A depressão como doença
Numa iniciativa recente dos médicos internos do Hospital de Santa Maria, tive ocasião de reflectir sobre o tema proposto, “A depressão e a sociedade”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Numa iniciativa recente dos médicos internos do Hospital de Santa Maria, tive ocasião de reflectir sobre o tema proposto, “A depressão e a sociedade”.
Optei, de início, por fazer um resumo do muito que já se sabe sobre a depressão-doença. Na génese da perturbação depressiva estão factores biológicos, genéticos e psicossociais, não sendo adequado tentar compreender a situação a partir de uma causalidade linear. Nos factores biológicos estão presentes a desregulação de neurotransmissores, a alteração da regulação hormonal e a perturbação imunológica. Nos factores genéticos, ninguém pode esquecer o dado da investigação que diz: se um progenitor tem uma perturbação depressiva, um filho tem um risco 10 a 25% superior de vir a ter uma perturbação do humor. A concordância é de cerca de 90% nos gémeos monozigóticos, isto é, se um tem a doença, é muito provável que o irmão também a tenha, mesmo quando excluímos os factores ambientais. Quanto aos factores psicossociais, sabemos como acontecimentos negativos (como a morte precoce do pai ou a perda do companheiro) podem precipitar um episódio depressivo.
Estes dados reforçam a ideia de que a depressão é uma doença. No entanto, a sociedade muitas vezes a encara como manifestação de falta de vontade, tentativa de chamar a atenção ou demonstração de desafio para com os familiares. Esta visão da perturbação depressiva faz com que muitos doentes escondam os sintomas e não procurem ajuda, o que leva a que o tratamento não se inicie ou comece muito tarde.
Na minha apresentação para os médicos internos recorri a um velho e precioso livro de William Styron, Visível Escuridão, publicado em Portugal pela Bertrand em 1991. Styron, romancista americano que morreu em 2006, publicou belos romances, como A Escolha de Sofia e Que o Fogo Consuma Esta Casa, que foram premiados e consagraram o autor; mas este pequeno livro é das mais precisas e belas descrições do que sente uma pessoa na fase aguda da depressão. Vejamos excertos dessa obra: “(…) o meu cérebro começara a sofrer o cerco familiar: pânico e desfasamento, e a sensação de que os meus processos de pensamento estavam a ser invadidos por uma maré tóxica e indizível que obliterava qualquer espécie de sensação de prazer ao mundo dos vivos. Isto para dizer mais especificamente que em vez de prazer eu experimentava na mente uma sensação próxima da dor, mas indescritivelmente diferente. (…) A dor persistiu e atingiu um crescendo nas horas seguintes até que, ao chegar ao hotel, me deixei cair na cama e ali fiquei a fixar o tecto, quase imobilizado num transe de supremo mal-estar (…)”
Neste livro, William Styron, com grande discernimento, protesta contra a banalização do termo “depressão”, uma das razões que explicam o não acesso ao tratamento de tantos doentes: “Um nome com uma tonalidade mole e sem qualquer espécie de imponência, indiferentemente usado para descrever um declínio económico ou um buraco no solo, verdadeira palavra mole para um mal de tal grandeza.”
Recorro a estas citações para salientar a importância de considerar a depressão como uma doença e para tentar mobilizar a sociedade para a prevenção e tratamento das perturbações depressivas. Enquanto considerarmos esta patologia uma variante da preguiça, como tantas vezes acontece, estaremos a discriminar muitas pessoas que sentem a dor psicológica de que Styron nos falou.
E lembro o que um dia me confidenciou um doente, acusado pela família de “falta de força de vontade”: vontade tenho, não tenho é força!