Parisienses desafiam o medo e regressam às esplanadas
Os moradores da capital francesa sentiram o apelo de circular pelas ruas, de peito feito e olhos marejados, para reclamar o seu quotidiano, os seus valores, o seu modo de vida.
O sábado, com o asfalto ainda quente, foi um dia de recolhimento: Chloé Geneste não ousou sair de casa, mas este domingo de manhã, com o sol a iluminar o parque de Buttes Chaumont, a jovem estudante de 20 anos estava preparada para uma dolorosa peregrinação pelas ruas que, de um momento para o outro, deixaram de ser simplesmente o caminho para a escola, a casa dos amigos, o café onde se encontram. “Passo por aqui e a única coisa que sinto é repulsa”, diz, imaginando o percurso feito pelos terroristas que atacaram o seu bairro preferido de Paris.
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O sábado, com o asfalto ainda quente, foi um dia de recolhimento: Chloé Geneste não ousou sair de casa, mas este domingo de manhã, com o sol a iluminar o parque de Buttes Chaumont, a jovem estudante de 20 anos estava preparada para uma dolorosa peregrinação pelas ruas que, de um momento para o outro, deixaram de ser simplesmente o caminho para a escola, a casa dos amigos, o café onde se encontram. “Passo por aqui e a única coisa que sinto é repulsa”, diz, imaginando o percurso feito pelos terroristas que atacaram o seu bairro preferido de Paris.
Não é uma ideia que lhe agrade, passar pelo restaurante Petit Cambodge, de onde a sua melhor amiga se levantou 40 minutos antes do ataque (que matou 15 pessoas), ou pelo café Bonne Bière, cuja esplanada é o primeiro pouso do seu grupo de amigos antes de uma noite de diversão ao longo do vizinho canal de St. Martin. Chloé explica que é uma necessidade: “Para mim é importante voltar a cruzar estas ruas e parar nestes lugares. É um terrível confronto com o mal, mas tenho a cabeça erguida, e digo estou aqui, vocês não vão ganhar.”
Tal como Chloé, centenas — milhares — de vizinhos da zona leste de Paris sentiram o mesmo apelo, de circular pelas ruas, de peito feito e olhos marejados, para reclamar o seu quotidiano, os seus valores, o seu modo de vida. Ver as coisas pela televisão não é a mesma coisa do que estar na rua, mesmo se o que se via eram os lugares conhecidos: aqui estão os sons e os cheiros, os sorrisos amáveis do resto da humanidade no caminho e o calor que veio provar que a vida continua. “Não sei se será o caso com as outras pessoas, mas acho que sim: precisamos de conviver, de nos sentir unidos, de perceber que continuamos todos juntos e que não nos deixaremos abater”, acredita Chloé.
Descendo pelo bairro de Belleville, do 19.º bairro (arrondissement) para o fatídico 11ème, tudo parece igual ao último domingo, a todos os domingos — menos o tradicional mercado da Place des Fêtes, que por causa do estado de emergência nacional não aconteceu (nem esse, nem nenhum, uma vez que todas as “concentrações” de pessoas estão proibidas até quinta-feira, e possivelmente durante os próximos meses, se a assembleia decidir prolongar esta medida excepcional). As padarias, as pequenas mercearias e supermercados, as lojas do bairro chinês e do bairro árabe, as livrarias, sapatarias e prontos-a-vestir, garrafeiras e lojas de design têm as portas abertas e clientes a entrar e sair; as esplanadas começam a encher-se de gente. Chloé, que prefere passar horas com uma cerveja ou um copo de vinho e uma tábua de enchidos, na esplanada, a uma noite fechada na discoteca, admira a “coragem” de quem se recusa a mudar de comportamento por causa do que acaba de acontecer. “Penso que para mim ainda é demasiado cedo. Gostaria de me sentar na esplanada, mas a verdade é que tenho medo”, confessa.
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“Aqui é um ginásio municipal e ali é o Hospital St. Louis”, aponta Chloé, virando numa esquina onde um carro da polícia, uma fita vermelha e vários agentes de segurança de colete à prova de balas vestido são o primeiro sinal de que um dos locais da tragédia fica ali ao lado. São 20 ou 30 metros pela Rue Alibert até se chegar ao cruzamento atingido pelos terroristas, onde se encontra um pequeno ajuntamento com uma ou duas centenas de pessoas, de todas as idades: no lado esquerdo, o Petit Cambodge, à direita, logo em frente, na Rue Bichat, o Bistrot Le Carillon, ainda com um cartaz pintado a giz pendurado à porta a anunciar a “Happy Hour”. Um e outro têm as montras partidas a tiros de metralhadora; o chão do passeio está repleto de flores e velas, folhas de papel com mensagens escritas em várias línguas a exprimir solidariedade com Paris e os parisienses.
Um gigantesco cartaz, assinado por Mehdi, tem uma longa mensagem para o Presidente, François Hollande. “Nasci e vivo neste belo e grande país. Sou um filho da república francesa e tenho medo”, admite. Em frente, intocado, o restaurante Maria Luísa é a prova da terrível aleatoriedade dos acontecimentos de sexta-feira. “Pergunto-me, porquê aqui e não ali?”, diz ela, apontando para um lado e para o outro. O movimento fá-la parar; talvez tenha sido assim que os terroristas mataram dezenas de pessoas, sentadas a jantar ou a beber um copo numa noite comum. “Eles não foram atacar a Paris dos brancos e dos ricos, eles vieram atingir-nos no nosso bairro popular, no lugar onde todos convivemos, os que vêm de vários países, os que têm várias religiões ou então não têm religião nenhuma”, como Chloé, que se sente ligeiramente irritada com o incitamento à oração por Paris. “Digam que estão a pensar em nós, não digam que estão a rezar por nós, porque é por aí que começam as complicações”, refere.
