"Há mais sofisticação na corrupção do que ir à gaveta ou receber o cheque"
João Cravinho, 79 anos, diz que a direita está preocupada porque a aliança de esquerda não sofrerá o big-bang. Critica Cavaco e anota que Passos criou um fosso na política portuguesa que não é susceptível de ser superado.
Para o ex-ministro de António Guterres, estamos numa “nova fase civilizacional” que exige “consensos entre direita e esquerda a 10 ou 20 anos em torno de direitos fundamentais”. Fez contas e assegura que o Estado Social “é sustentável” com crescimentos de 1,5%. Considera que existe um ambiente permeável à submissão do interesse público ao privado e afirma que há mais sofisticação na corrupção “do que ir à gaveta ou receber o cheque”. Admite que, em 2006, ficou em estado de choque com a “virulência” da reacção da direcção de Sócrates e do grupo parlamentar do PS ao seu projecto anticorrupção.
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Para o ex-ministro de António Guterres, estamos numa “nova fase civilizacional” que exige “consensos entre direita e esquerda a 10 ou 20 anos em torno de direitos fundamentais”. Fez contas e assegura que o Estado Social “é sustentável” com crescimentos de 1,5%. Considera que existe um ambiente permeável à submissão do interesse público ao privado e afirma que há mais sofisticação na corrupção “do que ir à gaveta ou receber o cheque”. Admite que, em 2006, ficou em estado de choque com a “virulência” da reacção da direcção de Sócrates e do grupo parlamentar do PS ao seu projecto anticorrupção.
Tem dito que Portugal não vai conseguir cumprir o Tratado Orçamental. Como vê a posição de António Costa que afirma ir cumpri-lo?
Podemos olhar para o Tratado Orçamental como uma peça fixa, gravada em mármore e destinada ao Museu do Louvre, ou perceber é de tal maneira importante que vai tendo vida sinuosa, consoante a dureza ou a suavidade dos tempos. Tem havido formas de interpretar o tratado muito diferentes das interpretações fiéis à escrita e que hoje são submetidas a maior flexibilidade. Por mais obstinada que seja, a direcção política da União Europeia não é totalmente cega e vai fazendo adaptações e cedências. A questão é saber como se fazem essas cedências e ajustamentos, em nome de quê e se serão suficientes.
Até agora não foram suficientes?
Não foram suficientes. Entrámos numa espécie de religião, aparentemente política mas, na realidade, um culto religioso primitivo que é a idolatria dos números. Temos uma união monetária gerida como se fosse um produto de catálogo, mas a política não pode ser feita deste modo. No caso português estão previstos saldos primários de quatro por cento que nunca ocorreram e acha-se perfeitamente natural porque consta do catálogo. O Tratado de Maastricht foi um fato feito rigorosamente à medida da Alemanha e um dos primeiros países a não cumprir foi a Alemanha, que cuidou do seu interesse nacional e não quis saber dos números. Até agora a Alemanha não foi processada nem confrontada com a numerologia que instalou.
Com essas premissas, é possível apresentar uma alternativa como António Costa faz?
António Costa faz uma interpretação não substitutiva do tratado, é a leitura normal num político que não está submetido a nenhuma idolatria. Não quer desrespeitar o tratado, não há afronta, mas chama a atenção para a existência de bases jurídicas de partida para interpretar aplicações flexíveis em determinadas condições. Essas condições são as que estamos a viver. António Costa tem como vantagem ter discutido com certeza este assunto no Partido Socialista Europeu, onde há um ano existe uma reflexão. Na qual participa o SPD de Sigmar Gabriel [vice-chanceler do governo alemão]…
A quem António Costa consultou já depois das eleições…
…Com certeza que sim, assim espero, seria tão normal como importante e clarividente. Há um entendimento de líderes, com Matteo Renzi [primeiro-ministro italiano], os espanhóis do PSOE, do Presidente François Hollande que ultimamente aderiu a estas teses. António Costa não propõe às escuras o que propõe nem o faz com voluntarismo. Se o Tratado Orçamental for uma realidade com alguma plasticidade, embora sem grandes amplitudes ou saltos, quem estiver no circuito desta informação tem uma atitude diferente.
Como vai ser a Europa no futuro?
