A partilha de Paulo Ribeiro tem jeitos de festa

No palco da Culturgest, em Lisboa, a 13 e 14 de Novembro, Paulo Ribeiro estreia A Festa (da Insignificância), uma celebração não tanto dos 20 anos da sua companhia quanto da chegada a um lugar de paz e de transição para um novo ciclo.

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Um par de sapatos de salto alto é largado cuidadosamente na boca de cena. A bailarina avança como se chegada da plateia e prescinde desse elemento de formalidade e de código de conduta social. O calçado é um empecilho, rouba a sensibilidade ao corpo, domestica-o, impõe-lhe regras, oferece leituras de estatuto sócio-económico. É por isso dispensado. Porque n’A Festa (da Insignificância), coreografia em estreia na Culturgest, em Lisboa, a 13 e 14 de Novembro (Viseu em Dezembro, Porto em Fevereiro) e que coincide com as duas décadas da Companhia Paulo Ribeiro, os corpos são livres e procuram-se guiados pela necessidade do toque, por uma forma de desenhar o movimento sem pensar em convenções ou signos. Cada gesto entende-se como uma manifestação de intenso prazer físico. E quando soa a deliciosamente dengosa canção de Tom Zé Prazer Carnal, em que se “sacode a fera em fúria animal”, é também isso que se vê em palco.

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Um par de sapatos de salto alto é largado cuidadosamente na boca de cena. A bailarina avança como se chegada da plateia e prescinde desse elemento de formalidade e de código de conduta social. O calçado é um empecilho, rouba a sensibilidade ao corpo, domestica-o, impõe-lhe regras, oferece leituras de estatuto sócio-económico. É por isso dispensado. Porque n’A Festa (da Insignificância), coreografia em estreia na Culturgest, em Lisboa, a 13 e 14 de Novembro (Viseu em Dezembro, Porto em Fevereiro) e que coincide com as duas décadas da Companhia Paulo Ribeiro, os corpos são livres e procuram-se guiados pela necessidade do toque, por uma forma de desenhar o movimento sem pensar em convenções ou signos. Cada gesto entende-se como uma manifestação de intenso prazer físico. E quando soa a deliciosamente dengosa canção de Tom Zé Prazer Carnal, em que se “sacode a fera em fúria animal”, é também isso que se vê em palco.

Não porque a “fúria animal” se materialize num sôfrego e desembestado leque de movimentos; simplesmente A Festa parece assentar sempre numa relação deleitosa com os corpos. “É uma peça muito epidérmica”, reconhece Paulo Ribeiro. “No sentido de haver um prazer que passa para fora, um prazer em estar com os outros, em sentir, provocar, tocar, interagir.” É uma peça “do tacto, do contacto, da sensualidade”, em que festa, brinca o coreógrafo citando um amigo, pode ser tanto uma exaltação popular quanto uma simples carícia.

Quando Paulo Ribeiro fala de tacto, de contacto e de sensualidade, não é, no entanto, uma sombra sexual que lhe invade o discurso. É o prazer de cada um dos intérpretes, antes de mais, com o seu próprio corpo e, depois, um prazer partilhado com os outros, numa imagem que se diria de criação de uma comunidade. O toque aparece como qualidade do que é e está próximo, de extensão do afecto, de construção de uma intimidade, veiculada com uma “falsa espontaneidade” que deriva de uma das mais essenciais ideias motrizes do movimento trabalhado pelo coreógrafo. “Gosto imenso de fazer com que as cenas aconteçam como se estivessem a ser construídas daquela maneira e naquele momento. Como se não pudessem ser de outra forma. Está a acontecer ali e só podia ser assim.” Em cada espectáculo, Paulo Ribeiro quer que essas situações lhe surjam sempre como vitais, como se vividas naquele momento e não reproduções rigorosas dos ensaios.

