Como a União Europeia impulsionou a vitória do AKP de Erdogan
Nada indica que a vitória do AKP vá facilitar as negociações sobre os refugiados, nem do processo de adesão. Pelo contrário, com o seu poder reforçado por uma maioria absoluta, o que será de antever é um subir da parada nas concessões a obter da União Europeia.
1. As negociações de adesão da Turquia à União Europeia estão num impasse. Os escassos resultados até agora produzidos são inequívocos. Uma década após abertura das negociações, os capítulos concluídos são pouco mais de 1/3 do total. Quanto aos mais complexos, estão todos ainda em aberto. Há um fraco resultado, provavelmente até um retrocesso, ocorrido nos últimos anos, em matéria de liberdades democráticas, direitos humanos e respeito pelos direitos das minorias. Não discuto aqui a quem cabem as responsabilidades do impasse. (Sobre esse assunto ver “E se a Turquia fosse membro da União Europeia?’” Público online, 19/10/2015). Nas negociações de adesão temos vindo a assistir, cada vez mais, ao regresso da realpolítik. O processo traz à mente a política amoral cruamente retratada em “O Príncipe” de Maquiavel, no Renascimento. Lembra ainda as intrincadas manobras político-diplomáticas da Prússia de Bismarck, as quais permitiram a unificação da Alemanha no século XIX. A situação é estranha, irónica e negativa para uma Europa (re)fundada em valores. Importa lembrar que as Comunidades / União Europeia, criadas após a II Guerra Mundial, foram construídas em rejeição do passado de conflito militar europeu. Mas foram também construídas em rejeição da lógica da realpolitik, vista como moralmente condenável e politicamente destrutiva. A inscrição dos já referidos valores nos Tratados é uma expressão jurídica da rejeição do passado. É, ainda, afirmação da vontade de criar, com carácter permanência, uma nova forma de fazer política, impregnada de valores fundamentais e inegociáveis. Hoje, tudo isso parece a estar a ser afastado da prática política europeia. Mais grave: a União Europeia parece disposta a ignorar a deriva autoritária do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) de Erdogan e Davutoglu. Por razões ligadas à crise dos refugiados, favoreceu até o AKP nas eleições parlamentares de 1 de Novembro. Este acabou por obter, de novo, uma maioria absoluta, com as consequências que se podem antever para os direitos humanos, liberdade plena de imprensa e direitos das minorias. Provavelmente só não terá atingido os 2/3 de deputados necessários à revisão da Constituição pelo facto do HDP (Partido Democrático do Povo), um partido de base curda, ter conseguido, contra todas as adversidades, ultrapassar a anti-democrática barreira de 10% de votos.
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1. As negociações de adesão da Turquia à União Europeia estão num impasse. Os escassos resultados até agora produzidos são inequívocos. Uma década após abertura das negociações, os capítulos concluídos são pouco mais de 1/3 do total. Quanto aos mais complexos, estão todos ainda em aberto. Há um fraco resultado, provavelmente até um retrocesso, ocorrido nos últimos anos, em matéria de liberdades democráticas, direitos humanos e respeito pelos direitos das minorias. Não discuto aqui a quem cabem as responsabilidades do impasse. (Sobre esse assunto ver “E se a Turquia fosse membro da União Europeia?’” Público online, 19/10/2015). Nas negociações de adesão temos vindo a assistir, cada vez mais, ao regresso da realpolítik. O processo traz à mente a política amoral cruamente retratada em “O Príncipe” de Maquiavel, no Renascimento. Lembra ainda as intrincadas manobras político-diplomáticas da Prússia de Bismarck, as quais permitiram a unificação da Alemanha no século XIX. A situação é estranha, irónica e negativa para uma Europa (re)fundada em valores. Importa lembrar que as Comunidades / União Europeia, criadas após a II Guerra Mundial, foram construídas em rejeição do passado de conflito militar europeu. Mas foram também construídas em rejeição da lógica da realpolitik, vista como moralmente condenável e politicamente destrutiva. A inscrição dos já referidos valores nos Tratados é uma expressão jurídica da rejeição do passado. É, ainda, afirmação da vontade de criar, com carácter permanência, uma nova forma de fazer política, impregnada de valores fundamentais e inegociáveis. Hoje, tudo isso parece a estar a ser afastado da prática política europeia. Mais grave: a União Europeia parece disposta a ignorar a deriva autoritária do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) de Erdogan e Davutoglu. Por razões ligadas à crise dos refugiados, favoreceu até o AKP nas eleições parlamentares de 1 de Novembro. Este acabou por obter, de novo, uma maioria absoluta, com as consequências que se podem antever para os direitos humanos, liberdade plena de imprensa e direitos das minorias. Provavelmente só não terá atingido os 2/3 de deputados necessários à revisão da Constituição pelo facto do HDP (Partido Democrático do Povo), um partido de base curda, ter conseguido, contra todas as adversidades, ultrapassar a anti-democrática barreira de 10% de votos.
