Porta sim, porta não, a Baixa está entregue aos turistas
A Câmara de Lisboa não disponibiliza dados sobre a dimensão da oferta hoteleira na Baixa mas basta um passeio pelo local e uma pesquisa online para encontrar mais de 60 hotéis e alojamentos locais. É preciso repensar esta “Disneylândia de hotéis”, diz uma deputada municipal do PSD
As placas multiplicam-se nas portas dos prédios. Anunciam hotéis, hostels e pensões em edifícios reabilitados, que se destacam no meio de outros devolutos e em mau estado. Mesmo onde não há placas, não faltam apartamentos para os turistas arrendarem online por curtos períodos. A Baixa Pombalina é uma das zonas de Lisboa onde a oferta hoteleira disparou nos últimos anos, alavancada pela procura que não pára de aumentar e de gerar receitas. Será esta “febre hoteleira”, como lhe chamou o ex-presidente da junta daquela zona já em 2013, o sintoma de uma doença incurável?
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As placas multiplicam-se nas portas dos prédios. Anunciam hotéis, hostels e pensões em edifícios reabilitados, que se destacam no meio de outros devolutos e em mau estado. Mesmo onde não há placas, não faltam apartamentos para os turistas arrendarem online por curtos períodos. A Baixa Pombalina é uma das zonas de Lisboa onde a oferta hoteleira disparou nos últimos anos, alavancada pela procura que não pára de aumentar e de gerar receitas. Será esta “febre hoteleira”, como lhe chamou o ex-presidente da junta daquela zona já em 2013, o sintoma de uma doença incurável?
A avaliar pelas palavras do presidente da Câmara, Fernando Medina, a “febre” não pára de subir. Segundo revelou há dias numa reunião da Assembleia Municipal, desde o início do ano deram entrada 113 processos de licenciamento para reabilitação de edificado na Baixa, “o registo mais alto dos últimos anos”. “Teremos certamente em 2015 o melhor ano de sempre do ponto de vista do turismo na cidade, no que será o 5.º ano consecutivo. Isto faz de Lisboa uma cidade ímpar à escala internacional”, sublinhou, lembrando que já em 2014 a capital atingiu valores recorde em termos de dormidas.
Medina não explicou a que uso se destinam aqueles 113 processos mas muitos dirão respeito a novas unidades de alojamento. Vão juntar-se às mais de 60 existentes ou em construção só na zona delimitada pelo Terreiro do Paço, a Rua do Ouro, as praças do Rossio e da Figueira, e a Rua da Madalena, uma área de cerca de 16 hectares. O número, que resulta de uma contagem do PÚBLICO feita no local e numa pesquisa online, peca por defeito no que toca aos alojamentos locais (AL), uma vez que a nova lei que regula estas unidades (em vigor desde 27 de Novembro de 2014) apenas exige a afixação, à entrada dos prédios, de uma placa identificativa no caso de estabelecimentos de hospedagem, ou seja, constituídos por quartos (como os hostels e as pensões). Os apartamentos, por exemplo, não têm de estar identificados no exterior. Mas basta uma pesquisa em sites como o AirBnb ou o Homeway para perceber que não falta oferta naquela zona histórica.
O PÚBLICO quis saber exactamente quantos hotéis e AL existem na Baixa Pombalina e a quantas camas correspondem, quantos projectos turísticos e destinados a habitação foram aprovados nos últimos tempos. Mas nem a Câmara de Lisboa nem a Associação de Turismo de Lisboa revelam dados. Um mês depois de receber as perguntas, a autarquia respondeu apenas que “está em elaboração um levantamento exaustivo no âmbito do estudo sobre o impacte do turismo na cidade, cujas conclusões serão divulgadas oportunamente”.
Margarida Saavedra, deputada do PSD na Assembleia Municipal de Lisboa (AML), tentou saber o mesmo. Nesta terça-feira vai repetir as perguntas pela terceira vez, na reunião deste organismo. "Estou muito preocupada. Demorámos muitos anos a repovoar a Baixa. O turismo é óptimo para a cidade mas não pode alterar as condições das pessoas que vivem lá." A deputada considera que o "licenciamento selvático" de unidades hoteleiras está a transformar a Baixa Pombalina numa "Disneylândia de hotéis", onde os poucos moradores - idosos que sempre viveram ali e casais jovens com filhos que estão a apostar no centro da cidade - estão a ser "escorraçados".
Lisboa é outra Barcelona?
Em Julho, o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, afirmou que o tal estudo estaria pronto até ao final do ano. Embora tenha reconhecido que existe “um problema por concentração excessiva” de alojamentos turísticos em áreas da cidade como a Baixa-Chiado e os bairros históricos, Salgado ressalvou que a capital, com cerca de 9 milhões de dormidas por ano, ainda não está ao nível da espanhola Barcelona, onde a pressão turística levou a presidente da câmara a suspender durante um ano a concessão de licenças para a construção de hotéis.
