Ava Rocha tem o pé no movimento
Anotem isto: Ava Patrya Yndia Yracema é um dos grandes acontecimentos musicais deste ano.
Se derem licença, temos um anúncio a fazer – ou melhor, ela tem um anúncio a fazer: “Há um novo movimento musical no Brasil, não um movimento com nome específico, até porque há uma diversidade muito grande entre nós”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Se derem licença, temos um anúncio a fazer – ou melhor, ela tem um anúncio a fazer: “Há um novo movimento musical no Brasil, não um movimento com nome específico, até porque há uma diversidade muito grande entre nós”.
O que se passa é que ela e os amigos são “os primeiros que não têm preocupações com o passado”, diz ela, no fim de uma conversa sobre o seu primeiro disco que, vai-se a ver, não é o seu primeiro disco. Em fundo há uma voz que geme e guincha e chama e clama por atenção, mas que isso não nos distraia do seguinte facto: eles não quererem saber do passado não é falta respeito “pela Tropicália, pela bossa, pelo samba”, porque tudo isso “está intrínseco na pele do brasileiro”, o brasileiro “é toda essa confusão”.
O que se passa com ela e com os amigos é mais simples: “A gente está só criando o agora”, diz ela – e a voz em fundo continua a gemer e chamar e clamar por atenção.
Eta, parágrafos mais confusos. Vamos lá pôr ordem nesta bagunça. Ponto um: a voz que geme não é dela. Seguidamente: ela é Ava Rocha, cujo primeiro disco a solo, Ava Patrya Yndia Yracema, acabou de ser prensado nos formatos físicos conhecidos por vinil e CD. “A gente” a que ela se refere é ela, o marido (Negro Leo) e os amigos de ambos (Luís Augusto, Jonas Sá, Marcelo Calado, Domenico Ancelotti) que não só compuseram os temas de Ava Patrya Yndia Yracema como constituem o tal novo movimento, cuja música se borrifa para as normas, ao ponto de alguma crítica afirmar que Ava Patrya Yndia Yracema é o exemplo supremo do pós-tropicalismo. E agora para acabar: a voz que gemia era da filha de Ava. Já Ava é filha do realizador Glauber Rocha. E com isto esperamos que esteja tudo menos confuso. Falta esclarecer se Ava Patrya Yndia Yracema é ou não o primeiro disco de Ava – mas voltaremos a esta matemática mais à frente. Como é que se volta mais tarde à frente? Esperem para ver.
Trabalhar com paradoxos
Para já retenham este ponto fundamental: Ava Patrya Yndia Yracema é um dos grandes acontecimentos musicais deste ano, parte canção clássica com arranjos de cordas, parte folclore, parte vanguarda, uma salgalhada com uma profusão de géneros e cores capaz de fazer as siglas HD corarem de vergonha.
Esta música, fiquem sabendo, não podia senão ser a constante sobreposição inesperada de elementos aparentemente incompatíveis que é. Trata-se de um disco em que uma canção veste duas camisolas e não usa calças, para a canção seguinte usar fato de tweed, mas com ténis. Porque é assim que ela gosta: “Tenho prazer em trabalhar com paradoxos, ambientes híbridos, transgénero”, diz Ava, que é uma rapariga de léxico profuso e rara facilidade em concatenar ideias em longas frases fluídas e precisas.
“Acredito muito em montagens, na relação entre as coisas, na junção das coisas. Eu sou experimental e também sou clássica e o disco reflecte isso. O meu lema é ser totalmente livre para criar o que eu quiser”.
Livre ou não, Ava não podia ser outra coisa além de artista. Não por ser filha de Glauber, que morreu quando ela tinha dois anos, mas por ser filha de Glauber e Paula Gaítan, também realizadora: ninguém combate tanta genética. Mas não foi só a genética, foi a cultura: “A vida toda, desde pequena, eu frequentei sets de filmagem, passava madrugadas montando do lado da minha mãe. A minha casa sempre foi muito frequentada por pessoas de cinema, e por artistas plásticos – sobretudo esses dois”.
