Acordos à esquerda: Três “posições conjuntas” de convergência e desacordo
O objectivo é o mesmo mas os detalhes dos acordos assinados são diferentes. Orçamentos e moções de censura vão obrigar a "reuniões bilaterais". Mas Costa avisa: uma moção de censura é como pedir o divórcio.
Por alguma razão os partidos da esquerda optaram por apelidar de “posição conjunta” os três documentos ontem assinados no Parlamento.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Por alguma razão os partidos da esquerda optaram por apelidar de “posição conjunta” os três documentos ontem assinados no Parlamento.
Além das matérias em que o PS, BE, PCP e Verdes conseguiram chegar a um entendimento, os textos que suportam a pretensão governamental de António Costa revelam igualmente os pontos onde houve desacordo e levantam dúvidas para o normal decorrer da legislatura que agora arranca. Quatro anos de possível entendimento à esquerda que começou com assinaturas em separado, à porta fechada, e com seguranças a impedir a circulação de jornalistas até ao local – edifício novo – onde os líderes partidários assinaram os acordos.
A dúvida sobre a legislatura reflecte-se logo na forma como são referidas eventuais moções de censura. Não fica estipulado que os partidos mais à esquerda prescindam desse instrumento parlamentar durante os quatro anos. Costa apenas conseguiu que se examinasse “em reuniões bilaterais” essa possibilidade.
Sobre esse assunto, à saída do debate que fez cair Passos Coelho, António Costa lembrou que o BE, PCP e BE assumiam as “condições de governação na perspectiva da legislatura”, pressupondo por isso que haveria “condições de eles próprios não apresentarem moções de censura”. Mas admitiu a possibilidade. “No dia em que qualquer deles sentir a necessidade de apresentar uma moção de censura é como o dia em que qualquer um de nós mete os papéis para divórcio. Nesse dia, o casamento acabou, nesse dia o Governo acabou.”
Da mesma forma, as posições conjuntas assinadas com o PCP e os Verdes incluem um excerto onde se referem os assuntos onde não foi possível um acordo. É aí que fica explicitada a visão dos comunistas e Verdes sobre a forma como os cortes salariais dos funcionários públicos serão eliminados no próximo ano.
Os acordos com o PCP e Os Verdes frisam, no entanto, que a inexistência de acordo não implica um desentendimento insanável. Estes dois partidos reconhecem nessas matérias uma “convergência” em relação aos “objectivos a alcançar”. O que, traduzido, quer dizer que existe a predisposição para votar favoravelmente os assuntos em que não se verificou “acordo quanto às condições para a sua concretização”.
Salários da Função Pública: o primeiro engulho?
É o que deverá vir a acontecer com a reposição dos salários da função pública que virá a ser proposta pelo PS. Os socialistas defendem a sua eliminação a um ritmo trimestral ao longo de 2016: 25% no primeiro trimestre, 50% no segundo, 75% no terceiro, para que no último trimestre os salários acima de 1500 euros brutos fiquem livres de quaisquer cortes. O PCP sempre defendeu que a 1 de Janeiro de 2016 os cortes deviam cair.
Em situação semelhante estão o regresso às 35 horas semanais no Estado, o fim da sobretaxa do IRS, o aumentar da progressividade deste imposto, o alargamento dos apoios sociais e a diversificação das fontes de financiamento da Segurança Social.
A eliminação da sobretaxa do IRS devia ocorrer, segundo o PCP, logo no início do próximo ano, enquanto o PS propõe que ela baixe para metade em 2016 e seja eliminada na totalidade em 2017.
No caso da diversificação das fontes de financiamento, outro dos pontos em relação ao qual não houve acordo quanto aos detalhes, o BE e o PS comprometem-se “a trabalhar em conjunto numa proposta a apresentar pelo Governo ao Conselho Económico e Social”. Já o acordo do PEV diz que a diversificação do financiamento será feita através “da contribuição de novas bases fiscais, da penalização da rotação excessiva de trabalhadores (...) e da consignação de parte da tributação sobre lucros ou sobre o valor acrescentado bruto”.
O mesmo se deverá verificar em relação ao Salário Mínimo Nacional. O tema não consta nem no acordo assinado com Jerónimo de Sousa, nem no acordo assinado com Heloísa Apolónia, dirigente do PEV, que defendem que o salário mínimo deve subir dos actuais 505 para os 600 euros logo no início do próximo ano.
Só o documento que teve o aval da coordenadora do BE, Catarina Martins, prevê uma subida gradual do SMN "com aumentos de 5% nos dois primeiros anos". Ou seja, passará para os 530 euros em 2016 e para os 557 euros em 2017. Em contrapartida, o Bloco conseguiu concertar com o PS a criação de um “grupo de trabalho para a avaliação da sustentabilidade da dívida externa”.
É comum aos três acordos o descongelamento das pensões; a reposição dos quatro feriados retirados em 2012; o combate à precariedade; o fim do regime de “requalificação” dos trabalhadores da função pública; a redução para 13% do IVA da restauração; a revogação das recentes alterações à Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez; a não admissão de qualquer novo processo de privatização, entre outras medidas.
Moções de rejeição consagraram diferenças
A diferença entre os partidos também se tornou visível na forma como estes justificaram as suas moções de rejeição. O PS, por exemplo, justificou o chumbo com a apresentação de um Governo alternativo, elencando as prioridades desse Executivo “gizadas em torno de quatro ideias fundamentais”. De entre estas surgia o compromisso de “conduzir uma estratégia de consolidação das contas públicas”, embora “assente no crescimento e no emprego e aumento do rendimento das famílias”.
A moção comunista não referia o acordo, embora definisse, de forma indirecta, o caderno de encargos para uma “alternativa”. E aí, os comunistas não faziam qualquer referência à necessidade de contenção orçamental. Em vez disso, o PCP defendia que a “solução para os problemas do país” implica, não só a “recuperação para o país dos seus recursos e sectores estratégicos”, mas também a “afirmação do direito de Portugal a um desenvolvimento soberano”. O Bloco de Esquerda nem isso escreveu, centrando-se nas razões para o chumbo do Programa de Governo de Passos Coelho.
Apenas a moção d'Os Verdes faz referência ao acordo e à constituição “de um Governo de iniciativa do PS”, acrescentando que o “viabilizarão”. Ainda assim, sem qualquer referência a uma estratégia de consolidação financeira, frisando aquele partido que a “convergência” atingida é sobre “questões urgentes e imediatas que dessem resposta aos problemas mais emergentes do país”.