Já aprendi o suficiente para não fazer previsões. É mais proveitoso procurar perceber o modo de funcionamento, as causas e os impactos e, a partir daí, trabalharmos com cenários. Estamos a ver um impacto político susceptível de consequências económicas muito significativas de um fenómeno novo, de refugiados a uma escala dramática, de uma guerra de fundo religioso. A emigração tem consequências na união monetária. Como é que, de manhã, Merkel pode falar de solidariedade, e à tarde dizer que quanto ao euro é ela que manda? Isto passa pelo centro da Europa, pela Alemanha que tem um problema de segurança perante uma Rússia com tendência czarista autocrática que usa a força militar como elemento de dissuasão.
Antevê mais federalismo?
Se alguma coisa foi criada nos últimos anos, foi uma aversão ao federalismo e a ressurreição de vários nacionalismos. Temos a Hungria, um partido de extrema-direita no Governo na Áustria, na Finlândia a extrema-direita no Governo, a Espanha tem um problema com a Catalunha, a Inglaterra também com a Escócia. Ou entramos num desastre ou adoptamos medidas que podem estabilizar. Das liberdades que foram introduzidas na Europa, a mais ameaçada é a da circulação das pessoas. A Europa pode transformar-se numa zona de comércio livre, numa EFTA “plus”, mas isto não resolve os problemas de segurança.
A aliança do PS, com o PCP e o Bloco de Esquerda vai convencer o Presidente da República?
Como se caminha? Caminhando. Acredito que esta viragem no debate político é um episódio estrutural, profundo, que veio para ficar. Quando se derruba um muro e ele cai em mil pedras dá muito trabalho para que, uma a uma, as pedras reconstituam o muro. Isto lança um processo prolongado, complexo, com avanços e recuos, mas que se orienta irreversivelmente. Não acredito que haja um big-bang, as coisas vão-se construindo, mas que veio para ficar, veio. É isto que preocupa a direita, que sabe que não é uma questão de conjuntura.
Foi a direita que empurrou o PS para esta solução?
Chegamos ao ponto crucial que também envolve o Presidente da República. Ele apela, mais uma vez e de uma maneira extrema, dada a sua posição institucional, ao consenso, consensos mínimos de governação. Mas o Presidente entende por consenso a arregimentação do PS, a adesão ao programa da coligação. Isto significa que não é possível um consenso destes porque seria autodestrutivo do PS. Tal não significa que não possam existir consensos, mas Passos Coelho ao deslocar-se para a direita, destruindo no seu partido elementos mais sociais-democratas, queimou a hipótese declarando que queria ir para além da troika. Esta declaração ideológica criou um fosso enorme que não é susceptível de ser vencido. É necessário um consenso, mas não de um projecto de facção.
Consenso em que termos?
Numa perspectiva de médio prazo, 10 a 20 anos. Como entrámos numa nova fase civilizacional e a sociedade industrial está a acabar, o país precisa de um consenso sustentável para vencer na nova era. O consenso pode desenhar-se em torno de direitos fundamentais, em que direita e esquerda se revejam. Direitos fundamentais são direitos de liberdade compagináveis num sentido liberal e social. Também podemos encontrar uma plataforma em modos de organização social que assentem na ideia do Estado Social não ser um Estado assistencial “plus”, mas com um conjunto de instituições absolutamente essenciais ao capitalismo moderno, não rentista, que precisa de apoio no risco e iniciativa. O grande problema que se pôs à sociedade industrial foi o conflito radical entre democracia e capitalismo. O Estado Social foi o modo como se resolveu este conflito. O capitalismo, na sua nova versão global, considera que os seus interesses são melhor defendidos com o enfraquecimento do Estado Social. Como se legitima politicamente este capitalismo global, destruindo o Estado Social e não o substituindo por nada que pacifique as pessoas? Por isso, o consenso tem de ter uma componente de direitos fundamentais sem os quais toda a sociedade democrática não tem sentido, uma componente de Estado Social e outra de ambiente favorável à inovação, mudança económica e empresarial, e dos seus actores que são os empresários e não o Estado.
Com taxas de crescimento tão reduzidas há condições para isso?
É verdade que temos um crescimento pequeno, mas numa perspectiva de longo prazo, a geração que agora entra no mercado de trabalho reforma-se em 2050/60. Basta um crescimento de 1,5% de longo prazo, já fiz as contas, para sustentar boas reformas e ficar com recursos amplos, disponíveis para tudo o resto.
Não está a ser optimista?
