O autor de cinema que não faz cinema de autor
Em 1968, Barbet Schroeder foi a Ibiza rodar More na casa da mãe. Em 2014, voltou lá para contar uma versão livre da sua história em Amnésia. Em Lisboa fez a ponte entre o primeiro e o último filme de uma carreira idiossincrática.
O percurso de Barbet Schroeder, 74 anos, filho de pai suíço e mãe alemã nascido no Irão, criado na Colômbia e radicado em França, é um dos mais peculiares do cinema do último meio século. Ora veja-se: integrante da geração dos Cahiers du Cinéma que lançou a Nouvelle Vague (foi mesmo assistente de Godard em Os Carabineiros), produziu Jacques Rivette, Jean Eustache ou Éric Rohmer através dos Films du Losange, que fundou em 1962 (e que continuam a produzir gente como Michael Haneke ou Jacques Doillon). Arauto da contra-cultura com More (1969) e O Vale dos Perdidos (1972) e documentarista de vanguarda com O General Idi Amin Dada (1974) ou O Advogado do Terror (2007), cuja dimensão de encenação antecipou filmes como O Acto de Matar, encontrou igualmente um cantinho em Hollywood com êxitos como Reveses da Fortuna (1990), Jovem Procura Companheira (1992) ou Crimes Calculados (2002) – e continuou a ser um cineasta independente que vai às ruas de Medellín rodar Nossa Senhora dos Matadores (1999) ou adapta Charles Bukowski em Barfly - Amor Marginal (1987).
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O percurso de Barbet Schroeder, 74 anos, filho de pai suíço e mãe alemã nascido no Irão, criado na Colômbia e radicado em França, é um dos mais peculiares do cinema do último meio século. Ora veja-se: integrante da geração dos Cahiers du Cinéma que lançou a Nouvelle Vague (foi mesmo assistente de Godard em Os Carabineiros), produziu Jacques Rivette, Jean Eustache ou Éric Rohmer através dos Films du Losange, que fundou em 1962 (e que continuam a produzir gente como Michael Haneke ou Jacques Doillon). Arauto da contra-cultura com More (1969) e O Vale dos Perdidos (1972) e documentarista de vanguarda com O General Idi Amin Dada (1974) ou O Advogado do Terror (2007), cuja dimensão de encenação antecipou filmes como O Acto de Matar, encontrou igualmente um cantinho em Hollywood com êxitos como Reveses da Fortuna (1990), Jovem Procura Companheira (1992) ou Crimes Calculados (2002) – e continuou a ser um cineasta independente que vai às ruas de Medellín rodar Nossa Senhora dos Matadores (1999) ou adapta Charles Bukowski em Barfly - Amor Marginal (1987).
A retrospectiva que lhe foi dedicada durante o último Lisbon & Estoril Film Festival, e que o trouxe a Lisboa permitiu desenhar melhor esse percurso e sublinhou o que o próprio afirmou em conversa com o PÚBLICO. Barbet Schroeder é alguém que resiste teimosamente à ideia de ser um “autor” - “tenho medo de começar a macaquear-me”, disse. Mas existe um inevitável “cordão umbilical” que liga dois filmes seus em simultâneo esta semana nas salas portuguesas, depois de terem primeiro feito “dobradinha” fora de concurso em Cannes 2015, e tido ante-estreia durante a retrospectiva.
De um lado o novo Amnésia, primeira longa de ficção em sete anos, ambientada nos anos 1990 e livremente inspirada na própria mãe de Schroeder, Ursula, e na sua relação complexa com a Alemanha que abandonou durante a ascensão do nazismo. Do outro, More, a sua estreia na longa-metragem em 1969, retrato à la minuta da contra-cultura jovem de finais dos sixties, com banda-sonora escrita pelos Pink Floyd. Ambos foram rodados, a quase 50 anos de intervalo, na mesma casa de Ibiza - uma construção modernista arquitectada por Raoul Haussmann em 1935 perto de San Antoní, que Ursula Schroeder comprou em 1951 para aí se instalar a tempo inteiro alguns anos mais tarde. Tal como Martha (a heroína de Amnésia, interpretada pela actriz suíça Marthe Keller), Ursula recusava-se a falar a sua língua materna, incapaz de esquecer os crimes alemães durante a II Guerra Mundial. E foi essa ligação prática entre os dois filmes o inevitável ponto de partida da conversa.
