Não há espaço na Europa da solidariedade para os refugiados afegãos

São quase um quinto dos que chegam por barco à Europa, mas mesmo a Alemanha não os aceita. Fogem de um país que não está oficialmente em guerra, mas que vive sob a ameaça de grupos extremistas.

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Os afegãos "devem ficar e ajudar a reconstruir o seu país”, disse o ministro do Interior alemão Aris Messinis/AFP

Viviam-se os últimos meses de calor nos Balcãs quando um homem afegão, que se dizia oficial do Exército em fuga, ameaçado de morte pelos taliban, se queixou a um director de uma agência humanitária do tratamento discriminatório de que ele e os seus compatriotas estavam a ser alvo. Não protestava por ataques racistas ou xenófobos, mas pela distinção que as autoridades europeias faziam entre quem viajava para o Norte da Europa. “Porque é que andamos a ouvir ‘apenas sírios, apenas sírios’ no momento de embarcarmos nos autocarros na fronteira e nos deixam à espera ao sol?”

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Viviam-se os últimos meses de calor nos Balcãs quando um homem afegão, que se dizia oficial do Exército em fuga, ameaçado de morte pelos taliban, se queixou a um director de uma agência humanitária do tratamento discriminatório de que ele e os seus compatriotas estavam a ser alvo. Não protestava por ataques racistas ou xenófobos, mas pela distinção que as autoridades europeias faziam entre quem viajava para o Norte da Europa. “Porque é que andamos a ouvir ‘apenas sírios, apenas sírios’ no momento de embarcarmos nos autocarros na fronteira e nos deixam à espera ao sol?”

É uma história comum no trilho dos Balcãs. Quando Peter Bouckaert, da Human Rights Watch, foi à Hungria à procura de histórias de afegãos, Budapeste não terminara ainda o muro que a haveria de isolar da maior vaga de refugiados e migrantes em circulação pela Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial e o trânsito era menos difícil do que é hoje. Encontrou Amir Faim, agricultor afegão de 23 anos que viajava com a mulher, o pai e o filho recém-nascido.

Faim e a família tinham esperado uma manhã inteira por um autocarro que os transportasse para a capital húngara, mas, sucessivamente ultrapassados por sírios, não conseguiram arranjar lugar. Decidiram fazer a pé os mais de 177 quilómetros que os separavam de Budapeste. Ao fim de dez quilómetros, foram mandados para trás pela polícia. Esperavam ao sol, como muitas vezes caminharam durante o mês que demorou a viagem do Afeganistão à Hungria, fugidos, segundo Faim, de um grupo aliado ao autoproclamado Estado Islâmico que ganhava terreno junto à sua casa.

Antes de atravessarem de barco o Mediterrâneo, já tinham atravessado a pé o Irão e a Turquia. Queriam ir para a Áustria ou Alemanha e, como sírios, iraquianos e eritreus, fugir à guerra e à perseguição. Mas o mais provável é agora que Faim e a sua família sejam repatriados, tal como muitos dos 120 mil afegãos que chegaram à Europa nos últimos meses. Se isso acontecer, não terão lá nada à sua espera. Para pagarem aos traficantes, venderam as suas terras, casa, carro e jóias. Era a única maneira de conseguirem os 16 mil euros que lhes exigiam pela viagem.

Cerco aos afegãos
Só os sírios chegam em maior número à Europa. São 52% de todos os que atravessam o Mediterrâneo, mais do que o dobro dos afegãos (19%). Muitos mais do que os iraquianos (6%) ou eritreus (5%). Este número está a aumentar. Em Setembro, as Nações Unidas diziam que apenas 13% dos que chegavam eram cidadãos do Afeganistão. No entanto, os afegãos são os únicos destas quatro nacionalidades que não serão acolhidos pela União Europeia no seu programa de distribuição de 160 mil refugiados. A razão? O país não está oficialmente em guerra e, aos olhos europeus, a maior parte das pessoas não tem razões para fugir.

