Miguel Januário no país do ±MAIS ou MENOS±

As intervenções artísticas de Miguel Januário estimulam o pensamento crítico. Este sábado, em Lisboa, inaugura O Princípio do Fim, dele não se esperando uma exposição convencional.

Fotogaleria

Jogou golfe com pão em frente à Assembleia da República, colocou um colete de jornalista na estátua de Fernando Pessoa no Chiado em Lisboa e simulou o espetar de uma faca nas costas da estátua de D. Afonso Henriques, em Guimarães, recorrendo a uma grua. Miguel Januário, 34 anos, mais conhecido pela sigla ±MAISMENOS±, já esteve em situações tangenciais, movendo-se nos vazios entre legalidade e ilegalidade, mas nunca tinha suscitado tanta atenção das autoridades como na semana passada.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Jogou golfe com pão em frente à Assembleia da República, colocou um colete de jornalista na estátua de Fernando Pessoa no Chiado em Lisboa e simulou o espetar de uma faca nas costas da estátua de D. Afonso Henriques, em Guimarães, recorrendo a uma grua. Miguel Januário, 34 anos, mais conhecido pela sigla ±MAISMENOS±, já esteve em situações tangenciais, movendo-se nos vazios entre legalidade e ilegalidade, mas nunca tinha suscitado tanta atenção das autoridades como na semana passada.

Foi na zona das Docas, em Lisboa, junto ao projecto de arte pública Portugal a Banhos, da artista Joana Vasconcelos, que se materializa numa obra moldada em fibra de vidro, com o contorno do território português, em tudo similar às piscinas pré-fabricadas que se encontram à disposição no mercado. É no passeio das Docas que a peça se encontra, na posição vertical, suportada por uma estrutura metálica. Foi ali que combinámos encontrar-nos com Miguel Januário e um assistente, que iria documentar a colocação de um pequeno estandarte, com frases do Papa Francisco inscritas num pano, junto da peça da artista, para daí resultar uma foto.

O objectivo era tirar uma foto para integrar a exposição O Princípio do Fim, que inaugura sábado (prolongando-se até 23 de Dezembro), na galeria Underdogs (Rua Fernando Palha, 56, zona Oriental de Lisboa). Mas mal Miguel Januário pegou no estandarte, com as frases “La realidade es más importante que la ideia” e “no a la nueva idolatria del dinero”, retiradas do Evangelii Gaudium do Papa Francisco, de imediato dois indivíduos, que se identificaram como sendo seguranças do porto de Lisboa, pondo-se à frente do artista, enquanto seguravam o estandarte, impedindo-o de prosseguir.

Argumentavam que não era possível tirar fotos ali sem um pedido formal prévio junto da Administração do Porto de Lisboa. O artista respondia que apenas queria tirar uma foto, sem intuitos comerciais, para integrar uma exposição, ao mesmo tempo que apontava para os turistas circundantes que apontavam câmaras sem serem molestados. Nisto surgiram mais dois administrativos do porto de Lisboa, gerando-se uma discussão sobre espaço público e privado, com um deles a garantir que a peça de Joana Vasconcelos era propriedade da Administração do Porto de Lisboa e como tal só era possível tirar fotos à peça com uma autorização expressa.

Um pouco mais tarde chegaram quatro agentes da PSP e dois agentes da polícia marítima. Falam entre si sobre quem deverá assumir o imbróglio entre mãos. Acaba por ser a PSP a proceder à identificação dos dois artistas – e também dos dois jornalistas, que invocam estar ali apenas em reportagem – culminando com a intimação de uma contra-ordenação a todos, com o argumento que estaria a ser realizada uma sessão fotográfica na área de jurisdição do porto de Lisboa sem autorização. Nisto passaram-se duas horas.

Tensão entre o público e o privado
O que se viveu ali, e as diversas interpretações possíveis, remetem directamente para o trabalho de Miguel Januário e para tensões, vazios, situações mal resolvidas no âmbito da relação entre espaço público e privado. Muitas vezes o espaço é público, mas gerido de forma privada, não acessível a todos. Como interrogava, às tantas, Miguel Januário: se estivesse aqui a fazer isto, mediante pagamento, já o poderia fazer? Ou seja, se o único critério é o dinheiro, apenas quem o tem pode aceder ao espaço dito público.