A ideia de mostrar More a par de Amnésia fazia originalmente parte do projecto?
Não, de todo. Só que tudo se passa na casa da minha mãe, e, indo mais longe, fala-se da Alemanha nos dois filmes. O [crítico] Serge Daney falava de More como um grande filme alemão devido ao seu tema: um romance de aprendizagem de um jovem alemão em direcção ao sul, ao sol. O que me interessa nos paralelos entre os dois filmes é que em More, o jovem que parte depois dos estudos terminados inicia a sua aprendizagem indo para Ibiza e encontra uma mulher fatal. Uma mulher moderna, de T-shirt, mas que lhe vai ser fatal. E em Amnésia, um jovem parte para descobrir a sua vida, a sua arte, e encontra em Ibiza uma mulher extraordinária, que o levará mais longe na sua vida e na sua arte.
Em More há um movimento em direcção à morte, em Amnésia em direcção à vida...
Exactamente. E esse movimento é impulsionado por alguém que está mais perto da morte do que da juventude…
Era evidente para si que essa mulher tinha de ser Marthe Keller?
Sim, por causa da sua calma, da sua luminosidade. E também por ser uma excelente actriz. É alguém que transporta o filme aos ombros, o que nem sempre é fácil com uma personagem assim, com tantas contradições, e muito próxima da sua própria experiência: ela viveu situações idênticas, assistiu a conflitos entre o pai e o tio que estavam muito próximos dos conflitos entre a sua personagem e a da mãe de Jo.
Há um lado de graça, de enorme generosidade na interpretação dela...
Era essa a minha obsessão! Estou a falar de alguém muito livremente inspirado na minha mãe, precisava de encontrar um equilíbrio - fazer com que a personagem tivesse uma leveza Mozartiana e não estivesse sempre a julgar, que não estivesse apenas virada para o passado. Era preciso uma actriz que fizesse dela uma personagem sedutora. A Marthe compreendeu isso muito bem. Caso contrário, poderia ter ficado um pouco hippie, um pouco moralista.
Marthe Keller agora, antes Faye Dunaway [Barfly], Bridget Fonda e Jennifer Jason Leigh [Jovem Procura Companheira], Sandra Bullock [Crimes Calculados], Glenn Close [Reveses da Fortuna]… É verdade que Jeremy Irons ganhou o Óscar consigo, mas são mais as actrizes a quem deu grandes papéis. Sente-se mais próximo das actrizes?
É muito subjectivo, não sei... Mas sinto que com as actrizes estamos mais próximos do coração do cinema. A colaboração com o director de fotografia é essencial. É preciso que a fotografia consiga fazer existir, e nos devolva, a magia de uma personagem, é muito importante. E tive a sorte de trabalhar com grandes directores de fotografia que me ajudaram muito, não forçosamente a tornar as actrizes mais belas (risos), mas a conseguir sublinhar a expressividade das suas personagens.
A esse respeito, o trabalho de fotografia de Luciano Tovoli [na sua sétima colaboração com Schroeder] em Amnésia está muito próximo do que Néstor Almendros [falecido em 1992] fez em More.
Sim, sim. Eles foram colegas no Centro Sperimentale de Cinematografia, em Itália, na mesma época. Tinham feito um pacto de utilizar sempre e respeitar sempre a luz natural – e foi o Tovoli que traíu primeiro esse pacto, ao começar a esculpir com a luz artificial.
Como foi rever More, hoje?