O devir colectivo e a forte carga comunitária presentes na peça espelham-se na forma como os poucos protagonismos se delineiam – nunca implicam o apagamento do conjunto para um dos intérpretes sobressair, ainda que “às vezes seja mais fácil individualizar e trabalhar solos do que dar vida a um grupo omnipresente”. Mesmo em segundo plano, todos suportam esse destaque, como se Paulo Ribeiro quisesse fazer deste clima de festa a sublimação mais fulgurante de uma sociedade em que, raiando a utopia, ninguém é deixado cair ou abandonado à sua sorte.

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Mundo novo
A Festa (da Insignificância), que partilha o título com o último romance do checo Milan Kundera, sucede ao solo Sem Um Tu Não Pode Haver Um Eu (2013), cuja carreira, após uma derradeira reposição em Portugal no Teatro São Luiz em Outubro, se encerra em Paris de 20 a 26 deste mês. Sem Um Tu… usava Lanterna Mágica, biografia do cineasta Ingmar Bergman como candeia, e seguia nessa tentativa de reflectir sobre a relação de dependência entre intérprete e público que, de forma escancarada e extrema, o seu título enunciava. Mas, então, o coreógrafo que voltava a ser bailarino, convocava o público ao dispor-se diante de si, isolado. “No fundo, chamava as pessoas a serem testemunhas da minha perdição, do meu desnorteio”, explica. “Interpretava e dançava nessa espécie de catarse, nessa espécie de entrega total. Mas fechava-me no palco. Fechava-me tanto que suscitava a vontade de as pessoas abrirem as portas para chegarem mais perto ou até mim pelo coração.”

Em A Festa (da Insignificância) a convocação do público é de uma outra largueza. O público não é convidado a ser apenas testemunha, é quase desafiado a tomar o palco. A criação e a expressão de uma comunidade que Paulo Ribeiro patrocina em cena são estendidas na direcção da plateia, afirmando que todos, mesmo que figurativamente, se encontram em palco – uns, intérpretes, marcando a presença com o corpo, concentrando os olhares; os outros, público, projectando naqueles corpos os seus próprios desejos e anseios. Até porque a ideia de festa se justifica pela partilha, pela assunção de que se chamam terceiros para com eles celebrar a chegada a um qualquer lugar. No caso, esse lugar pode resumir-se facilmente ao estabelecimento da linguagem que o coreógrafo começou a forjar desde que criou Sábado 2 (1995) para a Companhia Paulo Ribeiro, uma linguagem que aqui se permite explorar o encontro com recurso a quadros mais crus, poéticos, irónicos ou até pincelados de humor.

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Desta vez, no entanto, o aniversário da companhia é uma mera coincidência. Em 2005, a partir de “uma espécie de best of feito com o somatório de alguns momentos” de peças anteriores, Paulo Ribeiro ofereceu um novo contexto a fragmentos de Sábado 2, Rumor de Deuses, Azul Esmeralda e Memórias de Pedra – Tempo Caído, transformados em Memórias de Um Sábado com Rumores de Azul. Agora, se admite poder falar-se de “celebração de carreira e de maturidade”, já não é o olhar sobre o pescoço em busca de imagens do passado que lhe estimula o gesto artístico. O próprio processo de criação de A Festa aconteceu em harmonia com os bailarinos, assente na cumplicidade e menos na imposição – “muitas vezes quando se é mais novo vai-se muito pela imposição, por uma certa disciplina e uma certa rigidez”, concede. “Mas mais do que os 20 anos, esta peça tem que ver com a vida no seu todo, tem que ver com ciclos. E tenho um pouco a sensação de que estou a sair de um ciclo e a entrar noutro. Às vezes isso surge-nos de uma forma mais disfarçada, outras vezes são mesmo mundos novos que temos pela frente.”

Essa possibilidade de mundo novo reflecte um “momento de grande paz”, um apaziguamento que Paulo Ribeiro encontrou no solo ao tratar os seus movimentos habituais de uma forma mais extrema. Agora, com A Festa, é chegado a um novo patamar – que o devolve a um estado de libertação e de descoberta.