João Seixas, professor de geografia na Universidade Nova de Lisboa, não concorda: “Os números não podem ser vistos apenas em termos de volume.” O investigador, doutorado em Geografia Urbana pela Universidade Autónoma de Barcelona, lembra que os 18 milhões de dormidas registados na capital da Catalunha têm impacto num município com 1,5 milhões de pessoas, enquanto que os 9 milhões de Lisboa vão quase todos para a Baixa, Belém, Alfama, Castelo, além de Cascais e Sintra, onde no total vivem cerca de 500 mil pessoas. “Conclusão: a pressão em Lisboa é maior do que em Barcelona, sobretudo em determinadas zonas”, afirma, sublinhando que “é preciso dizer isto mas sem alarmismos”. Até porque esta a “pressão profunda” corresponde um “impacto económico profundo”.
Para Seixas, que é também consultor da autarquia, seria “completamente ingénuo” imaginar Lisboa sem turistas mas também não se pode deixar morrer as “características únicas” da cidade, que compara a um terreno onde se produzem vinhos singulares. “Não podemos deixar que o terroir morra por excesso de investimento”. É preciso pôr todas as questões em cima da mesa. “A quem chegam os benefícios do turismo, e quais são? Até que ponto a actividade turística altera a vida urbana na Baixa?”
Por um lado, é incontornável o papel do turismo na reabilitação do edificado. Basta caminhar por entre as ruas em quadrícula da Baixa para ver que os únicos prédios recuperados são onde funcionam hotéis e outros alojamentos turísticos. Muitos têm mesmo a fachada pintada de cores distintas, como vermelho ou azul, que sobressaem entre prédios com tinta descascada e janelas partidas.
Por outro lado, de cada vez que nasce um hotel, é quase certo que morre (pelo menos) uma loja antiga, das que foram sobrevivendo ao tempo, à crise e à nova lei das rendas. E assim o comércio tradicional vai sendo substituído por cadeias internacionais de restauração ou por lojas com produtos que interessam aos turistas, mas não a quem habita na zona. Seixas atribui um nome ao fenómeno: “gentrificação comercial”.
A autarquia aprovou em Fevereiro o programa “Lojas com História” para proteger e promover os estabelecimentos mais antigos. “É um programa positivo, mas de contenção”, lamenta Seixas, defendendo a aposta em “políticas de antecipação”, que podem ser financiadas pelo turismo, para melhorar a vida quotidiana dos moradores: criação de jardins-de-infância, de locais de apoio para idosos, melhor iluminação, estacionamento, mais segurança, políticas de apoio à habitação. “É preciso que a reabilitação urbana seja feita também para a habitação permanente.”
Alojamentos sem controlo
Mais difícil do que impor limites à oferta hoteleira é controlar o surgimento de AL, dependente apenas de um registo online e de uma mera comunicação prévia às câmaras municipais. Em Lisboa os números impressionam: de 1 de Janeiro de 2010 até 26 de Novembro de 2014, estavam registados 741 AL; desde 27 de Novembro de 2014 até à passada quinta-feira foram registados 2380. A Associação do Alojamento Local em Portugal, recém-criada, acredita que muitos dos AL registados neste último ano já deveriam existir mas operavam sem estar registados. E que alguns permanecem na ilegalidade “por desconhecimento” ou para evitar burocracias.
Neste capítulo, João Seixas é peremptório. “Falta fiscalização.” Os números falam por si: desde que a nova lei entrou em vigor, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), responsável por verificar se a exploração dos AL cumpre as regras, fiscalizou 221 operadores em todo o país, dos quais 27 no concelho de Lisboa - números fornecidos ao PÚBLICO no final de Outubro, iguais aos que aquela entidade forneceu ao Observador em Agosto. Foram instaurados 48 processos de contraordenação no país inteiro, sendo as principais infracções a falta de afixação da placa no exterior dos edifícios, a não realização da comunicação prévia, e a falta de registo.
A lei determina que as câmaras municipais façam uma vistoria ao AL 30 dias após a apresentação da comunicação prévia, para verificar se os dados fornecidos pelo proprietário correspondem à realidade, e cancelar o registo caso encontre desconformidades. Porém, até hoje, a Câmara de Lisboa não fez qualquer vistoria e os processos têm estado a ser arquivados.
Para o presidente da Associação de Moradores da Baixa Pombalina, António Rosado, o problema deste boom de quartos, moradias e apartamentos para turistas é a mistura de usos no mesmo prédio. Existe “um grande potencial de conflitos” entre os residentes permanentes e os turistas que estão só de passagem, sobretudo quando os proprietários dos AL não vivem no edifício (muitas vezes nem no país), alerta o representante, citando casos de pessoas que abandonaram a zona para fugir do ruído e de outros abusos.
O presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, que abrange a Baixa Pombalina, considera que a via-verde do licenciamento de AL está a criar uma “situação insuportável”. “Fico preocupado porque a certa altura não temos capacidade de resposta para tantos estabelecimentos deste género”, diz Miguel Coelho, alertando para uma “pressão muito grande sobre os serviços de higiene urbana”.
Embora reconheça que o turismo foi “a mola dinamizadora da recuperação da Baixa”, o autarca socialista pede mais regras e defende a obrigatoriedade de fazer uma consulta prévia às autarquias. Ou então a exigência de uma autorização do condomínio — uma medida proposta pela Associação da Hotelaria de Portugal ao Governo antes da finalização da nova lei, mas que não avançou.
Margarida Saavedra teme o pior: "Se este descontrolo continuar, quando as pessoas começarem a sair vão passar muitos anos até que regressem."