Afinal, Deus joga mesmo aos dados, Sr. Einstein!

Experiência realizada por uma equipa internacional mostra que o Universo é mesmo “fantasmagórico”, ao contrário do que Albert Einstein sempre acreditou.

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Representação artística do entrelaçamento de dois electrões "presos" em cristais muito distantes um do outro ICFO

Albert Einstein, que esteve na génese da mecânica quântica – a teoria que descreve o mundo das partículas subatómicas –, foi o primeiro a duvidar das previsões da sua própria criação. Em particular, nunca acreditou na existência de um estranho efeito, previsto pela teoria quântica e a que chamou “acção fantasmagórica à distância” (spooky action at a distance). Essa sua convicção ficou, aliás, plasmada na sua célebre frase: “Deus não joga aos dados” com o Universo. 

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Albert Einstein, que esteve na génese da mecânica quântica – a teoria que descreve o mundo das partículas subatómicas –, foi o primeiro a duvidar das previsões da sua própria criação. Em particular, nunca acreditou na existência de um estranho efeito, previsto pela teoria quântica e a que chamou “acção fantasmagórica à distância” (spooky action at a distance). Essa sua convicção ficou, aliás, plasmada na sua célebre frase: “Deus não joga aos dados” com o Universo. 

Mas décadas depois de Einstein ter recusado essa previsão “fantasmagórica” – que estipula que o simples facto de observar uma partícula pode instantaneamente mudar o estado de outra partícula, mesmo que situada a grande distância da primeira –, uma equipa internacional de cientistas realizou uma experiência na Universidade Técnica de Delft, Holanda, e anunciou há dias que tinha conseguido provar, de forma decisiva, que o bizarro efeito é bem real. Os seus resultados foram publicados na revista Nature.

“Há 80 anos, Einstein e colaboradores propuseram uma experiência mental que revelava a estranheza da teoria quântica”, explicou ao PÚBLICO o físico Carlos Fiolhais, da Universidade de Coimbra. “Duas partículas que tinham estado em contacto, se colocadas a grande distância uma da outra, deveriam exercer entre si, se a teoria fosse verdadeira, uma acção à distância instantânea. Ficariam ‘entrelaçadas’, agarradas uma à outra" – e uma experiência de medida realizada sobre uma delas permitiria conhecer não só o estado dessa partícula, mas também o estado da outra, lá muito longe.

Uma coisa parece clara: a mera ideia de uma “acção fantasmagórica à distância” é completamente contra-intuitiva e vai de encontro a tudo o que sabemos do mundo macroscópico à nossa volta, onde as interacções não podem ser mais rápidas do que a luz e onde as leis físicas são deterministas.

Einstein ficou tão incomodado com esta revelação que continuaria a acreditar firmemente na existência de uma teoria alternativa do mundo das partículas que fosse ao mesmo tempo “local” e “realista”. Por “local”, entenda-se que a teoria proíbe a transmissão de informação a velocidades superiores à da luz (ao contrário do que parece acontecer com as partículas entrelaçadas); e por “realista” que, tal como o mundo macroscópico, o mundo microscópico é independente de um qualquer observador – e em particular, existe mesmo quando não está lá ninguém para o observar. "A Lua está lá, mesmo quando não olhamos para ela."

Nas últimas décadas, porém, tem-se assistido a uma acumulação de resultados científicos que indicam que as partículas podem de facto ser entrelaçadas – e que a aquela “fantasmagórica” previsão da teoria quântica é uma realidade, por estranha e arrepiante que possa parecer. Estes resultados experimentais, que não agradariam nada a Einstein, têm sido obtidos graças a uma descoberta do físico britânico John Bell, que em 1964 mostrou que as previsões da teoria quântica são incompatíveis com qualquer teoria que seja ao mesmo tempo local e realista. “John Bell escreveu uma condição [uma desigualdade] matemática que permitia distinguir a teoria quântica de teorias locais e realistas”, especifica Carlos Fiolhais.

Só que, até aqui, todas as experiências baseadas nessa “condição de Bell” apresentavam potenciais falhas e não conseguiam, portanto, excluir de vez possíveis explicações alternativas dos resultados que respeitassem os princípios de localidade e de realismo. Ainda pairavam dúvidas, portanto, sobre o facto de o mundo subatómico ser ou não “fantasmagórico”.

O que a equipa, liderada por Ronald Hanson, fez agora de diferente foi, justamente, montar uma experiência que “viola [a condição] de Bell em circunstâncias que impedem qualquer explicação alternativa dos resultados experimentais” em termos de uma teoria local e realista, escreve Harold Wiseman, da Universidade Griffith (Austrália), num comentário na mesma edição da Nature. Pela primeira vez, acrescenta, “os resultados rejeitam de forma rigorosa o realismo local”. And the winner is… a teoria quântica.

