A investigação sem fundo de Trisha Brown

Numa das últimas oportunidades de assistir ao reportório de Trisha Brown pela sua companhia, a Culturgest recebe parte de uma obra fundamental para a história da dança – tão disponível para o geométrico quanto para o delirante.

Foto
Em Trisha Brown não escasseia a sensação de se estar desamparado diante do novo DR

Foi um daqueles momentos testemunhados por poucos, mas que adquiriu uma aura de acontecimento marcante para toda uma cena artística em ebulição e em desafio permanente. Em Julho de 1973, 14 bailarinos distribuídos pelo terraço de outros tantos edifícios de Manhattan, deram corpo a uma coreografia que só poderia ser assistida por um pequeno grupo de espectadores que se encontrava reunido no topo de um outro arranha-céus a rasgar a paisagem nova-iorquina, algures entre West Broadway e Wall Street. Lá em cima, desapegados do contacto humano, perdidos num mar de prédios, rodeados de chaminés, escadas de incêndio e condutas, os bailarinos enviavam movimentos uns para os outros como fariam com sinais de fumo, numa cadeia de humanidade que sobrevoava as entranhas da urbe. Cada gesto parecia querer resistir a ser engolido pela multidão na rua e pela paisagem de betão e vidros espelhados.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Foi um daqueles momentos testemunhados por poucos, mas que adquiriu uma aura de acontecimento marcante para toda uma cena artística em ebulição e em desafio permanente. Em Julho de 1973, 14 bailarinos distribuídos pelo terraço de outros tantos edifícios de Manhattan, deram corpo a uma coreografia que só poderia ser assistida por um pequeno grupo de espectadores que se encontrava reunido no topo de um outro arranha-céus a rasgar a paisagem nova-iorquina, algures entre West Broadway e Wall Street. Lá em cima, desapegados do contacto humano, perdidos num mar de prédios, rodeados de chaminés, escadas de incêndio e condutas, os bailarinos enviavam movimentos uns para os outros como fariam com sinais de fumo, numa cadeia de humanidade que sobrevoava as entranhas da urbe. Cada gesto parecia querer resistir a ser engolido pela multidão na rua e pela paisagem de betão e vidros espelhados.

A peculiar e emblemática coreografia, Roof Piece, perduraria no tempo como exemplo perfeito de um primeiro conjunto significativo de obras de Trisha Brown, moradora no SoHo nova-iorquino, cuja constante investigação de novos vocabulários coreográficos se organizaria, regra geral, em grandes blocos definidos por processos ou interesses. No início da década de 70, a acção de Brown passava sobretudo por não se render à dança vivida apenas sobre as tábuas de um palco, preferindo uma lógica site-specific para a apresentação das suas obras, integradas no contexto da cidade e recusando a ideia de criação de uma bolha ausente do mundo. Fundadora anos antes do seminal Judson Dance Theater com Lucinda Childs, Steve Paxton ou Yvonne Rainer, foi para este contexto que criou em 1970 a Trisha Brown Dance Company (TBDC).

Só no ciclo seguinte, quando deixou que as suas criações pudessem tomar igualmente o palco, é que o reconhecimento da trajectória vanguardista que ia descrevendo com a sua companhia começou a impor-se. Carolyn Lucas, assistente de Brown entre 1993 e 2003, e uma das duas actuais directoras artísticas da companhia, era estudante de dança moderna e nunca tinha ouvido falar da coreógrafa quando, em 1981, foi levada por uma professora de Composição à Brooklyn Academy of Music para ver a TBDC. Familiarizada com as obras de Martha Graham, Merce Cunningham ou José Limón, Lucas não sentia que o mundo da dança lhe pudesse reservar um lugar futuro como bailarina, uma vez que não se convencia com nenhum dos reportórios com que contactava. Pensava então que, por falta de entusiasmo com os outros, teria de investir no seu próprio percurso de coreógrafa para encontrar um espaço. “Até que vi a companhia da Trisha e fiquei estarrecida”, recorda ao Ípsilon. Ainda sentada na sala, esmagada por aquela epifania, percebeu que só tinha duas alternativas: ou se entregava à obra daquela mulher em absoluto ou não aceitaria trabalhar com mais ninguém e seguiria um caminho solitário.