São tudo questões pertinentes que interessa debater de forma aberta e construtiva. “As pessoas nem se apercebem como o espaço público está a deixar de o ser”, diz-nos ele às tantas. “Não tarda muito, teremos a rua Meo ou a rua Nos. O espaço é aparentemente público, mas na verdade é privado. Vivemos cada vez mais num mundo onde as identidades, o ser, se confundem com o ter.”

O território é apenas uma das questões que o interessam no contexto da sua nova exposição. E nem sequer foi isso que o levou às Docas naquele dia, embora o local não tenha sido escolhido por acaso. “Em primeiro lugar existe uma dose de autocrítica no meu gesto – a frase ‘a realidade é mais importante que a ideia’ constituiu uma crítica a qualquer artista de intervenção, porque o que interessa é a realidade e não a ideia que concebemos sobre ela. Por outro lado, a escolha daquele local, pode ter uma outra leitura, porque estou a intervir sobre uma obra daquela que é considerada a ‘artista do sistema’. E nesse sentido pode ser olhado também como uma crítica ao mundo da arte contemporânea portuguesa.”

No dia anterior havia tirado duas outras fotos, desta feita sem contratempos. Uma delas numa sucata, com uma grua a levantar um pano onde se pode ler outra frase do Papa: “o tempo é superior ao espaço”. A outra foi tirada na fachada do Museu Militar em Lisboa e nela pode ler-se: “a unidade prevalece sobre o conflito.”  

Foto
O trabalho de Miguel Januário remete para tensões, vazios, situações mal resolvidas no âmbito da relação entre espaço público e privado MIGUEL MANSO

A sua última individual na Underdogs, o espaço dirigido por Alexandre Farto (Vhils) e Pauline Foessel, foi em 2013. Nessa altura era a sociedade de consumo e essa sensação que vivemos num tempo liminar onde uma velha ordem se desagrega, sem que consigamos vislumbrar o que lhe sucederá, que estava em evidência em Sell Out. Na inauguração os presentes eram carimbados e convidados a passar por um tapete de supermercado sendo transformados em mercadoria. A ideia era confrontar os visitantes com essa facilidade com que tudo hoje é vendável.

Depois dessa mostra, em 2014, esteve em Angola, no Brasil, na Noruega ou em Barcelona. “Foi um ano engraçado, com muitas viagens”, diz-nos, “em particular a exposição colectiva no Brasil, com Banksy, Vhils ou StenLex, valeu a pena, circulando pela Caixa Cultural de Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.” Já este ano foi o responsável pela concepção e pela criação colectiva de um gigante painel de azulejos, instalados junto à Estação de São Bento no Porto. “Foi um projecto de grande envergadura que me ocupou de Fevereiro até Junho. Depois disso fiz algumas intervenções esporádicas e comecei a preparar esta exposição.”

Dir-se-ia que, na actualidade, a sua actividade se completa entre dois sentidos. Por um lado temos intervenções com um enquadramento específico no espaço público, numa tentativa de inscrição na actualidade. Foi isso que aconteceu, por exemplo, em Julho, durante o evento Jardins Efémeros, em Viseu, na noite que antecedeu o referendo na Grécia. Regressava ao hotel, quando olhou para um jardim de estátuas que parecia aludir à Grécia antiga. E resolveu improvisar uma intervenção deixando a sua assinatura no local. “Estava a sair dos claustros, às três da manhã, e fez-se ali um clique. Ali a espontaneidade é vital. O apelo do momento é criar uma intervenção num certo espaço-tempo.”

Por outro lado possui um corpo de trabalho mais intemporal. Há dois anos, aquando da sua última exposição individual, dizia que era quase um resumo do trabalho que tinha para trás. Era o seu projecto a posicionar-se em relação ao mercado e à sociedade de consumo. “Daí ter pegado em todos os registos que tinha para trás, das bandeiras às notas”, assume. “Nesta nova exposição pensei que era importante – até porque o ±MAISMENOS± é oriundo da rua, seja através das intervenções ou das performances vídeo – olhar para a galeria como espaço para intervir e não apenas para expor, no sentido clássico de chegar aqui e pôr umas coisas na parede.”