São contas. Para dar uma ideia: se a economia crescer 1,5% pode multiplicar a despesa per capita com pensões duas vezes e meia no termo e ter um aumento praticamente semelhante de recursos disponíveis per capita para todas as outras afectações. Numa situação destas, falar de insustentabilidade é uma mistificação total e ausência de rigor técnico. O Estado Social é perfeitamente sustentável. Neste país, com o pretexto do terrorismo demográfico – dizer que o envelhecimento da população e a diminuição dos activos sustenta os cortes nas pensões – é cometida uma patetice fruto da ignorância.
O consenso em Portugal esteve ligado ao Bloco Central que tem sido terreno de corrupção. Como vê esta questão?
Progredimos muito, imenso, no que toca ao controlo da pequena corrupção por dois factores fundamentais: a população teve uma elevação de educação e nível cívico; a informatização da administração pública também impediu uma coisa básica, alterar a ordem dos processos.
E a média e grande corrupção?
Em substituição da pequena corrupção proliferou a grande corrupção, a corrupção de Estado, isto é, a apropriação de sectores da vida pública, sobretudo no campo económico, por parte de certos interesses. Isto pode tomar formas muito directas, como a ocupação da administração pública por indivíduos afectos ao partido A ou ao partido B que, quando indicam um director de serviço, não o fazem exclusivamente com critério de militância…
São os facilitadores?
O indíviduo que faz um primeiro parecer técnico, a partir do qual as coisas vão num sentido ou no outro. Neste campo há diferenças, infelizmente subiram de nível. Quem do sistema político se atreve a ocupar certas pastas hostilizando, rejeitando os interesses do grupo A ou do grupo B? Alguém neste país faz carreira no topo, topo, topo, dizendo-se ter mau feitio e que nunca ouve a voz da razão? Nestas condições é muito difícil provar que a decisão política é orientada ou gerada de acordo com interesses que entram numa teia de corrupção. Temos assistido, sobretudo na economia que lida com fundos como os estruturais e grandes projectos, a uma grande progressão de factores não transparentes e que não são objecto de fundamentação que leva às decisões.
Está a dizer que há mais sofisticação?
Há muito mais sofisticação na corrupção, que assume formas mais estratégicas do que ir à gaveta ou receber o cheque. A corrupção tem formas de pagamento diferido, circuitos de pagamento complexos, de tal maneira que há um ambiente mais permeável à submissão do interesse público aos interesses privados.
Donde, são piores as consequências do ponto de vista político e democrático…
São piores. Há muito gente no aparelho do Estado, políticos, que são profundamente incapazes de ficar com um tostão, pessoas com capacidade de decisão e que intervêm nos processos. Cada vez há mais destas pessoas, mas o que eu digo é que a guarda pretoriana da corrupção são os inocentes úteis…
Que fecham os olhos e não se insurgem?
Falta sempre uma última prova, há uma dúvida, não conseguiram fechar o circuito da comunicação de forma a ser conclusivo… A defesa da grande corrupção, da corrupção de Estado, está nas pessoas que do ponto de vista de dinheiros públicos são íntegras, mas que não impedem a corrupção à sua volta.
O que dificulta o trabalho dos investigadores, do Ministério Público?
Torna-o extremamente produtivo, como sabemos [riso].
Como se sentiu em 2006 com a oposição do seu próprio partido, o PS, ao seu projecto anticorrupção?
De duas maneiras distintas. A primeira reacção… foi das coisas que mais me chocou na minha vida. A virulência dessa reacção e a forma como se manifestou. Deixou-me em estado de choque.
Quem instigou essa reacção?
A direcção política da época identificou-se perfeitamente com essa reacção.
José Sócrates?
Sim, sem dúvida nenhuma. Quando digo direcção política digo direcção política, inclusive a direcção do grupo parlamentar. Não personalizo, houve no partido quem dissesse que isso [projecto anticorrupção] era para esmagar e esmaga-se.
Porquê?
Não se esqueça da guarda pretoriana, dos inocentes úteis. Nem todos seriam inocentes, mas a maior parte eram as duas coisas, inocentes e úteis. A título pessoal não tenho acusação a fazer a ninguém, os factos falam por si.
Falou de duas reacções. Qual a foi a segunda?
A de dizer que estou tão chocado que, ou é hipersensibilidade, ou corresponde à lógica das coisas. Infelizmente correspondia a um certo tipo de lógica que naquela altura se manifestou, não digo que estivesse sempre presente, mas [o combate à corrupção] não era tema que se discutisse. Um aspecto chave do combate à corrupção é a responsabilização de todos os agentes, do primeiro ao último, pela prevenção. Tinha uma disposição legal desse teor.
