De cabeça perdida
1. Entre a perplexidade e o cansaço provocados pelo exagero do novo vocabulário político utilizado pela direita para designar os acordos bilaterais celebrados entre o PS e os partidos à sua esquerda, resolvi compará-los com os acordos celebrados entre o PSD e o CDS em 2011 e em 2015. A principal conclusão a que cheguei é a seguinte: os acordos celebrados pela coligação visam exclusivamente garantir que o PSD e o CDS se manterão no poder, incidindo sobre mecanismos para impedir que o PSD e o CDS deixem de ser maioria; em contrapartida, os acordos celebrados entre o PS e os partidos à esquerda visam garantir que serão concretizadas algumas políticas públicas. É a diferença entre acordos de poder e acordos programáticos. Porquê esta diferença? Sobretudo porque PSD e CDS não se distinguem hoje no plano programático, enquanto PS, PCP e BE são muito diferentes entre si.
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1. Entre a perplexidade e o cansaço provocados pelo exagero do novo vocabulário político utilizado pela direita para designar os acordos bilaterais celebrados entre o PS e os partidos à sua esquerda, resolvi compará-los com os acordos celebrados entre o PSD e o CDS em 2011 e em 2015. A principal conclusão a que cheguei é a seguinte: os acordos celebrados pela coligação visam exclusivamente garantir que o PSD e o CDS se manterão no poder, incidindo sobre mecanismos para impedir que o PSD e o CDS deixem de ser maioria; em contrapartida, os acordos celebrados entre o PS e os partidos à esquerda visam garantir que serão concretizadas algumas políticas públicas. É a diferença entre acordos de poder e acordos programáticos. Porquê esta diferença? Sobretudo porque PSD e CDS não se distinguem hoje no plano programático, enquanto PS, PCP e BE são muito diferentes entre si.
2. Não é normal que os partidos não se distingam. Pelo contrário, é normal que sejam diferentes ideológica e programaticamente. É porque são diferentes que têm que se coligar e fazer acordos. Veja-se o caso do Reino Unido, onde se formou um Governo de coligação entre o mais europeísta e o menos europeísta dos partidos ingleses; ou a Finlândia, com um Governo baseado numa coligação de direita entre partidos europeístas e um partido anti Euro e anti NATO. Também é normal, nos países europeus, encontrar tantas coligações simultaneamente parlamentares e de Governo, como coligações apenas parlamentares. Veja-se o exemplo da Dinamarca, que tem uma coligação parlamentar de direita que inclui cinco partidos, mas em que só um desses partidos formou Governo (o terceiro partido mais votado); ou da Noruega, com uma coligação parlamentar de quatro partidos, dois dos quais também coligados no Governo.
3. Em Portugal, como nos países que referi, a avaliação dos programas de Governo pelo Parlamento não constitui uma formalidade. Insistir no argumento de que deve governar sempre o partido que tem mais votos, é reduzir aquela avaliação a mera formalidade, pois dela não se retirariam quaisquer consequências. Com a nossa Constituição, é normal que governe o partido ou os partidos que conseguirem criar condições parlamentares para esse efeito. Para criar essas condições, são possíveis diferentes soluções: acordos de Governo, acordos parlamentares, coligações de Governo, memorandos de entendimento. Não há modelo único. Mas, insisto, o normal é que os acordos serem celebrados entre partidos diferentes e não entre partidos idênticos. Neste caso, como acontece hoje com PSD e CDS, os acordos de coligação tendem para a fusão programática. Os acordos celebrados pelo PS não implicam uma fusão dos programas dos diferentes partidos, nem uma coligação de Governo, mas isso não os invalida, nem lhes retira solidez.
4. É evidente que muitos poderão ter dúvidas sobre a solidez da solução apresentada pelo PS e pelos partidos à sua esquerda. Muitos poderão não gostar da solução. E todos têm o direito de manifestar a sua discordância. Mas as intervenções a que temos assistido não são uma simples manifestação de discordância ou de debate democrático sobre soluções alternativas. Têm sido insultuosas, catastrofistas, histéricas e alarmistas, lançando o pânico e invocando todos os demónios, como quem quer, antes de sair, atear fogo e deixar a casa a arder. Expressões como "geringonça", "golpista", "fraudulenta", "monstruosa" revelam falta de argumentos substantivos. Revelam que quem as usa está de cabeça perdida perante a iminência de perder o poder. Revelam desrespeito pelo debate e pelas instituições democráticas, bem como pelos portugueses que não votaram na PAF.
5. A situação que estamos a viver deve ser encarada com normalidade, sobretudo por quem tem responsabilidades políticas. Porém, instalar uma passadeira vermelha no Palácio de Belém para que as corporações façam eco ampliado da retórica da coligação, e criar a ideia de que em Portugal todos pensam daquela forma, não só não ajuda, como subverte as regras de funcionamento do nosso regime democrático. Em primeiro lugar, porque foram ouvidas sobretudo corporações patronais, agentes empresariais e economistas, seleção que não respeita o pluralismo institucional. Em segundo lugar, porque as corporações e os agentes empresariais não representam o povo. Representam apenas os seus interesses particulares ou os dos seus membros. Admite-se que seja importante conhecer a sua leitura da situação, mas não lhes cabe pronunciarem-se sobre quem deve governar. É em eleições que se escolhe quem decide quem governa e é aos partidos políticos que está constitucionalmente atribuída a responsabilidade central neste processo. As corporações não podem ser colocadas no mesmo plano, sob risco de estarmos a substituir o nosso regime democrático parlamentar por um regime corporativo sem caução constitucional.
Professora de Políticas Públicas no ISCTE-IUL