Na verdade só o revi depois de ter filmado Amnésia... Era preciso criar uma cópia digital em [alta resolução] 4K para o futuro, ao nível da “cópia zero” de 35mm que vi em 1968 nos laboratórios da LTC em Paris, e, como conhecia bem a casa, a textura das paredes, emocionou-me ver que era possível reencontrar essa textura na perfeição no grande écrã. Tal como me emocionou ver que O General Idi Amin Dada ficava melhor transposto para video do que ampliado para 35mm. Sem discussão. Se partirmos dos elementos originais, há casos onde o digital ou a alta definição podem de facto melhorar a imagem.
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O que é que o interessa primeiro numa história? A personagem ou o tema que quer abordar?
Neste caso foi a personagem - alguém que tomou na adolescência uma decisão moral e que se agarrou toda a vida a essa decisão, e que chegou a um momento da sua vida em que vai ter de enfrentar as suas consequências. Através dela, falo de um lado da história que é uma espécie de zona cinzenta que não foi mostrada muitas vezes, que tinha a ver com fábricas espalhadas por toda a Alemanha para onde eram enviadas pessoas vindas dos campos de concentração, que sobreviviam porque estavam ali para ser usados. Ao contá-lo, reduzimos a escala, para uma coisa que aconteceu por todo o país. E tento seguir essa proposta por onde ela me levar.
Esse olhar sobre a moral sempre atravessou todos os seus filmes.
Tento não ter noções sobre os temas dos meus filmes! Tenho medo de começar a macaquear-me, de me tornar um “autor” que se repete... Prefiro deixar os outros descobrir se eles existem ou não, sem fazer disso profissão de fé.
Mas nunca fez um julgamento moral sobre as suas personagens.
Evidentemente que não! Acho que é mesmo algo que tento aplicar na vida, sabendo que é impossível: procuro sempre não julgar os outros, sabendo que é muito difícil. As personagens mais complexas como Claus von Bülow, Idi Amin Dada, Jacques Vergès são muito mais interessantes, e tentar compreendê-las a elas, mais do que àqueles que são “bonzinhos” ou “mauzinhos”, aproxima-nos mais da vida. O que me interessa é descobrir as facetas escondidas, a inocência pelo meio do mal. É a grande pergunta dos nossos dias e da humanidade em geral. Temos de tentar compreender o mal. Embora não consiga fazer isso com Bashar al-Assad, com ele atinjo os meus limites… Vejo-o como o mal absoluto.
Para alguém que nasceu no Irão é curioso que tenha filmado por todo o lado, do Uganda à Colômbia, mas nunca no Médio Oriente…
Sabe, apenas passei os primeiros quatro anos da minha vida no Irão, numa altura em que ainda não temos grande memória das coisas. Tenho muitos amigos iranianos, mas tenho muito mais contactos com a América do Sul… E devo dizer que há um cinema tão apaixonante no Irão que não sei muito bem o que poderia ir lá fazer… Têm tantos cineastas extraordinários. Já Nossa Senhora dos Matadores, por exemplo, é um filme que não sei se poderia ter sido feito por um realizador colombiano. Pelo menos naquela altura. É um dos filmes preferidos que fiz. Outro, que me levou sete anos a fazer, foi Barfly – e têm em comum serem ambos filmes de escritores. Fui falar com escritores que admirava e de quem tinha lido toda a obra, Fernando Vallejo e Charles Bukowski, e pedi para colaborar com eles. Fi-lo apenas duas vezes mas em ambos os casos os resultados ficaram. Porque dizer que um filme é bom é uma coisa; dizer que ele fica é outra. E ele ficar, mesmo ao fim de 20 anos, é mais importante que qualquer crítica do mundo…
A esse respeito, ver Amnésia e More juntos sugere um círculo que se fecha. Um ponto final…
Sim, absolutamente. Tal como há um ponto final no filme de Luchino Visconti, Violência e Paixão [1974], e no entanto ele ainda fez um outro filme a seguir, O Intruso [1976]...
Mas é uma pergunta inevitável.
E diverte-me que a façam, e divirto-me a responder “se é isso que acham, pois com certeza”. Mas tenho já projectos prontos a rodar...