De uma penada, Lucas tomava contacto com três peças fundamentais do ciclo Molecular Structure, baseado na instabilidade molecular, em que se inscreviam Glacial Decoy (1979, a primeira colaboração de Brown com o artista Robert Rauschenberg, autor dos cenários e dos figurinos), Opal Loop (1980) e Son of Gone Fishin’ (1981) – a peça mais longínqua incluída no programa Trisha Brown in Plain Sight apresentado sexta-feira e sábado na Culturgest, em Lisboa. O recurso a música nestas peças, a colaboração com outros artistas na elaboração de cenários e a coabitação com o palco por parte de Brown levariam Anna Kisselgoff a escrever então no New York Times que “em 1981, percebemos finalmente que os anos 1960 terminaram”. O que não quer dizer que Trisha Brown se tenha entregado a partir daí a uma linguagem convencional. Son of Gone Fishin’ – acompanhada em Lisboa por Rogues (2011), If You Couldn’t See Me (1994) e Present Tense (2003) – permanece, aliás, uma das peças mais complexas na construção do movimento do reportório de Brown.

A mobília e o esquilo voador
Carolyn Lucas acabou por se juntar à companhia em 1984, após a participação num workshop e quando Trisha Brown trabalhava na transição para um novo ciclo – a que chamou Valiant Series, baseado na exploração máxima das possibilidades físicas dos corpos – com a criação de Lateral Pass (1985). Abandonava então a fluidez do período cessante para ser inspirada por arrastar mobília no seu apartamento, facto que a fez explorar ideias de força, massa e esforço no limite. “Senti mesmo que estava a trabalhar num território novo”, confessa Lucas. “A Trisha foi uma pioneira, muito curiosa, muito exigente em relação à criatividade. Estava sempre a pensar no processo, cada peça era uma investigação sem fundo.”

Dessa investigação fazia também parte uma estimulação pouco óbvia da contribuição dos bailarinos. “Lembrava-se de imagens e palavras muito cómicas, podia dizer-nos que queria buzzbombs [nome popular dado a bombardeiros da II Guerra Mundial] em torno da mobília ou pedir que uma bailarina fosse atirada pelo ar como um esquilo voador”. Mas esta aparente imaginação febril e delirante convivia depois com o absoluto rigor de frases coreográficas “muito arquitecturais, lentas e geométricas”. “Ela podia lançar o movimento mais selvagem que alguma vez tinha visto e, ao mesmo tempo, fazê-lo muito atlético, fluido e sequencial. O corpo dela era extraordinário, conseguia levá-lo para qualquer lado que lhe apetecesse e estava sempre a tentar mexer-se de modo multidireccional. E para cada novo projecto criava um vocabulário único.”

Carolyn Lucas fala de Trisha Brown no passado simplesmente porque a coreógrafa, hoje com 79 anos, anunciou a sua reforma em 2013, altura a partir da qual a companhia deu início a uma extensa digressão que representa uma das últimas oportunidades para assistir a este reportório dançado pelos seus bailarinos – futuramente deverá ser licenciado a outras companhias e trabalhando com universidades. Carolyn recusa, no entanto, que se trate de uma digressão de despedida. “A nossa intenção original era fazermos uma digressão de celebração, para festejarmos a obra da Trisha em palco, ao longo de três anos. Não estamos preparados para parar de apresentar a obra dela.”

Só que a realidade é pouco elástaica e embora a TBDC sinta que a obra que a alimenta ainda dispõe de um vigor partilhável com públicos de todo o mundo, sabe também que os programadores quase só se interessam por novas criações. O que não deixa de ser curioso: é que em Trisha Brown não escasseia a sensação de se estar desamparado diante do novo.