Já tinha tentado, quando foi ministro das Obras Públicas…
Fiz a lei de contratação das obras públicas, para acabar com uma questão que era, de facto, escandalosíssima. Os empreiteiros pediram publicamente ao Presidente da República e ao primeiro-ministro a minha demissão, não foram por baixo. Chamaram esse decreto-lei à rectificação no Parlamento e imaginem que se meteu na cabeça daquela rapaziada inteligente que ia ser anulado, se faltassem “n” deputados. Por acaso, soube disso horas antes, alinhei tudo. Estavam lá todos.
Diz que a corrupção não é só dos corruptos activos mas os que, por omissão…
Há uma cultura de irresponsabilização. As pessoas não assumem a responsabilidade plena dos seus cargos.
O caso GES/BES que durante um ano faliram na praça pública à vista de todos, enquadra-se nesta grelha?
O que se pode dizer do Banco de Portugal (BdP) é que acordou tarde. No tratamento do caso, mal foi descoberto, e foi descoberto com bastante antecedência [final de 2012], houve um temor reverencial. Em vez de ser tratado como um caso normal de supervisão em que se olha para a situação e se diz que é um caso muito delicado, que tem de ser tratado com pinças, mas essas pinças não podem permitir que haja qualquer dúvida sobre a determinação e a necessidade de alteração imediata. Quando uma entidade de supervisão, seja o BdP ou outra, ao abrigo da legislação de supervisão, pede informação que não lhe é dada ou não está correcta, só tem uma resposta.
A demissão?
Imediata. Para mim é uma falha moral do supervisor, que não compreende o código ético a que o seu comportamento profissional está necessariamente submetido, controlado o temor referencial. Hoje em dia é fácil criticar, bater, censurar gestores que perderam os seus lugares…
Compreende a recondução do governador do BdP?
Acho que a recondução foi mal feita. O governador chegou a esta fase muito criticado mas, mais do que isso, estávamos em vésperas de eleições e, para um cargo absolutamente decisivo devia haver duas cautelas, embora se pudesse dizer que se estava dentro do período em que o Governo ainda tinha legitimidade jurídica para actuar. Primeiro, pensar se o governador não poderia ficar em gestão quatro ou cinco meses. Era o correcto. Dizer que, depois, seria nomeada uma pessoa segundo o processo para exercer funções sobretudo após a resolução da situação política e da situação económica. Fazer supervisão num período de troikismo não é o mesmo que a fazer num período em que há outro tipo de equilíbrios políticos, sociais e económicos. Para mim a solução correcta era, de acordo com o Presidente da República, que devia ser envolvido, manter o governador em gestão. Depois, foi o pior possível. Nomeiam-no e telefonaram de manhã a António Costa a dizer que o governador ia ser nomeado à tarde. Isso, de certo modo, cerceia um pouco também o prestígio e credibilidade do cargo, não da pessoa.
Que lhe pareceu o programa do PS sustentado por 12 economistas?
É uma proposta muito cuidadosa com qualidade técnica. Começou por haver dúvidas mas, a partir de um determinado momento, o PSD, que apresentou 21 questões não comentou as respostas. O que significa que se deu por satisfeito. A pertinência das propostas em relação aos problemas não está em causa.
O que está em causa?
O processo político recebe e precisa destes contributos e, deste ponto de vista, o PS prestou um grande contributo. Em vários países, partidos, a sociedade, a universidade têm verdadeiras equipas especializadas de políticas públicas, que ao longo de todo mandato vão produzindo avaliações, estudos, propostas, de maneira que, quando se chega à fase do poder político fazer a síntese e o equilíbrio com o tipo de governação, há elementos para debate público. Agora, penso que é necessário cuidar mais do aproveitamento desse contributo na óptica de conteúdo político e comunicação política.
Faltou política?
