"O livro infantil não serve para nada”

Escritor e ilustrador brasileiro, “nobel” da literatura infanto-juvenil, acredita que a função do livro e da arte é "despragmatizar”. Roger Mello tem sete livros editados na China e nenhum em Portugal. “Porquê?”, pergunta.

Fotogaleria

Roger Mello venceu o Prémio Hans Christian Andersen, considerado o “nobel” da literatura infanto-juvenil, em 2014 e veio a Portugal para participar no Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos. O brasileiro nascido em 1965 em Brasília, também autor de peças de teatro, diz que “a função da literatura é difusa, é a liberdade de expressão, a formação de um leitor crítico”. Por isso gosta de dizer que “o livro infantil não serve para nada, não tem função, a função é tirar a função, é despragmatizar”.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Roger Mello venceu o Prémio Hans Christian Andersen, considerado o “nobel” da literatura infanto-juvenil, em 2014 e veio a Portugal para participar no Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos. O brasileiro nascido em 1965 em Brasília, também autor de peças de teatro, diz que “a função da literatura é difusa, é a liberdade de expressão, a formação de um leitor crítico”. Por isso gosta de dizer que “o livro infantil não serve para nada, não tem função, a função é tirar a função, é despragmatizar”.

Considera que “a literatura como arte, toda a arte, respeita no leitor a quantidade de autor que nele existe”, querendo com isso dizer que “respeita a liberdade total e irrestrita, o pensamento dele, o ponto de vista inaugural”.

Para Roger Mello, a literatura para a infância está, em geral, de boa saúde: “Tem excelentes escritores, excelentes ilustradores. Eu acho que Portugal é um expoente, tem uma produção sensacional que é modelo no mundo.” No caso particular do Brasil, refere, bem-humorado, que “há uma produção muito boa, mas também muita porcaria… muita coisa ruim, é preciso garimpar”.

Sobre a fraca edição de escritores brasileiros em Portugal neste segmento, o autor de mais de cem títulos mostra-se perplexo: “Não sei porquê, é a mesma língua. Tenho sete livros na China e não tenho nenhum em Portugal. Isso é que eu não percebo.” Menos entende ainda porque assina pelo menos dois títulos que teriam tudo “para dar certo aqui”. São eles Nau Catarineta (baseado na viagem de 1565 entre o porto de Olinda, no Brasil, e o porto de Lisboa, edição da Manati) e Inês (que explora a história de amor de D. Pedro e D. Inês de Castro, mas da perspectiva de uma criança, ilustrado por Mariana Massarani e editado pela Companhia das Letrinhas).

Rabiscar é pensar com o traço
O júri que lhe atribuiu o “nobel”, para o qual já tinha sido duas vezes nomeado, elogiou o facto de valorizar as potencialidades cognitivas e imaginativas das crianças e de nos seus livros enviar os leitores para a história e cultura do Brasil. Alguns títulos publicados e traduzidos em várias línguas: Meninos do Mangue, Todo o Cuidado É Pouco, Carvoeirinhos (da Companhia das Letrinhas) e Cavalhadas de Pirenópolis (Nova Fronteira).

Quando escreve ou ilustra, não pensa num destinatário específico: “Eu faço para mim, egoisticamente, e depois divido com a criança. Não penso em faixa etária. Quando você pensa em faixa etária, você faz para ninguém. Quando se fala em criança, fala-se de maneira genérica, mas eu penso em indivíduo, eu respeito o indivíduo. Uma criança gosta, outra não gosta. Uma está num momento, outra não está.”

Nem sempre cria segundo o mesmo método. “Às vezes, eu faço ilustração primeiro. Às vezes, eu faço o texto e faço desenhos. Eu gosto muito de rabiscar (em Portugal, existe o termo ‘rabiscar’?). O rabisco é de fundamental importância. Rabiscar é pensar com o traço.”

Roger Mello diz, convicto: “Palavras e imagens são a mesma coisa. E posso provar isso.” Nas sessões em que iria participar no Folio, queria mostrar que “o livro é um objecto lúdico e um género híbrido, como todos os géneros de arte são”, explicar que “não sabe onde começa uma coisa [texto] e onde termina outra [imagem], elas se entremeiam”, e pensar “o livro como objecto, como se constitui um livro como um todo”.