Muito mudou para os afegãos na Europa nas últimas semanas e tudo começou na Alemanha, a líder da Europa da solidariedade. Ao longo de vários anos, Berlim recebeu milhares de refugiados do Afeganistão – até 2014, a nacionalidade que mais refugiados tinha no mundo. Menos de 50% das pessoas conseguia autorização de residência, o que só acontecia nos casos em que fosse possível provar uma “ameaça directa e individualizada”, segundo escreve o Die Welt. Mas aqueles a quem o pedido era negado não eram repatriados. Era-lhes dada uma autorização temporária de residência, mesmo que isso significasse que a lei não lhes permitia ter um emprego.

Tudo isto mudou com a crise dos refugiados deste ano. A política de portas abertas da chanceler alemã prepara-se para aprovar até um milhão de pedidos de asilo. Muitos alemães acreditam que o país não aguentará a pressão: a popularidade do Governo de Merkel está a cair, a coligação está fracturada e multiplicam-se ataques de movimentos de extrema-direita a centros de acolhimento de refugiados. A chanceler aguenta parte da pressão e, por enquanto, mantém as portas abertas a sírios, eritreus e iraquianos. Mas, em Outubro, quando chegou a altura de o seu Governo se mostrar mais duro, os atingidos foram os afegãos.

É “inaceitável” que tantos afegãos estejam a entrar na Alemanha, disse o ministro do Interior, Thomas de Maiziere. Aos olhos de Berlim, não só o Afeganistão não estava oficialmente em guerra como acabara de ser aprovada a continuidade de mais de 800 militares seus no país até pelo menos 2017, para assistir os norte-americanos no treino e apoio aos soldados de Cabul.

“Devem ficar e ajudar a reconstruir o seu país”, disse o ministro alemão, no final do mês. Como resultado, as deportações e repatriamentos de afegãos vão aumentar “significativamente” nas próximas semanas. Na sexta-feira, Berlim anunciou a criação de centros destinados especificamente a acelerar estes processos. Já em Novembro, a Noruega prometeu deportar todos os afegãos a quem não fosse concedido asilo no país. A Áustria, por sua vez, alterou as regras de concessão de asilo para dificultar a reunificação familiar dos afegãos que já estão no país.

Ressurgimento da guerra
É difícil dizer que o Afeganistão não está em guerra. Há mais violência no país em 2015 do que em qualquer outra altura desde 2009, ano em que as Nações Unidas começaram a monitorizar os atentados extremistas. Mais de mil civis morreram ou ficaram feridos na primeira metade do ano só em ataques suicidas dos taliban e, em menor escala, de pequenos grupos associados ao Estado Islâmico que começam a surgir nalgumas partes do país.

O próprio Governo admite que 80% do país não é seguro – os mesmos taliban que os EUA e os aliados tiraram do poder em 2001 estão a ganhar força e a expandir-se. Isto tornou-se evidente em Setembro, quando o grupo fundamentalista conquistou por alguns dias a cidade de Kunduz, ante a impotência do Exército e da polícia afegãos. Mais de 100 mil pessoas fugiram então da cidade.

Há hoje 2,6 milhões de refugiados afegãos em todo o mundo. A esmagadora maioria vive no Paquistão e Irão que, entre os dois, têm 95% da população de refugiados do país. Muitos são refugiados de segunda ou terceira geração, que nunca visitaram o país de origem dos pais e avós.

Em nenhum dos países a vida é fácil ou promissora. Há vários relatos de perseguições a afegãos no Paquistão, que está a preparar um plano para repatriar um milhão de refugiados ao longo dos próximos dois anos. No Irão, o diário britânico Guardian noticiava esta semana que centenas de afegãos estão a ser recrutados pelo Governo para combaterem ao lado das tropas do Presidente Bashar al-Assad na Síria, sob a promessa de cidadania e bons salários. O grupo em que viajavam Faim e a sua família foi alvejado por soldados iranianos quando atravessava o país. Duas pessoas morreram.