Porque a mãe é colombiana, aos 14 anos Ava foi morar para Bogotá. “Via filmes o dia inteiro, nas cinematecas”, conta. Não admira que nessa época já conhecesse “a obra de Godart, que amo, assim como Pasolini ou Tarkovski”. Na altura viu de enfiada todos os filmes de Antonioni, Ivan, o Terrível (de Eisenstein). “A Identificação de Uma Mulher e A Noite [Antonioni] foram filmes que vi muitas vezes”, conta.
Não admira, portanto, que quando não havia aulas e quando não estava a ver filmes tivesse “começado a fazer os meus próprios filmes, com os amigos”. E também não admira que sempre tenha cantado, “desde pequena – na adolescência cantava bastante embora não profissionalmente”. E também não admira que os primeiros empregos que teve tenham sido nas artes. “Envolvi-me muito cedo com o cinema, fui realizadora, montadora e fiz bandas-sonoras, além de cantar nos filmes, não só naqueles em que trabalhava mas em situações em que os meus amigos me convidavam para pôr uma voz ou compor alguma coisa”.
Mas foi só em 2006 que Ava começou a encontrar a sua voz. Nesse ano ela entrou no seu teatro preferido, o Teatro Oficina, e Zé Celso, o encenador, “falou que queria que eu cantasse numa peça porque me ouviu cantando. E eu aceitei, porque já era um desejo que eu tinha há muito tempo mas para o qual não tinha tido tempo”.
Ava sendo Ava, acabou a cantar uma melodia de uma canção antiga, popularizada por Marlene Dietrich, por cima de uma canção brasileira. Ou, para usar os termos dela, começou “a conectar uma série de coisas. Na adolescência estudei teatro, porque queria ser actriz. Mas nunca me senti somente actriz, ou somente cineasta ou cantora. E no Oficina conectei tudo, cantava, actuava, filmava as actuações e até da luz tratava”.
Conectar é o que Ava faz. Ao minuto e quarenta e cinco de Boca do céu, o primeiro tema de Ava Patrya Yndia Yracema, há uma guinada melódica, o ritmo diminui e de repente cai uma chuva de cordas, acompanhada do som dos timbalões – a mais perfeita musicação do paraíso, antes de tecladose metais que lembram Marcos Valle levarem o tema para uma terceira e igualmente inesperada secção. Já Transeunte Coração é quase ié-ié (pelo menos antes da virada que acontece ali pelo minuto de duração), enquanto Auto das Bacantes, com os seus instrumentos tradicionais distorcidos, podia estar num disco de Tom Zé. Conectar é o que ela faz.
The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/CITACAO_CENTRAL.cshtml' was not found. The following locations were searched:
~/Views/Layouts/Amp2020/CITACAO_CENTRAL.cshtml
CITACAO_CENTRAL
Depois de cantar nos palcos da Oficina, Ava conectou-se com a música. “Mergulhei mesmo de cabeça na música”, conta, e é neste momento que se esclarece a questão de Ava Patrya Yndia Yracema ser ou não o disco a solo dela: antes de editar o disco a solo, Ava teve uma banda chamada Ava, com a qual editou um disco, Diurno. Diurno é a estreia; Ava Patrya Yndia Yracema é a estreia a solo. E tal como prometido, numa espectacular movimentação voltámos mais tarde à frente e esclarecemos a situação do primeiro disco.
Ora, nesse disco ela cantava “Eu sou homem também” (e Dietrich era menina para ter cantado frase assim. Se não perceberam a piada, vão ver filmes.) Neste fez um disco de mulher e vale a pena perceber o que ela quer dizer com isto: “Não é um disco que queira falar de assuntos de mulher”, no sentido que, por exemplo, os media atribuem à palavra “mulher” (= vestidos, cremes, receitas). É antes um disco que “navega nas nuances do universo feminino. É muito feminino, não porque seja feminista, mas porque eu sou uma mulher cantando mil coisas, que desembocam nessa Pangeia na qual eu me coloco”. Embrulhem.