Pretendia abordar no festival literário temas que continuam a ser tabu, como a morte ou o sofrimento, e esperava que as conversas fossem participativas: “Quero falar das diferenças e das semelhanças entre o Brasil e Portugal, mais do que entre os países entre as regiões. Cada região tem um jeito muito particular. Ao sul é uma coisa, ao centro é outra. Lisboa é uma coisa, Porto é outra. Óbidos é outra ainda.”

The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/NOTICIA_IMAGEM.cshtml' was not found. The following locations were searched: ~/Views/Layouts/Amp2020/NOTICIA_IMAGEM.cshtml
NOTICIA_IMAGEM

Ouvir os portugueses
Chegou à literatura através “da paixão pelo livro”, que é “a melhor maneira de chegar ao outro através do labirinto da diferença, é um suporte desde sempre interactivo, desde sempre tecnológico e ao mesmo tempo parecido com o toque da pele humana”. E não tem dúvidas: “Um livro é a possibilidade de entender. É um espelho do humano.”

Em Óbidos, o autor esperava ouvir mais do que falar: “Eu venho ouvir os portugueses. Porque a vida inteira a língua portuguesa é o que nos alimenta. Quando colocamos os sentimentos em palavras, as palavras em que colocamos são portuguesas e poéticas. É uma língua lindíssima, é uma tradição que os brasileiros conhecem. Eu gosto muito de vir a Portugal para descobrir coisas escondidas.”

Mas também disse que vinha “trazer um pouco desse reflexo que é o português do Brasil e o calor dos trópicos”. Assume-se como um leitor obcecado pela literatura portuguesa, pela língua portuguesa e pelos ilustradores fantásticos que há em Portugal.

O leitor crítico
Na infância, “lia de tudo: muitos quadrinhos [BD], livros ilustrados, não ilustrados”. E esta recordação encaminha o diálogo com o PÚBLICO para a própria história de Brasília: “Eu nasci e cresci em Brasília, uma cidade projectada por pensadores, arquitectos, educadores, paisagistas como Niemeyer [Oscar], Lúcio Costa, humanistas, né? Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira.” Recorda que foi uma cidade pensada para ser “utópica, para todos terem acesso à arte, à cultura, ao pensamento, ao estudo da filosofia…” Mas seguiu-se “a tomada de um governo autoritário, militar, e uma supressão de todos esses valores”, descreve. “Então, a minha geração tornou-se uma geração de leitores de imagem, a gente poderia ler nas entrelinhas da cidade o pensamento desses artistas.”

The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/NOTICIA_IMAGEM.cshtml' was not found. The following locations were searched: ~/Views/Layouts/Amp2020/NOTICIA_IMAGEM.cshtml
NOTICIA_IMAGEM

Lamenta que muitos intelectuais tenham sido “exilados, muitos livros confiscados, pessoas mortas e desaparecidas por causa de livros (livros proibidos, livros vermelhos), foi nesse contexto que a gente cresceu”. Tudo isso se reflecte no seu trabalho, naquilo a chama “as mazelas do mundo”. O que tenta fazer é criar um “leitor crítico”, independentemente da idade que tiver.

Consegue? Tento. Eu tento muito [risos]. É difícil. Muitas vezes, sem querer, estamos pragmatizando… Não tenho nada contra o pragmatismo, inclusive como um pensamento filosófico, racional, mas no caso da arte o que eu tento é abrir caminhos, sugerir leituras. Esse caminho será subvertido pelo leitor. O leitor subverte o texto. É isso que eu tento fazer.”

A favor da diferença
Roger Mello escreve de acordo com o Acordo Ortográfico, mas não está muito convencido da sua necessidade. “Na verdade, o acordo existiria para que houvesse homogeneização da língua. Eu não sou a favor da igualdade. Eu acho que o mundo é diferente, é feito da diferença. Eu gosto das diferenças. Na diferença é que a gente se conhece e reconhece. A globalização é um conceito de todos fazermos um estereótipo para que todos sigam esse estereótipo. E esse estereótipo é ditado por quem tem poder.”

Compreende então que Portugal não queira entrar “nessa padronização”, mas diz, divertido, que já se habituou a escrever “voo” sem acento circunflexo. “Muitas pessoas já não sabem escrever, ainda trocam o acordo. Trocam a maneira de escrever, muitas pessoas estão confusas. Mas eu sou a favor da diferença, eu acho que quando você respeita a diferença você respeita o outro. É uma língua tão bonita, realmente não precisava.”