João matou o filho bebé. Deve ser punido ou tratado?
Quando o autor de um crime chocante alega insanidade, isso pode condená-lo a um internamento quase perpétuo. Terá a lei acompanhado a evolução da ciência?
Quando a polícia deu com ele nas imediações de casa, João Barata levantou as mãos ainda sujas de sangue: “Fui eu. Fui eu que matei o meu filho”.
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Quando a polícia deu com ele nas imediações de casa, João Barata levantou as mãos ainda sujas de sangue: “Fui eu. Fui eu que matei o meu filho”.
Atrás de si, o homem de 33 anos deixava um dos crimes mais chocantes dos últimos tempos em Portugal: o assassinato de um bebé de cinco meses. O cadáver foi encontrado em Abril passado na cama dos pais, em Linda-a-Velha, com uma faca cravada no peito.
O advogado do arguido escusa-se a falar do assunto, mas o PÚBLICO sabe que deverá invocar a insanidade do seu cliente, pelo menos temporária. Com mais três filhos e um historial de curas de desintoxicação alcoólica, uma das quais incluiu internamento num hospital psiquiátrico, João Barata assegurou, na esquadra de Oeiras para onde foi levado logo a seguir ao crime, não se lembrar do momento em que tirou a vida ao bebé. Preso preventivamente, ainda agora, seis meses passados sobre esse dia, continua a dizê-lo. Que só se recorda de a mãe da criança, com quem morava, ter posto fim à relação por telefone. Não o queria ver em casa quando regressasse do trabalho, já que ele voltara a beber.
A psicóloga já um dia o havia avisado: “João, quando você bebe fica um animal”. Mas não eram só os cálices de vinho do Porto bem aviados nos cafés ao pé de casa que lhe toldavam as ideias. Desempregado, havia de contar mais tarde às autoridades que aproveitava a saída da companheira manhã cedo, para começar o dia a fumar charros. E aquela quarta-feira não foi excepção. Uma vizinha que dava muitas vezes conta do choro da criança durante o dia não fazia ideia de que o bebé ficava sozinho quando o pai se ausentava.
Por não ser homem de grandes conversas, na tarde em que tudo aconteceu acharam-no estranhamente falador numa das pastelarias ao pé de casa. Saltava de assunto em assunto, até se esqueceu do saco das compras no estabelecimento. Quando, já em casa, ouviu a mulher dizer-lhe para fazer a trouxa e se ir embora recorda-se de ter dado um murro nas portas de vidro da marquise e atirado para o chão o computador portátil que aí tinha. A partir daí, garante que se lhe apagou tudo da cabeça e que só sobraram uns flashes momentâneos.
Voltou a telefonar à mãe do filho, a quem uma colega estranhava as nódoas negras que volta e meia lhe surgiam nos braços e nas pernas. Queria-a em casa, insistia, para que fosse com ele ao hospital. Porquê não explicou. Pensava que estava a lidar com um baby-sitter ou com um gigolo? – perguntou-lhe. Constrangia-o a dependência a que se via obrigado, ele em casa a cuidar do filho e a fazer a lida da casa, enquanto ela saía para ganhar dinheiro nas limpezas. Como último argumento, encostou uma faca de cozinha à barriga da criança e fez-lhe uma videochamada. Ou regressava imediatamente ou cumpria a ameaça. Foi o que fez escassos minutos depois. Fez mais, aliás: ligou o gás do fogão e do esquentador e cortou as mangueiras de ligação à botija. Quando a mulher chegasse seria vitimada por uma explosão que destruiria também o corpo do bebé, explica o Ministério Público - que além de homicídio qualificado o acusa por isso também de tentativa de assassinato na pessoa da companheira e de profanação de cadáver.
Após o crime saiu de casa disparado. Bebeu novo cálice de vinho do Porto na pastelaria e noutro café onde entrou contou o que tinha feito, ameaçando o empregado: se dissesse a alguém que ele ali estava também o matava.
Caberá à justiça decidir se João Barata estava tão fora de si que possa ser considerado inimputável – uma condição que os tribunais raramente aceitam, em especial quando está em causa a morte de um familiar tão próximo. Se for declarado irresponsável pelos seus actos, espera-o a ala psiquiátrica de uma cadeia, sem data certa de saída: enquanto for considerado perigoso, pode ficar em tratamento quase perpetuamente. Senão, arrisca-se a uma pena que tem como limite máximo os 25 anos de cadeia.