Gaiolas de diamante
“A experiência de Hanson, realizada na sequência de outras, é mais uma confirmação e uma bela confirmação da teoria quântica”, diz, por seu lado, o físico português. “E vem colocar um prego no caixão das teorias locais e realistas, mostrando que a natureza é mesmo quântica, como se suspeitava fortemente. A condição de Bell para teorias locais e realistas é claramente violada” nesta experiência.

Para fazer a experiência, os cientistas utilizaram uma espécie de “dados quânticos” que, ao serem metaforicamente atirados ao ar em dois locais diferentes, situados a grande distância um do outro, permitiam decidir se dois electrões estavam ou não entrelaçados.

Os tais “dados quânticos” eram constituídos por cristais de diamante, especialmente fabricados para o efeito em Espanha, no Instituto de Ciências Fotónicas de Barcelona (ICFO). Devido a um ínfimo defeito na sua rede cristalina, funcionam como “armadilhas”, mantendo preso no seu centro um electrão solitário.

Estes electrões começaram por ser entrelaçados por “interpostas partículas” — neste caso, fotões —, num processo dito de entanglement swapping (entrelaçamento por troca), explica ainda Carlos Fiolhais. Assim, embora os electrões nunca tenham estado fisicamente em contacto, é como se tivessem, porque os “mensageiros” (os fotões) asseguraram a comunicação entre eles.

Quanto à operação de “atirar os dados ao ar”, ela consistiu em realizar medições simultâneas do chamado spin — ou orientação — de cada um dos electrões cativos. E, ao que tudo indica, verificou-se então uma “acção fantasmagórica à distância” entre os electrões entrelaçados.

“Quando as medições [do spin dos electrões] eram realizadas [de um lado e do outro], elas pareciam de facto individualmente aleatórias”, explica, em comunicado, o ICFO. “Mas, ao mesmo tempo, concordavam muito bem entre si. Tão bem que não há forma de os electrões terem tido orientações pré-existentes [ou seja, independentes do observador], como afirma a visão realista. De facto, este comportamento apenas é possível se os electrões comunicarem entre eles, algo que é muito surpreendente, visto tratar-se de electrões presos em cristais diferentes.”

E, de facto, o mais inacreditável na experiência de Delft é que os diamantes se encontravam em edifícios diferentes... a 1,3 quilómetros um do outro. E que as medições foram realizadas a uma velocidade tal “que não dava tempo para os electrões comunicarem entre si, nem mesmo através de sinais transmitidos à velocidade da luz”, explica ainda o ICFO. Portanto, a experiência rejeita a possibilidade de uma teoria ser ao mesmo tempo realista e local, contrariando Einstein. O que coloca a possibilidade da existência de uma tal teoria, simultaneamente realista e local, num “enorme aperto”, lê-se ainda no documento do ICFO.

Isto porque a experiência indica que os electrões devem ter “comunicado” a sua orientação um ao outro. Ora, para isso acontecer, a comunicação teria de ter acontecido mais depressa do que a luz, o que, na realidade, continua a ser proibido pelas leis da física. E, como a informação não pode viajar mais depressa do que a luz, o efeito observado na experiência só pode ser explicado através de uma interacção “fantasmagórica”. Ou seja, Deus joga mesmo aos dados. Por estranho que pareça, isto significa que, no mundo das partículas, a “Lua” pode não estar lá se não estivermos a olhar para ela.

“A tal acção fantasmagórica à distância existe mesmo, como mostrou o entrelaçamento de dois electrões em diamantes à distância de 1,3 quilómetros em Delft, realizado em condições em que não há os ‘buracos’ (falhas laboratoriais) que havia em experiências anteriores”, diz-nos ainda Carlos Fiolhais. “O artigo da Nature descreve um trabalho muito bem pensado e executado, que bem pode valer um futuro prémio Nobel.”

“Mas tudo isto serve para quê?”, interroga Carlos Fiolhais. E responde: “As aplicações estão já à vista: estas experiências estão a permitir novos sistemas de criptografia, a chamada criptografia quântica, que poderão vir a substituir os actuais sistemas que dão segurança na Internet, na banca, nas comunicações, etc. A nova criptografia vai ser muito mais segura, ao revelar imediatamente a intrusão de um hacker.”

Afinal, a notícia de que a natureza é mesmo quântica talvez nem sequer fosse assim tão má para o próprio Einstein. Talvez ficasse satisfeito por saber que, mesmo quando as suas dúvidas se revelam erradas, elas têm imensas implicações — não só teóricas, mas também práticas.