Faltou análise política em certos aspectos. Toda a gente fala da TSU [Taxa Social Única]. Compreendo a razão que levou a equipa a dizer que era necessário dar um estímulo forte nas condições de aperto financeiro do país, de encontrar uma fórmula prudente porque não há recursos externos. Usar a TSU acaba por ser em benefício dos próprios, inclusivamente dos beneficiários da Segurança Social. Se deveria ser X, Y ou Z, se os empresários deviam ser isentos e os outros não, são coisas importantes. Mas a questão fundamental é saber se se usa, ou não, a TSU. Ora, em Setembro de 2012, houve uma manifestação espontânea organizada num lapso de tempo curtíssimo e que levou um milhão de pessoas à rua. A TSU sacralizou-se no imaginário popular como algo em que não se pode mexer. Esqueceu-se que a TSU serviu de cristalizador de uma crispação do pensamento, pelo que mexer na TSU era delicado. Não digo que seja impossível, que se tem de abandonar, mas não houve a percepção do impacto.
Não é estranho António Costa, um homem com experiência, ter embarcado nisso?
Há coisas que são óbvias pos factum.
Veneração à tecnocracia?
Para a equipa técnica era uma solução técnica possível, ponderada nos seus muitos aspectos positivos e negativos, nos parâmetros do raciocínio do mundo técnico. O mundo político é outro e o da comunicação política ainda é um terceiro.
Concorda que o PS fez um mau diagnóstico quando disse que o país estava pior do que antes da troika?
Determinados aspectos estão francamente piores. No processo político não se fala para o ponto médio, mas para segmentos bem determinados. Quando há centenas de milhar de desempregados, centenas de milhar com salário mínimo e centenas de milhar com emprego precário, a verdade desses não é a dos que vão passar férias ao Algarve.
O PS teve a estratégia correcta?
O PS não reflectiu na comunicação, o facto de as pessoas terem mais dinheiro na algibeira ou a perspectiva de o vir a ter. Isso suaviza, altera o raciocínio. Criaram-se dois diferenciais importantes, o de dizer que o pior já passou a menos que dêem cabo disto outra vez.
O programa económico do PS aposta no consumo. Há críticas por não ter uma estratégia industrial. Que tem a dizer sobre isso?
A versão de que a economia portuguesa, como se dizia antes das eleições, estava a recuperar não corresponde à realidade, como não corresponderá a ideia de que vêm aí tempos terríveis. É verdade que as exportações foram uma grande surpresa positiva. Mas tudo ponderado, a linha de crescimento das exportações é a mesma nos últimos 15 anos e, quando por força da conjuntura, foi difícil fazer os investimentos de renovação, o nosso aparelho produtivo ficou mais obsoleto do que dantes. E a agressividade da concorrência aumentou consideravelmente, no caso da China não apenas pelo preço da mão-de-obra mas pelo upgrade tecnológico. Também os antigos países do Leste estão-se a dirigir para mercados de produtos de média e alta tecnologia, porque estão inseridos na cadeia de valor alemã. Segundo estudos do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia, as exportações portuguesas em média estão a perder qualidade. Há sectores que conseguiram um grande salto de qualidade, como o calçado, certos segmentos do têxtil e é possível que o mobiliário. Há futuro, mas no cômputo geral as nossas empresas, mesmo que estejam a melhorar em qualidade, estão a melhorar menos que os concorrentes.
Qual é a saída?
Uma economia aberta que deve caminhar para a meta dos 60%, 65% do PIB na exportação, agora estamos a 40%. Isto não se consegue baixando o PIB, com salários baixos, mas com uma política de melhoria forte da competitividade das empresas na base na sua produtividade, nível tecnológico e processo organizacional. O que leva tempo, cinco a 10 anos. É justa a ideia que o país pode crescer pelas exportações, baseado num modelo de qualidade industrial altamente exigente, e pela reindustrialização através da substituição das importações. O país tem uma base de know how, de experiência humana em sectores ditos tradicionais que é muito significativa. No mundo novo não basta ter investimento bruto, pois há uma correlação negativa entre produtividade e investimento não inteligente. Deve-se fazer investimento na qualidade humana, em automação com base nos sistemas de informação e em intangíveis, ou seja, em patentes, marcas, software.
Essa estratégia implica apostar nos jovens, numa sociedade que está a envelhecer.
Muitos jovens mostraram capacidade de ter ideias novas e de as executar. Começamos a ter massa crítica de gente nova que precisa de ser apoiada para se constituir no núcleo futuro da nova classe empresarial. Isto exige tempo e financiamento.
Financiamento público?
Vamos ter um novo Banco de Fomento. Alguém sabe se fizeram alguma coisa além de pagar salários aos que lá estão? Tem de ser um tipo de instituição financeira diferente da banca de investimento que existe em Portugal.