Os equívocos da guerra contra o terrorismo

O mundo islâmico e os muçulmanos são vistos por grelhas simplistas. Uma com estereótipos do passado. Outra com visões multiculturais ingénuas.

1. A reacção da França aos atentados terroristas de 13/N, com bombardeamentos aéreos ao Estado Islâmico (Daesh) na Síria, lembra a reacção dos EUA ao 11/S. Para os que têm ainda na memória as imagens dessa data fatídica, os paralelismos são significativos. George W. Bush retaliou sobre a Al-Qaeda e os talibãs no Afeganistão, lançando mísseis de cruzeiro. Mais tarde com bombardeamentos aéreos e uma invasão terrestre A França retaliou já com bombardeamentos aéreos sobre o Daesh. (Provavelmente não se aventurará em nenhuma invasão terrestre, a não ser numa hipotética grande coligação internacional.) Em ambos os casos, impôs-se, no imediato, como resposta, a ideia de uma retaliação justa e limpa. A tecnologia moderna contra a barbárie pré-moderna. O inimigo foi configurado de uma forma bastante similar. Tal como os EUA de George W. Bush no imediato 11/S, a França de François Hollande declarou guerra ao terrorismo após o 13/N. Mas, se olharmos para trás, uma interrogação inquietadora vem à mente? O terrorismo diminui desde o 11/S? Estamos, hoje, mais seguros do que estávamos na altura? Se, apesar o seu enorme poder bélico, os EUA não o conseguiram derrotar decisivamente — e hoje está mais presente nas sociedades europeias —, vai a França consegui-lo?

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1. A reacção da França aos atentados terroristas de 13/N, com bombardeamentos aéreos ao Estado Islâmico (Daesh) na Síria, lembra a reacção dos EUA ao 11/S. Para os que têm ainda na memória as imagens dessa data fatídica, os paralelismos são significativos. George W. Bush retaliou sobre a Al-Qaeda e os talibãs no Afeganistão, lançando mísseis de cruzeiro. Mais tarde com bombardeamentos aéreos e uma invasão terrestre A França retaliou já com bombardeamentos aéreos sobre o Daesh. (Provavelmente não se aventurará em nenhuma invasão terrestre, a não ser numa hipotética grande coligação internacional.) Em ambos os casos, impôs-se, no imediato, como resposta, a ideia de uma retaliação justa e limpa. A tecnologia moderna contra a barbárie pré-moderna. O inimigo foi configurado de uma forma bastante similar. Tal como os EUA de George W. Bush no imediato 11/S, a França de François Hollande declarou guerra ao terrorismo após o 13/N. Mas, se olharmos para trás, uma interrogação inquietadora vem à mente? O terrorismo diminui desde o 11/S? Estamos, hoje, mais seguros do que estávamos na altura? Se, apesar o seu enorme poder bélico, os EUA não o conseguiram derrotar decisivamente — e hoje está mais presente nas sociedades europeias —, vai a França consegui-lo?

2. Para compreendemos o problema é necessário, primeiro, enquadrar a França e a Europa no mundo do século XXI. Impõe-se afastar as imagens do passado que perduram na mente dos europeus e dificultam a compreensão. A Europa está em refluxo. Refluxo de ideias e de ideologias, refluxo de pessoas e movimentos demográficos. Os europeus habituaram-se, ao longo nos últimos séculos, a exportar pessoas, ideias e valores civilizacionais — ou vistos como tal —, para o resto mundo. Hoje são incapazes de o fazer. O ciclo histórico é inverso, revertendo, aquilo que foi, numa perspectiva alargada, uma breve anomalia histórica: a Europa centro do mundo. Os fluxos de ideias, ideologias e de pessoas e demografia, vêm agora do mundo exterior para a Europa. A envolvente do Mediterrâneo Sul e Oriental torna hoje isso muito óbvio. No passado dos séculos XVIII a meados do século XX, as ideologias políticas seculares eram todas europeias. Eram exportadas largamente para o mundo. No passado, as guerras europeias eram também mundiais. A influência europeia foi por vezes trágica. Isso ocorreu com a I e II Guerra Mundial. Hoje, com a Europa em refluxo, esta tornou-se destino — e não origem, como estava habituada —, de valores culturais, ideologias e pessoas do mundo envolvente, o qual é essencialmente árabe-islâmico. Resultado: as guerras, conflitos e ideologias do mundo árabe-islâmico têm um novo terreno onde se confrontam, quer entre si, quer com as próprias sociedades de acolhimento. Não estávamos habituados a isso. Não estávamos preparados para isso. O choque é particularmente duro em França, um país habituado a ver-se, a si próprio como um modelo para o mundo exterior. Iluminismo, razão, progresso, universalismo, laïcité. Hoje é confrontada com uma ideologia pré-moderna não ocidental no seu território.

