“Quem viveu a Legionella não respira da mesma forma”

Um ano depois do surto, em Vila Franca de Xira a Legionella já não está na ordem do dia. Os doentes e familiares das vítimas mortais sentem-se esquecidos e esperam pela decisão da justiça, que dizem tardar. A Procuradoria-Geral da República garante que o inquérito está avançado.

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Maria Rosa Barbosa Enric Vives Rubio

Na Rua da Liberdade, no Forte da Casa, o dia está cinzento e chove. Melhor, chuvisca. As gotículas de água deixam os cabelos desgrenhados, tal como há um ano. Os espaços comerciais são os mesmos, as pessoas que os preenchem pouco mudaram. Mas as semelhanças ficam-se por aqui. Em Novembro de 2014, a rua foi temporariamente rebaptizada: Rua da Legionella. O surto de doença do Legionário, que assolou o concelho de Vila Franca de Xira, parecia ter uma relação com esta artéria, que somou vários doentes. Quase ninguém arriscava respirar fundo. Ainda menos beber água das torneiras. Com o aparecimento de explicações – que associaram a possível fonte de contágio às torres de refrigeração de uma fábrica – e com o passar do tempo o tema caiu em esquecimento. Mas Maria Rosa Barbosa, uma das infectadas, garante que quem ficou doente “não respira da mesma forma, não esquece”.

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Na Rua da Liberdade, no Forte da Casa, o dia está cinzento e chove. Melhor, chuvisca. As gotículas de água deixam os cabelos desgrenhados, tal como há um ano. Os espaços comerciais são os mesmos, as pessoas que os preenchem pouco mudaram. Mas as semelhanças ficam-se por aqui. Em Novembro de 2014, a rua foi temporariamente rebaptizada: Rua da Legionella. O surto de doença do Legionário, que assolou o concelho de Vila Franca de Xira, parecia ter uma relação com esta artéria, que somou vários doentes. Quase ninguém arriscava respirar fundo. Ainda menos beber água das torneiras. Com o aparecimento de explicações – que associaram a possível fonte de contágio às torres de refrigeração de uma fábrica – e com o passar do tempo o tema caiu em esquecimento. Mas Maria Rosa Barbosa, uma das infectadas, garante que quem ficou doente “não respira da mesma forma, não esquece”.

Aos 57 anos, Maria Rosa vai relatando o seu caso enquanto serve os clientes no café onde trabalha, na freguesia de Póvoa de Santa Iria, outra das zonas afectadas. “Há quem pense que damos entrevistas e que falamos nisto da Legionella para ganhar dinheiro, acredita? Mas quem esteve doente e anda sempre com aquele cansaço é que sabe. Eu nem meti processo nenhum em tribunal. Queria era a minha saúde. As pessoas esqueceram a Legionella mas quem viveu a doença não respira da mesma forma, não esquece. Da janela da minha casa olho para as fábricas e parece que me ardem os olhos. Até tapo a boca.” Depois de um primeiro internamento de dez dias em 2014, alguns dos quais a tratar uma pneumonia que ainda não tinha o nome do surto, Rosa passou o ano com recaídas. Esteve internada de novo em Dezembro e em Maio. Sempre no Hospital de Vila Franca de Xira.

“Os sintomas voltam. A febre vem e não passa com nada. Só vai lá de antibiótico. Em Dezembro estive mesmo intubada e passei lá o fim-de-ano. Estive a ir-me para o lado de lá”, recorda, emocionada. Fumadora e com asma, sabe que tem factores de risco. Mas garante que foi a pneumonia por Legionella que a sua vida mudou. “Basta uma corrente de ar e fico doente.” Por isso, lamenta que “nunca mais ninguém se tenha lembrado das vítimas”. Diz que lhe tem valido a nora, que trabalha num outro hospital de Lisboa e que a tem conseguido encaminhar. “Nunca ninguém me ligou a saber como estou. Devia ter havido um seguimento dos doentes”, alerta, mas garante que “não tem energias” para gastar “a meter isto em tribunal”.

O sentimento de “abandono” é partilhado por Valdemar Matos – com a diferença que apresentou queixa juntamente com um grupo de doentes e familiares e pediu à Segurança Social que lhe nomeasse uma advogada oficiosa. Neste sábado, 7 de Novembro, assinala-se um ano desde que foi declarado o surto que infectou 403 pessoas e fez 14 óbitos. Valdemar foi uma delas. Tem 58 anos e na altura foi tratado no Hospital do Barreiro, sendo a sua ligação ao surto o local de trabalho. Até há um mês continuou a trabalhar como montador de andaimes numa empresa que presta serviços para a ADP – Fertilizantes, fábrica onde as autoridades de saúde e de ambiente detectaram nas torres de arrefecimento uma bactéria com a estirpe semelhante à identificada nos doentes.