A ideia base é criar uma relação entre as peças e as pessoas. “Quero que elas façam parte da intervenção e que a sua experiência seja produto da própria exposição.” Para tal acontecer vai colocar os visitantes num cenário que procura representar aquilo que poderá ser o futuro próximo. “Um futuro distópico, onde cabem coisas que já perderam nos últimos anos – a liberdade, a igualdade, a tolerância – e outras em vias de se perderem. Pelo que a exposição também funciona como alerta, confrontando-nos com uma possível realidade, fazendo-nos pensar nela, no limite precaver-nos dela, de forma a nunca chegarmos lá.”

Foto
MIGUEL MANSO

A existir uma palavra que defina a exposição, segundo Miguel Januário, ela é “desconforto”. “Desejo que as pessoas se confrontem com o Outro e consigo próprias. Logo à entrada vai haver um grande espelho que reflectirá a imagem dos visitantes e depois lá dentro existirá esse confronto com o Outro.” Deseja que seja uma relação emocional, onde o visitante se depare com “as questões territoriais, com aquilo que a Europa se está a tornar, com as barreiras e fronteiras que estamos a criar, com os novos muros que estão a surgir como estamos a assistir com os refugiados.”  

Como já se percebeu a religião também estará presente, simbolizada por esse jogo de apostos entre mercado e igreja católica. “Há evidentemente muitas coisas com as quais discordo em relação a este novo Papa, mas é interessante o ruído que veio introduzir, com uma instituição como a Igreja a colocar questões vitais em relação à sociedade mercantil onde vivemos”, afirma.

O que lhe interessa expor é essa visão paradoxal onde de um lado temos essa “nova religião” que são os mercados – “ou não falássemos deles como se fossem deuses, na sua abstracção e invisibilidade, como se tivessem tomado o lugar da religião católica” – e do outro, uma Igreja, através deste Papa, que parece assumir um papel interventivo em relação àquilo que é hoje o mercado. “É como se uma entidade tivesse ocupado o lugar de outra, e agora essa outra viesse revindicar o seu lugar original.”

Um dos reparos mais recorrentes ao Papa Francisco é que as suas apreciações são pouco íntegras porque ele personifica o sistema que pretende criticar. De alguma forma é um comentário que o próprio Januário ouve com frequência, pelo facto de operar num mundo especulativo como o da arte contemporânea.

“Tenho total consciência desse facto e essa já é uma forma de me posicionar. Não tenho outra forma de continuar a desenvolver o meu trabalho senão pertencer a esse mercado. Quer dizer, posso pertencer a esse mercado de outra forma – seja trabalhando num supermercado ou numa agência de publicidade, como já fiz – para ter meios de criar as minhas peças e intervir. O que me parece é que, apesar de tudo, o mundo da arte contemporânea permite-me ter maior controle sobre a minha actividade. Agora que é um mundo especulativo é-o claramente, não tenho dúvidas disso.”

Um dos dispositivos que utiliza para lidar com esse facto é a ironia. Ou até a autocrítica. “A intervenção junto da peça da Joana Vasconcelos é isso, embora ao mesmo tempo acredite que aquilo que faço pode contribuir para sensibilizar outras pessoas. É como o artista chinês Ai Weiwei que tem peças que valem milhares no mercado especulativo da arte, mas não é por isso que deixa de ter problemas com as autoridades ou o sistema político chinês. Para se combater o sistema é preciso, até certo ponto, estar dentro dele.”

Na sua visão, é possível situar-se numa fronteira, actuar a partir dos interstícios do sistema, aproveitando os seus buracos negros, precisamente para o denunciar, expondo-o e, dessa forma, contribuindo para a sua transformação. “Às vezes dizem-me que não apresento soluções, mas a minha função não é essa, não tenho que ter esse papel, embora me sinta a entrar num período em que quero pensar mais nisso. Não tenho que ter a solução para nada mas posso apresentar algumas. A seguir a esta exposição vou parar também por causa disso. Às vezes é preciso parar para pensar.”