Matou o seu cão a tiro? Pode não ter cometido crime algum

Juristas confrontam-se com incongruências da lei que criminalizou maus tratos e abandono de animais. Nova lei entrou em vigor há um ano e dos mil inquéritos abertos resultaram quatro acusações.

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Quatro acusações foram até agora deduzidas pelo MP por crimes contra animais de companhia MIKE FINN-KELCEY/REUTERS

O carro pára à porta da associação de protecção dos animais e descarrega o pequeno animal de quatro patas, velha companhia da família que decidiu que desta vez não se vai dar ao incómodo de o levar de férias consigo ou de lhe arranjar guarida. O cão acaba por ser recolhido pela instituição. Como acabou por não chegar a correr perigo, a família nunca será obrigada a sentar-se no banco dos réus, para responder pelo crime de abandono de animal doméstico.

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O carro pára à porta da associação de protecção dos animais e descarrega o pequeno animal de quatro patas, velha companhia da família que decidiu que desta vez não se vai dar ao incómodo de o levar de férias consigo ou de lhe arranjar guarida. O cão acaba por ser recolhido pela instituição. Como acabou por não chegar a correr perigo, a família nunca será obrigada a sentar-se no banco dos réus, para responder pelo crime de abandono de animal doméstico.

Terminada a época de caça, o dono de quatro cães decide abatê-los a todos a tiro, dando-lhes uma morte imediata: já não lhes encontra préstimo. Se antes disso não os maltratou, será difícil a justiça incriminá-lo.

Pouco mais de um ano depois de os maus tratos e o abandono de animais domésticos se terem tornado crime, os juristas confrontam-se com as incongruências da nova lei. Uma lei que, apesar dos alertas atempados do Conselho Superior da Magistratura, entre outras vozes, não pune a violência praticada contra outros animais que não os de companhia. O juiz que assina o parecer que este organismo enviou à Assembleia da República antes de a legislação ser aprovada diz ser incompreensível que a protecção contra os maus tratos não se estenda aos restantes vertebrados, como de resto acontece noutros países, como a Alemanha. Pontapear uma ovelha ou torturar um urso para o obrigar a fazer habilidades circenses pode quando muito redundar numa multa, mas não mais do que isso. Uma professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Carla Amado Gomes, considera a opção hipócrita. “Não só não se protege por igual todos os animais, como são motivos egoístas que nos levam a proteger os animais de companhia ou aqueles que nos prestam serviços”, escreveu numa publicação académica.

“Foi o compromisso político e social a que se conseguiu chegar para dar este passo gigante na protecção dos animais em Portugal”, justifica um dos deputados responsáveis pela iniciativa legislativa, o social-democrata Cristóvão Norte, acrescentando que este não foi um equilíbrio fácil. Desde Outubro passado que quem, “sem motivo legítimo”, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia arrisca até um ano de cadeia, -– pena que pode subir para o dobro caso desses actos resultem sequelas graves para a vítima, ou mesmo a morte.

O que a lei não diz, aponta o magistrado do Ministério Público indigitado pela  procuradora-geral da República para acompanhar a evolução do fenómeno da criminalidade contra animais de companhia, Raul Farias, é o que sucede a quem matar os seus bichos sem os maltratar. Com um tiro, por exemplo. “O que conduz ao resultado desconcertante de se punir penalmente quem agrida um animal de companhia e de se ilibar quem o mate de forma intencional”, fazia notar, numa conferência em que participou no final do ano passado, uma advogada da associação de direito animal Jus Animalium. Como, do ponto de vista do direito, os bichos continuam a ser olhados como “coisas”, chega-se ao ponto de se poder punir com até oito anos de prisão quem destrua um bem alheio – como o gato persa do vizinho, se for suficientemente valioso para uma pena deste calibre. Porém, se for o dono do animal a proceder ao abate, o máximo que lhe poderá suceder, segundo o procurador, é ser multado.

“Não faz sentido que o dono não possa maltratar mas possa matar”, observa o magistrado, que neste como noutros aspectos aguarda uma revisão da lei que a torne coerente e mais operacional. Enquanto isso não sucede vai compilando os problemas resultantes da sua aplicação no terreno. Veja-se o caso do abandono, que passou a ser punível com até seis meses de cadeia: “É necessário que o animal de companhia veja em perigo a sua alimentação e os cuidados que lhe são devidos para o dono poder ser responsabilizado”, descreve. Se for recolhido por alguém pouco tempo depois de ter sido deixado à sua mercê considera-se que não foi cometido qualquer crime.

E depois há o problema dos animais domésticos sem dono, faz notar o mesmo especialista: não é totalmente claro se também se lhes aplica a protecção conferida aos animais de companhia. Raul Farias chama ainda a atenção para um último problema: o destino dos bichos vítimas de maus tratos. Devem ser restituídos ao dono, quando este foi já condenado por esse crime? Nova alteração legislativa, publicada há três meses, estabelece a possibilidade de este tipo de delinquentes serem proibidos de voltarem a ser donos durante cinco anos. “O animal de companhia fica num limbo”, descreve o procurador. Se for declarado perdido a favor do Estado, como uma qualquer mercadoria, o mais certo é ir parar a um canil. “Pode vir a ser abatido”, admite o deputado do PSD, reconhecendo a “contradição de uma lei que tem por objectivo salvaguardar o bem-estar” dos animais domésticos. Já na fase em que o agressor ainda é apenas suspeito de crueldade não estão previstas medidas de coacção que o afastem da vítima – muito embora o cão ou o gato possam ser-lhe apreendidos enquanto provas do delito.

A justiça prepara-se para julgar pela primeira vez alguém ao abrigo da nova lei, um homem que matou o seu galgo à fome numa freguesia de Campo Maior. Outros casos se lhe seguirão. Nestes, como em nenhuns outros processos, subsiste uma dificuldade inultrapassável, faz notar Raul Farias: “As vítimas não falam”.

Deputado do PSD disposto a corrigir insuficiências
Apesar de não estar convencido que a lei que ajudou a elaborar impeça a condenação em tribunal de quem matou o seu animal de estimação, o deputado do PSD Cristóvão Norte diz que não será difícil o Parlamento vir a corrigir algumas “insuficiências” que ele próprio detecta no diploma legal. “O conceito de maus tratos já inclui a morte. É impossível matar sem maltratar”, defende.

Posição idêntica tem o deputado do Partido dos Animais, André Silva – que reconhece, porém, que o texto legal se presta ao entendimento contrário. Mesmo num caso mediático como o do cão Simba, alegadamente abatido a tiro por um vizinho no concelho de Idanha-a-Nova, o deputado explica que a acusação deduzida pelo Ministério Público só contempla danos, e não o crime de maus tratos – apesar de o leão-da-rodésia ter usado as últimas forças para ir morrer ao pé dos donos, a ganir e a cambalear.

“Na prática, partir um cão de loiça é mais grave do que provocar a morte a um cão verdadeiro. E se se quebrar um cão de porcelana de uma qualquer dinastia chinesa, ainda mais grave é”, ironiza um jurista, Alexandre Guerreiro, num blogue dedicado à defesa dos direitos dos animais. “Com a nova lei, aquele que maltrata sai beneficiado e o animal desprotegido”, observa.

André Silva explica que quer o primeiro-ministro Passos Coelho quer os partidos da oposição mostram neste momento abertura para alterar o estatuto jurídico dos animais, por forma a deixarem de ser encarados como objectos pela lei.