3. Os franceses e europeus estão confusos e inseguros. Não percebem o que lhes está a acontecer. Instalaram-se duas grelhas de leitura para dar sentido a actos como o 11/S nos EUA (2001), o 11/M, em Espanha (2004), o 7/7 em Londres (2005), ou os atentados ao Charlie Hedbo já neste ano de 2015. Uma é o “conflito de civilizações”. A outra é o do “isto não tem nada a ver com o Islão”. Ambas obscurecem o problema, embora por razões substancialmente diferentes. Quanto à primeira, a do conflito civilizações, é uma vulgata da tese do politólogo norte-americano, Samuel P. Huntington, nos anos 1990. É fácil mostrar como é uma grelha de leitura marcada por estereótipos e distorcedora dos acontecimentos. A principal luta de grupos islamistas-jihadistas como a Al-Qaeda ou o Daesh desenrola-se dentro do Islão e dos países muçulmanos. Em primeira linha, as suas vítimas são os próprios muçulmanos que não aceitam a sua interpretação abusiva do Islão (sunita), oriundos de outras formas de Islão (xiita, alauita, sufi, etc.), ou ainda os muçulmanos liberais e seculares. Basta olhar para a guerra da Síria onde se vê nitidamente esse padrão. Naturalmente que os não muçulmanos também são um alvo (cristãos, judeus, yazidis, etc.). Quanto à segunda, a do “isto não tem nada a ver com o Islão”, é simplista e obscurece também o problema fundamental, mas por razões mais complexas. No cerne da questão — e esta é de facto a distinção crucial —, estão as relações do Islão, como religião e cultura, com o islamismo-jihadista: uma ideologia política, apesar da sua fraseologia religiosa e apropriação dos textos sagrados do Islão.

4. Impõe-se clarificar melhor este ponto. É verdade que a interpretação abusiva e radical que os islamistas-jihadistas fazem dos textos sagrados do Islão não é a de nenhuma das escolas teológico-jurídicas tradicionais, do Islão sunita ou xiita. Estas, podem, no entanto, pender para interpretações mais abertas, ou mais fundamentalistas dos textos sagrados. A esmagadora maioria dos muçulmanos rejeita o islamismo-jihadista e, sobretudo, condena o uso do terror. Todavia, isto não encerra o problema. Como qualquer ideia, ou ideologia, não nasce do vazio. Tem um substrato cultural onde estão as suas raízes. Neste inclui-se a religião, uma primordial manifestação de cultura que impregna todas as sociedades humanas. O Islão significa uma religião, mas também uma cultura / civilização. No passado, as ideologias políticas europeias (liberalismo, social-democracia, comunismo, fascismo, nazismo, etc.), surgiram e alimentaram-se do terreno cultural-religioso do Cristianismo, especialmente na versão secularizada, emergente a partir do Iluminismo do século XVIII. Só podem ser explicadas nesse contexto, o da civilização europeia / ocidental. Daí a sua vocação universalista. Também o Islamismo-jihadista se alimenta do terreno cultural e religioso do Islão. E também, naturalmente, só é explicável nesse contexto. Tal como nem todos os europeus / cristãos foram nazis ou fascistas, nem todo os árabes / muçulmanos são islamistas-jihadistas. Em nome de ideologias seculares alguns europeus / cristãos (no sentido sociológico do termo) praticaram o terror. Em nome de uma ideologia não secular, alguns árabes / muçulmanos (também no sentido sociológico do termo), praticam o terror. Não representam o todo, sem qualquer dúvida, mas iludir as conexões culturais é obscurecer a compreensão.

5. Uma coisa parece evidente. Só criando uma grelha de leitura mais refinada os europeus vão poder confrontar o perigo islamista-jihadista na sua substância. Tal como o estão a fazer hoje, apenas focam nas suas manifestações mais estridentes — o terrorismo. É importante fazê-lo, sem qualquer dúvida. Mas não é o problema fundamental. Crucial é separar o Islão, como crença e prática religiosa, e a apropriação política do Islão, que se traduz em ideologias políticas como o islamismo-jihadista. Crucial é confrontar essa ideologia sem culpabilizar os muçulmanos que nada tenham a ver com ela. Importa reter: o terrorismo é o seu extremo violento. O grave é que os europeus não estão preparados para isso. Conhecem mal o Islão. Não sabem distinguir os seus particularismos. Não entendem as suas subtilezas. Desconhecem os seus pensadores. Poucos, mesmo entre a elite dirigente europeia, quando confrontados como nomes de pensadores islâmicos, saberiam, no plano das ideias, situá-los e catalogá-los correctamente. A questão é visível na guerra da Síria. O regime de Bastar Al-assad é um caso de autoritarismo clássico. Toda a gente entende isso até porque o partido Baath é o lado mais secular da Síria. Mas quais são os grupos moderados que combatem Bashar Al-Assad? Qual é a sua ideologia? Alguém, entre a elite dirigente europeia, soube até agora explicar? O resultado de tudo isto é confrangedor. O mundo islâmico e os muçulmanos são vistos por grelhas simplistas. Uma com estereótipos do passado. Outra com visões multiculturais ingénuas. Resultado: uma leva, de forma injusta e absurda, a culpar todos os muçulmanos por actos de uma minoria. A outra, pretende reduzir o problema a actos de indivíduos psicóticos e fanáticos desligados de qualquer cultura. A guerra ao terrorismo denota essa incompreensão fundamental.

Investigador