“O meu contrato acabou e não renovaram. As pessoas sabem do processo e lógico que isso não cai bem. Mas eu quero justiça. Ainda estou doente. Fico muitas vezes doente. Canso-me muito”, diz. Valdemar admite ter “uma grande revolta por dentro”. Não compreende como é que “com os dados que encontraram a culpa ainda está solteira”. Depois, também não compreende a normalidade com que tudo continuou. “Na ADP já quase não se falava no assunto. Estão a trabalhar normalmente enquanto eu fiquei assim. Fomos carne para canhão, foi preciso acontecer isto para fazerem obras e taparem as zonas com água a descoberto. E eu, um pai de família, que sempre trabalhou, nunca passei tão mal como quando estive de baixa. O que custa é que só para o Zé Povinho é que a justiça é lenta”.

“Revolta” é também uma das palavras mais repetidas por Ana Rita Neves. Desde 7 de Novembro que todos os dias custam. Mas esta data exacta ficará para sempre na memória. Tem 32 anos e é filha de Fernando Azeitona, a primeira vítima mortal do surto. “O meu pai foi internado a 5 de Novembro e morreu a 7 de Novembro. Nem tive tempo de o chegar a visitar”, lamenta Rita, que lembra que apesar dos graves danos pulmonares pré-existentes, o pai tinha apenas 59 anos. Para esta familiar, os problemas começaram na “má assistência” no Hospital de Vila Franca de Xira – “que estava caótico” – e prolongaram-se num ano em que nunca foram contactados e em que a justiça ainda não deu respostas.

A família de Ana Rita Naves associou-se à queixa conjunta das vítimas, mas também pôs uma por conta própria – suportando os custos inerentes. “É vergonhoso tudo o que aconteceu e o que está a acontecer, mas se não confiar um pouco na justiça então não sei em que país é que vivemos. A revolta ninguém faz passar e por isso é que acho que devemos falar do tema, não deixar esquecer. Fiquei sem pai, mas não quero ficar sem uma resposta”, diz.

Movimento de moradores

Apesar do esquecimento relatado, ainda resistem algumas iniciativas. Por exemplo, na freguesia do Forte da Casa nasceu um movimento de moradores (infectados e outros cidadãos preocupados com a situação) que tem desenvolvido contactos com várias entidades públicas e projecta vir a evoluir para associação. O designado “Movimento Forte da Casa Saudável” angariou já perto de 200 assinaturas de cidadãos que comungam destas preocupações, que gostariam de ver os processos judiciais concluídos e que, em paralelo, reclamam medidas de reforço da monitorização das indústrias mais próximas.

“A lentidão da justiça invalida que qualquer sociedade evolua. Se não há responsabilidades apuradas, umas pessoas descrêem na justiça e outras pessoas sentem-se imunes”, lamenta Pedro Fonseca, um dos dinamizadores do Movimento Forte da Casa Saudável. “O Ministério Público (MP) tem sido o grande bloqueador, deixando centenas, se não milhares de pessoas à espera, porque a Direcção-Geral da Saúde remete para o MP, o hospital remete para o MP, as autarquias locais remetem para o MP e não se resolve nada”, diz, sobre a demora da investigação.

Consultor de sistemas de informação, com 38 anos, Pedro Fonseca não chegou a ser infectado mas reside a 50 metros da unidade industrial que tem sido apontada como presumível origem do sucedido. Tem dois filhos pequenos e receou – continua a recear – pela família. Na opinião de Pedro Fonseca, as autarquias locais nunca deveriam autorizar urbanizações tão próximas de unidades industriais e deverão estudar uma futura deslocalização destas fábricas. Mas, para já, reclamam o cumprimento da legislação ambiental e o acesso às inspecções efectuadas.

Inquérito está “em fase avançada”
Contactada pelo PÚBLICO, a Procuradoria-Geral da República (PGR) disse que o inquérito aberto pelo MP na sequência do surto está “numa fase avançada”. O processo começou por avaliar a eventual prática de um crime de poluição e alargou-se, depois, à possibilidade de existência de crimes de ofensas à integridade física graves por negligência. A mesma fonte adiantou ainda que “são 211 as queixas de lesados directos e de familiares juntas ao processo”. Além dos relatórios ligados às 14 vítimas mortais, há, também, que avaliar os relatórios clínicos destas 211 situações. O PÚBLICO sabe que nem todas revelam infecções com a mesma estirpe da bactéria, o que complica a tarefa de chegar a algumas conclusões e de deduzir acusação.

A Câmara de Vila Franca também deve reclamar compensações pelos prejuízos que este surto causou à imagem do concelho e pelos recursos técnicos e humanos usados em Novembro de 2014. “Estou convicto que, depois de um ano, certamente que as conclusões do inquérito devem estar a chegar e aí tiraremos as devidas ilações. A investigação é complexa, mas, tendo em conta o sofrimento de muitas famílias, talvez devesse ter sido mais célere”, sustentou o presidente da autarquia, Alberto Mesquita. Na Junta de Freguesia de Póvoa de Santa Iria e Forte da Casa, por decisão do presidente, Jorge Ribeiro, o primeiro ano do surto vai ser assinalado com as bandeiras a meia haste. com Jorge Talixa