“O segredo da inimputabilidade é determinar o que estava na cabeça daquela pessoa naquele dia. Estava ou não na posse das suas faculdades?”. O criminologista Carlos Peres Dias analisou muitos acórdãos de tribunais que se depararam com este dilema nem sempre fácil de resolver. E percebeu que, ao contrário do que pode suceder com doenças psiquiátricas diagnosticadas antes da prática do crime, como a esquizofrenia, as perturbações de personalidade - de que são exemplo as psicopatias – não são aceites como fundamento de inimputabilidade, especialmente no caso dos crimes mais graves. A lei portuguesa não o diz assim com tanta clareza, mas é dessa forma que os juízes costumam decidir. Como? Baseando-se sobretudo nas peritagens psicológicas e psiquiátricas feitas aos arguidos. Na Europa, a justiça italiana é a única a aceitar as perturbações de personalidade como fundamento válido de desresponsabilização, aponta Peres Dias.
“Ao contrário do que se pensa, de um modo geral a inimputabilidade não é atribuída com frequência nos tribunais portugueses. Pelo contrário: muitas vezes as pessoas têm doenças mentais graves, psicoses, e são declaradas imputáveis. Vão para as prisões, onde não se integram. A ideia de que se dizem maluquinhas para escapar à justiça não é correcta: é muito difícil enganar um perito experiente, que consegue perceber quando uma perturbação mental é simulada”, observa Vítor Amorim Rodrigues, psiquiatra da clínica ISPA - Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida.
A existência prévia de uma doença psiquiátrica não é, porém, a única variável a considerar: num caso deste tipo cabe aos juízes determinar ainda se o homicida estava sob a influência dessa patologia no momento em que tudo aconteceu. Se tinha capacidade para compreender os seus actos, por um lado, e, por outro, se conseguia resistir a praticar o delito.
“Perceber se a pessoa tem capacidades cognitivas é uma coisa mais ou menos pacífica”, diz Amorim Rodrigues. O mesmo não sucede com a questão do autocontrolo, que se apresenta como “mais discutível”.
“Imaginemos uma pessoa que tem como característica de personalidade uma altíssima impulsividade. Tem um controle difícil sobre si mesma. Temos de distinguir se crime foi feito de forma premeditada ou num gesto impulsivo”, exemplifica o mesmo especialista. Uma perícia à personalidade feita a João Barata por técnicos do Instituto de Medicina Legal em Junho passado fala num humor sub-depressivo e em traços de comportamento borderline. Ou seja, com baixo limiar de tolerância a situações de stress, associada a frieza emocional, agressividade e instabilidade. Foi ainda identificada tendência para a auto-desculpabilização numa personalidade imatura e egocêntrica. O seu risco de violência era elevado, consideraram os técnicos do instituto – cujas perícias têm, nos casos de declaração de inimputabilidade, um valor de prova acrescido relativamente a quaisquer outras peritagens: nenhum juiz pode deixar de as considerar na sua decisão. Quando muito, pode pedir novas perícias.
Em sua defesa, João Barata deverá socorrer-se do seu passado de curas de desintoxicação alcoólica e apresentar ao tribunal o testemunho de outros peritos, invocando anteriores problemas do foro mental.
O procurador Sérgio Pena, neste momento a dar formação no Centro de Estudos Judiciários, recorda que o abuso do álcool, das drogas e a eventual ingestão de medicamentos no dia do crime poderão, pelo menos em teoria, configurar a chamada imputabilidade diminuída – que equivale a uma consciência pouco clara dos actos praticados. Ou ainda enquadrar-se na disposição legal segundo a qual quem praticar um delito sem intenção de o fazer por estar sob a influência de bebida ou de estupefacientes não responde pelo crime que praticou, incorrendo antes numa pena até cinco anos de prisão. “Mas não existe um único exemplo de aplicação desta disposição aos casos de homicídio qualificado”, ressalva. Por outro lado, a aceitação, pelo tribunal, de uma situação de imputabilidade diminuída não favorece necessariamente o réu, salienta Amorim Rodrigues: o juiz pode não a considerar uma circunstância atenuante da pena. “Nunca até hoje a imputabilidade diminuída foi aplicada aos homicídios qualificados”, assegura Carlos Peres Dias.
