais próximas no espectro cromático, como o amarelo e o laranja, tendiam a misturar-se quando colocadas uma ao lado da outra. Robert Delaunay (1885-1941) ancora nesta teoria o seu trabalho, tratando o movimento a partir da cor, “linguagem universal”, e valorizando o que o rodeia.
“Os discos são a transposição para a pintura das observações que Robert faz da natureza”, acrescenta ao PÚBLICO a comissária, lembrando que Sonia Delaunay (1885-1979) dizia que o marido costumava fitar o sol do meio-dia até ficar encadeado, até começar a ver manchas negras quando desviava o olhar para outros objectos ou superfícies. “Mas o simultaneísmo é mais do que uma corrente que ele quer explorar na pintura, é uma filosofia que orienta tudo.” Uma filosofia que defende que a vida é movimento, e movimento simultâneo.
Até chegarem a Vila do Conde, lembraria Sonia mais tarde, demonstrando porque encarava o período português como um “avanço na evolução geral” das pesquisas do casal, Robert nunca se dedicara verdadeiramente às naturezas-mortas. Foram os legumes e o folclore do norte que o levaram a pintar do natural.
“As mulheres que ele pintava, como La Femme au Potiron, eram nossas criadas, passava-se em família, nunca usávamos modelos do exterior, estas criadas eram perfeitas”, escreve a pintora, traçando em seguida o trágico destino de outros protagonistas: “Os patos posavam para os nossos retratos e naturezas-mortas. Comíamo-los quando terminávamos o estudo. O mesmo com as frutas e os legumes.”
Cooperativa de independentes
Amadeo (1887-1918) e Viana (1881-1967) acabam por incorporar na sua pintura os “discos órficos” dos Delaunay – este é outro dos nomes por que ficaram conhecidos -, mas fazem-no à sua maneira e sem nunca abdicar de outras influências contemporâneas que o casal de artistas rejeita, como o futurismo e o cubismo. Viana, sublinha Vasconcelos, é o mais próximo do casal, embora a sua pintura, salvo excepções como A Revolta das Bonecas (1916), seja a mais estática. Amadeo vê-os como pares: são seus amigos – convivem desde os tempos em que este pintor de Manhufe vivia em Paris – mas também são um “passaporte” para a divulgação da sua obra fora de Portugal. Almada é, segundo a comissária, o que mais se rende às suas ideias, sobretudo as que envolvem movimento, e à personalidade de Sonia, a quem chama “madrinha” na dedicatória que lhe faz do seu Manifesto Anti-Dantas.
“O Amadeo brinca com os discos mas desvirtua-os, transforma-os em outras coisas, com o génio imediato que põe em tudo o que faz”, mesmo quando é a contragosto, acrescenta Ana Vasconcelos, apontando para vários dos layouts que faz para os álbuns das Expositions Mouvantes da Coporation Nouvelle (Nova Corporação), um projecto ambicioso que acaba por falhar e que passava por criar oportunidades – reais e no papel, sob a forma de catálogos – de mostrar a produção de uma “cooperativa” de autores e artistas composta pelos Delaunay, Viana, Amadeo, Almada, o pintor russo Vladimir Baranov-Rossiné e os poetas Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars. Um grupo que, segundo Robert, nasce da “necessidade de entreajuda das artes mais do que nunca em perigo, mais do que nunca uma realidade universal”.
“Não se pode olhar para a Nova Corporação como se olha para uma escola, com uma linguagem una”, esclarece Vasconcelos, lembrando que o próprio Amadeo faz questão de frisar que cada um mantém a sua maneira de pensar e de fazer, como é natural numa cooperativa de artistas independentes.
Este grupo em que os poetas têm grande peso planeia fazer uma série de exposições itinerantes, dentro e fora da Península Ibérica, mas os seus projectos acabam gorados, organizando apenas uma mostra internacional, em Estocolmo, graças aos contactos de Amadeo e do casal com um galerista italiano radicado na capital sueca, Arturo Ciacelli, um futurista.
“O Amadeo esforça-se muito para que as Exposições Itinerantes se façam, mas isso acaba por não chegar. E creio que esse é um dos motivos para o seu afastamento dos Delaunay”, algo que, lembra a comissária, leva a que Sonia nem sequer o mencione nas suas memórias, ao passo que a Eduardo Viana chama “o nosso companheiro português”. “O Amadeo trata-os como pares, não os venera, como o Almada [1893-1970]. E é ele que a socorre quando ela é presa.” Em Abril de 2016, com Robert já em Vigo, Sonia é acusada, no Porto, de esconder mensagens encriptadas para os alemães nos discos das suas pinturas. Em poucos dias fica livre para se juntar ao marido, não sem que Viana e Beatriz, a criada, sejam acusados de cumplicidade. “Ela apaga o Amadeo das suas memórias, mas não sabemos exactamente porquê.”
O que se sabe é que os três – Sonia, Amadeo e Viana – partilharam várias vezes temas e objectos na sua pintura. Com as bonecas de panos tradicionais e os brinquedos do Minho, em madeira e cerâmica, à cabeça. Em Vigo, a pintora sentia-lhes a falta e chegou a pedir a Viana que percorresse mercados e feiras para comprar alguns e lhos enviar para Espanha.
“É claro que eles se contaminam – a convivência faz isso às pessoas – mas mantêm-se muito autónomos. Em La Petite e na Revolta das Bonecas, por exemplo, vê-se bem a influência de Sonia no trabalho de Eduardo Viana”, mas é na Rendeira de Vila do Conde, a que o pintor se refere como o seu “grande Vermeer", que aplica verdadeiramente a teoria cromática simultaneísta, escreve Vasconcelos no catálogo desta exposição. “Na Rendeira também está uma reinterpretação dos lenços do Minho de que a Sonia tanto gostava. Ela – ou melhor, eles – transformavam todos estes objectos populares, artesanais, em objectos modernistas.”
Sonia Delaunay, em particular, detinha-se nos padrões dos tecidos e nas particularidades das peças de cerâmica, antecipando a sua veia de “designer antes do design”. Exuberante e intuitiva por natureza, contrastava com o marido, mais sereno e cerebral. Os dois encontravam-se na pintura e na dança – “adoravam os bailes populares” – e guardaram boas lembranças do “tempo português”.
Viana sentiu-lhes a falta. Foi ele que chegou a viver com os Delaunay na casa de Vila do Conde, “La Simultanée”, onde lhe ensinaram a fixar as tintas com cera, de forma a tornar mais aveludadas as cores. Foi ele que chegou a escrever-lhes, quando estava prestes a regressar de uma viagem a Lisboa: “Levo-vos num lindo saco simultâneo belas laranjas da Baía […] Gostava tanto de vós, gosto muito de vós.”