No cruzamento tomado pela emoção, há quem verta lágrimas e quem se abrace com força: ninguém se detém muito tempo, apenas o necessário para uma vénia, uma homenagem; o movimento é contínuo e o que impressiona é o silêncio. “É extremamente comovente que seja tão silencioso”, nota Chloé, agradada de que assim seja.
Respeitando a solenidade, Maureen O’Sullivan, uma norte-americana de Los Angeles que veio para o festival Paris Photo, tem na mão um ramo de tulipas para entregar a amigos parisienses que moram por cima do restaurante. “O que posso dizer sobre uma coisa destas? É tudo tão chocante”, observa. “É esmagador. E [por causa disto] tudo vai mudar outra vez”, estima.
Virando à esquerda, pela Rue Bichat, Chloé continua a traçar o roteiro da sua vida: mostra o apartamento, por cima do talho da Rue Faubourg du Temple, onde fez babysitting quatro vezes por semana durante todo o ano lectivo passado, para poupar dinheiro para um estágio de dois meses feito num museu irlandês, este Verão (Chloé estuda História de Arte na Sorbonne, a maior universidade de Paris). O edificado fica exactamente a meio do caminho entre o Petit Cambodge e o café Bonne Bière, outro dos locais arrasados pelos terroristas. Ali, tal como no restaurante Casa Nostra, do outro lado do passeio, a cena repete-se: há muitas flores, muitas velas, mensagens dispersas de amor e solidariedade.
O cenário é realmente dramático: não é só o chão manchado de morte que incomoda, é sobretudo o rasto das balas na montra do restaurante, uma, duas, três, quatro, os buracos no vidro seguidos formam uma linha recta meio metro acima das cadeiras e mesas que ainda não foram levantadas. Os atacantes dispararam com a mão firme, a mira deliberada para a cabeça de quem estava sentado na esplanada. Sem saber se consegue verbalizar exactamente a sensação terrível que a percorre, a jovem lembra o refrão clássico que diz que uma coisa destas pode acontecer a qualquer um: “Não é qualquer um, sou eu. Não há nada que me distinga de todas as pessoas que morreram.”
Na sexta-feira, por estar cansada, Chloé preferiu ficar a ver um filme em casa de uma amiga do que juntar-se ao resto do grupo que tencionava divertir-se no canal de St. Martin. Ignorantes do que se passava no lugar onde poderiam estar com os seus amigos, perceberam logo que algo muito estranho estava a acontecer quando todos os alarmes dos telefones começaram a soar, telefonemas, mensagens, alertas dos jornais, chats e whatsapps… “E depois, minuto a minuto, eram três mortos, oito mortos, 20 mortos, 43 mortos… E depois eram 100 mortos, quando acabou o assalto ao Bataclan”, conta. “E nós ligávamos para toda a gente de que nos lembrávamos: diz-me onde estás, diz-me que estás bem, tem cuidado contigo, tenho saudades tuas.”
“Paris parece muito grande, mas toda a gente conhece alguém que tenha sido atingido por esta tragédia”, afirma Chloé. No seu caso, uma amiga do liceu, “uma miúda igual a [ela]”, continua desaparecida desde sexta-feira à noite. Um colega de universidade, de quem ninguém sabia, acabava de ser localizado, ferido e em estado de choque, num dos hospitais que receberam feridos do Bataclan — o rapaz, que está consciente, ainda não disse uma palavra.
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De todos os locais atacados, a sala de espectáculos, com capacidade para 1500 pessoas (e lotação esgotada na noite dos atentados) é o único que permanece totalmente isolado pela polícia. Barreiras em ferro separam dois quarteirões do movimentado Boulevard Voltaire do resto da cidade; um polícia grita a quem passa para “circular pelo passeio” e “sem parar, por favor, sem parar”: não há tolerância para agrupamentos. Ali, o altar de homenagem improvisa-se no canto de uma esquina, ao lado do semáforo. Chloé não tem interesse em deter-se ali; prefere vaguear pela Place de la Republique, porque, explica, esse é um lugar “verdadeiramente simbólico” para ela, para todos os parisienses e todos os franceses (que ela encontrou em Janeiro, vindos de diferentes cantos do país, quando um grupo de terroristas abateu 17 pessoas na redacção do jornal satírico Charlie Hebdo e num supermercado judaico).
“Sinto uma grande necessidade de me aproximar dos símbolos da república, não sei como dizer, mas é hiperimportante, a bandeira, a Marselhesa”, e o eixo Republique-Bastille-Nation, as três praças que bem podiam ser rebaptizadas liberdade-igualdade-fraternidade. Chloé não sabe quando, mas mal pode esperar pelo dia em que todos voltem a ser chamados à praça, “para voltar a experimentar o mesmo sentimento de unidade” e também para poder voltar a gritar “Merde!” ao terror e aos terroristas.
Na coluna da estátua da República ainda estão colados os cartazes com os nomes das vítimas do Charlie Hebdo; encavalitada para espreitar as novas mensagens deixadas desde sábado, a jovem estudante percebe que, onde antes se lia “somos todos Charlie”, se lê agora “somos todos a república” e “somos todos a liberdade”. Em letras garrafais, num cartão castanho, alguém escreveu: “E continuo a não ter medo.”
Entre a multidão, um homem levanta-se e grita: “Parisienses!” As cabeças voltam-se, nervosas e curiosas. O homem começa a bater palmas, ritmadamente, e sem perder tempo pede “um aplauso para a França”. À sua volta, todos respondem ao apelo. Chloé, comovida, dá por finda a sua difícil via-sacra. “Vamos para casa almoçar”, determina.