Pangeia foi o continente único, de cuja fragmentação terão surgido os restantes continentes. Ava fala assim, com termos como Pangeia a dar à costa naturalmente, enquanto pega na filha que quer atenção. Usa expressões como “fragmentação de uma unidade” para descrever conceptualmente o disco e, depois de pedir desculpa por pousar o telefone para trocar duas palavras com a catraia, sai-se com esta: “Ao mesmo tempo que você é uma unidade, você é uma fragmentação. Ao mesmo tempo que você é único, você é universal: você está falando da sua maternidade e toda a mulher pode ser mãe”.
Quando começou a conceber, Ava já tinha concebido. Isto é: quando começou a compor este álbum já estava grávida – a voz da garota, aliás, ouve-se no disco. A estranhíssima Tão tão parece ser-lhe dedicada: “Eu e você/ somos tão, tão// só lhe quero cada vez mais”, canta Ava, e é difícil acreditar que ela é a mesma pessoa que trauteia Você não vai passar, que é tão doce que uma simples escutadela faz disparar os niveis de glicemia.
(Agora que pensamos nisso, em Tão tão ela usa a expressão “sem-vergonha”, por isso é possível que não se refira à filha. Outro dado interessante: abrir parágrafos com parêntesis dá um ar altamente misterioso ao conjunto das orações.) Como certamente se recordarão pelo que foi escrito nos primeiros parágrafos, dificilmente este disco podia ser mais feito em família. Negro Leão, o marido, compõe algumas faixas, toca no disco e participou na concepção do mesmo. E os restantes músicos também são amigos.
“Sem amizade esse disco não teria acontecido, porque não houve orçamento”. Para alguém que não vive no Brasil (que é um mercado enorme), parece estranho que um brasileiro, para mais filho ilustre, não tenha orçamento para fazer um disco, mas a explicação é proverbial: “Na altura não houve gente que pusesse dinheiro. Porquê não sei. Sei que não 'tá fácil. Mas eu não esperei a situação ideal, segui o ímpeto de fazer, criei uma situação propícia, sintonizada com o meu ímpeto, de fazer aquele disco naquela hora, não fiquei paralizada”.
E foi assim que apareceu “esse som cabeça oca, miolo mole”. Bem, isto na realidade é uma citação de Hermética, uma das cantigas deste disco e na realidade a citação nem se adapta assim tão bem ao álbum. Já “frenético sónico sound” (da mesma cantiga), sim. Onde raio terá ela ido inventar este frenético sónico sound? Ao tropicalismo? Ao cinema novo?
“Esses movimentos”, começa Ava, “eles me permeiam, porém eu não procuro reproduzi-los. Acho que as minhas referências já se tornaram amálgamas. Tem muita coisa do mundo, da vida, que me influencia”. É aqui que ela, de certo modo, anuncia o fim da dependência do passado: “Algumas matrizes do pensamento que vai guiar a construção de uma obra permanecem ao longo do tempo, mas a gente está em movimento, então a gente está produzindo aqui e agora”.
Há um par de palavras que Ava repete muito. Liberdade é uma delas. Movimento é outra. “A cultura tem pé no movimento”, diz ela. Tradução: a cultura está a acontecer neste exacto instante. “Há cultura que é reverenciada, ritmos que são pesquisados, mas a gente está em pleno processo cultural”, diz, explicando que o que deseja é continuar a ter a liberdade para criar como quer: “Nós 'tamos vivendo nossa explosão criática agora. 'Tamos fazendo agora a nossa parada. Sem querer destruir nada do que foi feito antes, a gente só quer construir”.
Baita pé, esse que Ava pôs no movimento.