Elena Ferrante: íntima e política
Napolitana que insiste no anonimato, criou um culto que não se explica apenas pelo mistério à volta do nome. As suas personagens ganharam corpo, um território e uma fala. O terceiro volume da série de novelas napolitanas acaba de sair em Portugal
“A Lila é muito má”; “E a Lenú, foi embora com o Nino, como é possível? Ele tem a palavra problema escrita na testa!”; “E qual a mulher que não corre atrás de um bom problema?” É então que a moderadora acciona o spoiler alert. Todos na sala parecem saber o que se passa com Lila, Lenú, Nino, Pietro, Enzo... São personagens da série de novelas napolitanas de Elena Ferrante que em Portugal recebeu o título conjunto de A Amiga Genial — o mesmo do volume lançado na Primavera de 2014. “Não, Lenú tinha de ir”; “Por favor, uma mulher inteligente…” A conversa é entre a editora da N+1, Dayna Tortorici, a colaboradora regular da New Yorker Joan Acocella, e Ann Goldstein, a tradutora de Ferrante para inglês. Neste momento do diálogo não há ponta de avaliação literária. Estamos em avaliação de carácter, o momento em que a literatura passa a fronteira que todos os leitores gostam de ver atravessada: a da grande ilusão, a que está entre ficção e realidade. Ferrante, napolitana que insiste no anonimato, criou um culto que não se explica apenas pelo mistério à volta do nome. As suas personagens ganharam corpo, um território e uma fala.
Falava-se assim das personagens de Ferrante em Outubro numa livraria em Nova Iorque. Chamaram ao encontro uma conversa à volta da "Febre Ferrante". Como explicá-la? É como desmontar o enigma. Lendo. Em Portugal acaba de sair o terceiro volume. História de Quem vai e de Quem Fica, talvez o mais político de todos, mas que comunica um desespero muito íntimo talvez por tudo se continuar a passar num quotidiano tão banal quanto secreto.
Depois da infância, da adolescência, dos primeiros embates com a identidade do bairro onde cresceram, Elena Grecco, ou Lenú, e Raffaella Cerullo, ou Lill ou Lina, são duas mulheres adultas. Lenú vive o sucesso do primeiro romance e está em vésperas de casar com um jovem catedrático. Vai deixar o bairro de Nápoles onde quer enterrar fantasmas, o maior de todos o de poder transformar-se na sua mãe. Lila, depois de um casamento fracassado com um dos rapazes ricos do bairro, abandonada por Nino, a grande paixão de quem pensa ter um filho, o pequeno Gennaro, vive uma existência próxima da miséria, acompanhada por Enzo, o amigo de infância que tem por ela paixão silenciada. É o momento em que Itália vive os tumultos revolucionários, com as Brigadas Vermelhas, a guerra entre fascistas e comunistas e uma sociedade entre o puritanismo e uma modernidade que quer agarrar sem a entender. Neste cenário colectivo, Lenú afasta-se do bairro e Lila aproxima-se. Os que vão e os que ficam carregam a sua culpa: do abandono, caso de Lenú, ou de quem se acomoda ao destino, a palavra que Gennaro, menino brilhante, é incapaz de ler aos cinco anos.
Estamos do lado íntimo da política, narrado com uma linguagem tão clara quanto cruel. O amor ou a família não são lugares quietos. A paixão, a vingança, a mesquinhez, a traição são potenciadas por uma normalidade maligna. Por exemplo, Lila, que sobrevivia fora do seu génio fazendo para isso uso dele: “Tinha aprendido que tentar encontrar razões lhe fazia mal e esperou que a infelicidade se transformasse primeiro num mau humor indeterminado, depois em melancolia, e por fim na canseira normal de todos os dias.” E Lenú, que vive instável entre a vontade da escrita e a de ser uma mulher “normal”. As duas vivem agora numa precaridade teimosa, evitando o fim de ambas como amigas geniais.
Quem leu os anteriores A Amiga Genial e História do Nome Novo encontra neste volume qualidades repetidas. Ferrante continua a perseguir cada sentimento, cada ideia, cada fantasma até aos limites, mas nunca isso soa a estilo. Como se fosse a vida, tal qual. Quando em Nova Iorque se falava de spoiller alert havia no uso da expressão a ironia de quem sabe que não há como estragar Ferrante nestas novelas napolitanas — falta editar por cá a quarta — através do desvendar do enredo. A escrita sobrevive à trama e esse é um teste a que só os grandes livros resistem.
