Carta a um filho que nunca nascerá
A possibilidade de um futuro deixou-se ir ralo abaixo, e agora estou desencantado com a hipótese de sequer voltar a pensar em ti mais uma vez, uma outra vez
Querido filho,
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Querido filho,
Lamento, desde já, o facto de não teres nascido. Ou talvez não lamente: as convenções sociais andam a comer-nos as papas na cabeça e acabamos por nos deixar levar nos empurrões da carneirada. Andamos a tentar fugir das obrigatoriedades que os mais velhos nos assentam sobre os ombros - sai da faculdade, arranja emprego, casa, larga descendência sobre o planeta e esquece a perspectiva de um futuro diferente, que isso não alimenta bocas. Felizmente, sempre aprendi a estar do lado da contra-corrente.
Antes que te deixes absorver por um mal entendido, querido filho, permite-me que te assegure que não pedi a ninguém que te abortasse. Na verdade, nem sequer chegaste a ser concebido – pesem embora as (tantas e tão boas) tentativas. É que, sabes, o amor morreu, e com ele morreste tu também. A possibilidade de um futuro deixou-se ir ralo abaixo, e agora estou desencantado com a hipótese de sequer voltar a pensar em ti mais uma vez, uma outra vez. Não terás oportunidade de me chamar pai, não terás a mínima chance de ser alvo do arrebatamento quase tolo que os pais sentem quando lhes sai do organismo um bicho estranho mas aprazível, tentador e enternecedor.
Não nego que a simples ideia de não te ter provocado o nascimento - esse evento quase tão perverso quanto a própria morte - me causa alívio. Um certo gozo, até. Há mais tempo para mim, mais dinheiro para estafar em cigarros e numa ou outra viagem com que sempre sonhei. Ficou também o vazio de não ter podido estar muito mais tempo com aquela que haveria de ter sido a tua mãe, mas verteram-se já demasiadas lágrimas sobre esse assunto. Depois de ter gorada a hipótese do teu nascimento, não mais te achei uma progenitora. Sabes, filho, é que hoje, ao contrário dos dias de antigamente, as pessoas já não procuram todas as mesmas coisas. Além do mais, a imaturidade é vírus que nasce debaixo das pedras e é um vê-se-te-avias quando procuramos eliminá-la da paisagem. A paciência não é uma bênção com que este teu ex-futuro-pai tenha sido agraciado.
Desculpa, filho. Não vais poder nascer - ou, pelo menos, a tua vinda a esta Terra não está programada, nem sequer é desejada. Talvez os anos (ou uma fêmea enxuta) me façam mudar de ideias; talvez possa até arrepender-me, quando estiver velho e só. Ou, por outro lado, é possível que não me arrependa de te ter poupado às dores da existência, de te ter permitido uma escapatória e de não te ter tornado numa cópia deste meu eu: um eu desajeitado, trôpego, desorientado, escuro, melancólico, perdido.
Tu, por ora, podes dar-te por contente.
[Esta crónica inspira-se num caso real. Os nomes dos intervenientes foram ocultados para privacidade dos mesmos.]