A dependência em que os juízes ficam dos peritos em casos como estes não é isenta de críticas – até pelo grau de incerteza de alguns diagnósticos clínicos. Num artigo publicado numa revista da especialidade em 2011, a juíza Joana Costa explica que o sistema penal português condiciona o papel dos magistrados, no que à declaração de inimputabilidade diz respeito, ao não lhes permitir aferir da precisão científica das conclusões do Instituto de Medicina Legal. Numa tese de mestrado de sociologia apresentada na Universidade de Coimbra no ano seguinte, Diana Fernandes descreve como os especialistas chamados pelos tribunais para se pronunciarem sobre este tipo de situações acham os conceitos e as formulações utilizadas na lei escrita desactualizados em várias décadas, face à evolução da psicologia e da psiquiatria.
“É evidente que posso dizer que alguns dos conceitos que estão subjacentes às perícias estão, do ponto de vista psiquiátrico ou psicológico, ultrapassados. Mas não tenho culpa. De facto, as novas ideias, as novas correntes da psiquiatria não têm entrado no direito. Mas também não têm entrado no conhecimento do homem da rua ou no conhecimento geral”, confidenciou-lhe um deles. “O tribunal pergunta se o senhor tem isto e isto e a gente vê. O conceito da culpa... essas coisas para nós são chinês. Para nós, culpa é uma coisa, responsabilidade é outra. Acho que é uma solução de entendimento, mas que daqui a uns anos pode evoluir”.
“A latitude que a legislação penal deixa ao juiz e ao perito que o auxilia na decisão acaba por ser contraproducente”, alega, por conduzir a “um controlo da doença mental levado ao extremo”.
E quando se entra no campo da imputabilidade diminuída, a margem de incerteza revela-se ainda maior. “Eu tenho dúvidas. [A pessoa] tem a patologia, mas... não posso dizer que é imputável. Não posso dizer que há um compromisso da faculdade de se determinar. E também não posso dizer que há atenuantes. Como não sou eu que declaro, é o tribunal... atiro para o tribunal”, relatou-lhe outro especialista.
Diana Fernandes defende que o poder atribuído às ciências psicoforenses conduz à psiquiatrização da justiça e dos tribunais. “Uma vez que o juiz não tem competência técnica para avaliar se o arguido estava na plena posse das suas faculdades mentais, dá grande importância aos relatórios periciais. Eu não tenho conhecimentos específicos suficientes para afastar uma perícia médica”, justifica a juíza Helena Susano, actualmente também no Centro de Estudos Judiciários. Foi com base nesse entendimento que em 2008 decidiu absolver de homicídio um médico que tinha atacado um vizinho à machadada em Alverca, declarando-o inimputável à data dos factos: o homem sofria de psicose paranóide e não era perigoso, desde que sujeito a acompanhamento médico. Não foi sequer necessário interná-lo: o internamento ficou suspenso com a condição de tomar a medicação.
Caso diferente foi o do rei Ghob: apesar de ter sido diagnosticada ao triplo homicida uma personalidade perturbada, isso não impediu a sua condenação. "Não padece de qualquer doença psicológica que lhe perturbe a capacidade de avaliação e de determinação", concluiu o Instituto de Medicina Legal. Carlos Peres Dias aponta um caso igualmente mediático, o do homicídio de Carlos Castro por Renato Seabra. Uma pessoa que não está na posse das suas faculdades demora-se a tomar banho e a arranja-se para sair depois de ter morto alguém, como sucedeu? Pendura o letreiro de “Não Incomodar” na porta do quarto do hotel? “Não. Isso revela frieza de ânimo”, explica o criminologista. Ficou provado que, apesar dos distúrbios mentais de que poderia padecer, no momento do crime, Renato Seabra sabia distinguir o certo do errado, estando portanto ciente dos seus actos. Daí ter sido condenado a cadeia nos EUA. A idoneidade do neurospsicólogo contratado pelo Ministério Público, cujo depoimento foi fundamental para o veredicto, havia mais tarde de ser posta em causa numa investigação do jornal New York Times, segundo a qual das mais de 100 vezes que o especialista esteve em tribunal defendeu sempre a tese da acusação.
A juíza Joana Costa antecipa o momento em que a ciência mostre, de forma definitiva, que na base de comportamentos criminosos estão disfunções neuropsicopatológicas, “modificando com isso o modo como a lei penal avalia os agentes do crime”. Até lá, peritos e juízes vão continuar a tactear, em busca da linha ténue que separa as perturbações de personalidade das enfermidades.