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“A Lila é muito má”; “E a Lenú, foi embora com o Nino, como é possível? Ele tem a palavra problema escrita na testa!”; “E qual a mulher que não corre atrás de um bom problema?” É então que a moderadora acciona o spoiler alert. Todos na sala parecem saber o que se passa com Lila, Lenú, Nino, Pietro, Enzo... São personagens da série de novelas napolitanas de Elena Ferrante que em Portugal recebeu o título conjunto de A Amiga Genial — o mesmo do volume lançado na Primavera de 2014. “Não, Lenú tinha de ir”; “Por favor, uma mulher inteligente…” A conversa é entre a editora da N+1, Dayna Tortorici, a colaboradora regular da New Yorker Joan Acocella, e Ann Goldstein, a tradutora de Ferrante para inglês. Neste momento do diálogo não há ponta de avaliação literária. Estamos em avaliação de carácter, o momento em que a literatura passa a fronteira que todos os leitores gostam de ver atravessada: a da grande ilusão, a que está entre ficção e realidade. Ferrante, napolitana que insiste no anonimato, criou um culto que não se explica apenas pelo mistério à volta do nome. As suas personagens ganharam corpo, um território e uma fala.
Falava-se assim das personagens de Ferrante em Outubro numa livraria em Nova Iorque. Chamaram ao encontro uma conversa à volta da "Febre Ferrante". Como explicá-la? É como desmontar o enigma. Lendo. Em Portugal acaba de sair o terceiro volume. História de Quem vai e de Quem Fica, talvez o mais político de todos, mas que comunica um desespero muito íntimo talvez por tudo se continuar a passar num quotidiano tão banal quanto secreto.
Depois da infância, da adolescência, dos primeiros embates com a identidade do bairro onde cresceram, Elena Grecco, ou Lenú, e Raffaella Cerullo, ou Lill ou Lina, são duas mulheres adultas. Lenú vive o sucesso do primeiro romance e está em vésperas de casar com um jovem catedrático. Vai deixar o bairro de Nápoles onde quer enterrar fantasmas, o maior de todos o de poder transformar-se na sua mãe. Lila, depois de um casamento fracassado com um dos rapazes ricos do bairro, abandonada por Nino, a grande paixão de quem pensa ter um filho, o pequeno Gennaro, vive uma existência próxima da miséria, acompanhada por Enzo, o amigo de infância que tem por ela paixão silenciada. É o momento em que Itália vive os tumultos revolucionários, com as Brigadas Vermelhas, a guerra entre fascistas e comunistas e uma sociedade entre o puritanismo e uma modernidade que quer agarrar sem a entender. Neste cenário colectivo, Lenú afasta-se do bairro e Lila aproxima-se. Os que vão e os que ficam carregam a sua culpa: do abandono, caso de Lenú, ou de quem se acomoda ao destino, a palavra que Gennaro, menino brilhante, é incapaz de ler aos cinco anos.
Estamos do lado íntimo da política, narrado com uma linguagem tão clara quanto cruel. O amor ou a família não são lugares quietos. A paixão, a vingança, a mesquinhez, a traição são potenciadas por uma normalidade maligna. Por exemplo, Lila, que sobrevivia fora do seu génio fazendo para isso uso dele: “Tinha aprendido que tentar encontrar razões lhe fazia mal e esperou que a infelicidade se transformasse primeiro num mau humor indeterminado, depois em melancolia, e por fim na canseira normal de todos os dias.” E Lenú, que vive instável entre a vontade da escrita e a de ser uma mulher “normal”. As duas vivem agora numa precaridade teimosa, evitando o fim de ambas como amigas geniais.
Quem leu os anteriores A Amiga Genial e História do Nome Novo encontra neste volume qualidades repetidas. Ferrante continua a perseguir cada sentimento, cada ideia, cada fantasma até aos limites, mas nunca isso soa a estilo. Como se fosse a vida, tal qual. Quando em Nova Iorque se falava de spoiller alert havia no uso da expressão a ironia de quem sabe que não há como estragar Ferrante nestas novelas napolitanas — falta editar por cá a quarta — através do desvendar do enredo. A escrita sobrevive à trama e esse é um teste a que só os grandes livros resistem.