2. O Parlamento Europeu – com a excepção notável, pela negativa, dos deputados do Partido Popular Europeu (PPE) –, teve o mérito de ter denunciado uma negociação onde os valores europeus parecem ter sido deitados para o “caixote do lixo”. Numa carta conjunta dirigida ao Presidente da Comissão Europeia, diversos eurodeputados do Grupo dos Socialistas e Democratas (S&D), dos Verdes / Aliança Livre Europeia (Verdes-EFA) dos Liberais e Democratas pela Europa (ALDE), expressaram as suas preocupações. Levantaram sérias dúvidas e reparos à forma como a Comissão deixou associar as negociações sobre a crise dos refugiados, às negociações de adesão da Turquia. Como estes referem, a procura de uma solução urgente para a actual “crise sem precedentes dos refugiados”, levou a Comissão a concordar com a oferta de um pacote de ajuda à Turquia. Este abrange um importante apoio financeiro, que poderá atingir 3 mil milhões de Euros. Inclui, ainda, compromissos na facilitação da entrada de cidadãos turcos no espaço europeu (isto é, sem vistos) e na reactivação das negociações de adesão. Conforme sublinham os eurodeputados, “a condicionalidade para o alargamento da União Europeia não deve ser um instrumento para compensar uma estratégia falhada para gerir a crise dos refugiados.” Por isso, estes insurgiram-se contra os sucessivos adiamentos na publicação do relatório anual sobre o progresso da adesão. Primeiro, a sua divulgação estava prevista para inícios de Outubro; depois foi adiada para meados do mês de Outubro; agora a publicação será só depois das eleições de 1 de Novembro. Como os eurodeputados fazem notar, essa atitude “assinala uma falta de vontade de falar sobre o retrocesso do governo turco nas reformas.” Pior ainda, “cria um mau precedente e uma imagem de que a União Europeia está disposta a suavizar o tom sobre os desenvolvimentos internos da Turquia em troca de cooperação sobre os refugiados.” (Ver o artigo “MEPs accuse Commission of using EU membership as 'bargaining chip’” publicado pelo The Parliament Magazine, 28/10/2015).
3. A Comissão Europeia está investida nas funções de guardiã do Tratados. Entre as instituições da União, tem uma particular responsabilidade em velar pelo cumprimento dos princípios, valores e regras jurídicas europeias. Não se esperava, por isso, que desse cobertura a negociações e políticas que os ignoram ou desvirtuam. Importa relembrar aqui o teor do artigo 2º do Tratado da União Europeia. O texto é muito claro ao estabelecer que a União se funda “nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.” O respeito por tais princípios e valores é, inequivocamente, também um requisito de acesso. O artigo 49º do mesmo Tratado diz que “qualquer Estado europeu que respeite os valores referidos no artigo 2º e esteja empenhado em promovê-los pode pedir para se tornar membro da União.” Assim, os referidos valores integram os critérios de adesão (os chamados critérios de Copenhaga). Tais critérios traçam as condições essenciais que um Estado candidato deve cumprir para ser membro da União Europeia. Envolvem três dimensões fundamentais. A dimensão económica, onde o funcionamento de uma economia de mercado e a capacidade para lidar com a competição e as forças de mercado são necessárias. A dimensão administrativa, que envolve a capacidade de efectivamente implementar o acervo de legislação europeia e de pôr em prática as obrigações que decorrem da pertença à União. E a dimensão política, a qual impõe a estabilidade das instituições que garantem a democracia, o primado da lei, o respeito pelos direitos humanos e a protecção das minorias. Tais negociações devem levar à implementação interna de múltiplas medidas no âmbito dos trinta e seis capítulos que estes critérios envolvem. Assim, o processo de negociações de adesão de um novo Estado implica assumir um compromisso com os valores europeus, já durante o processo de adesão. Cabe à Comissão Europeia verificar o seu cumprimento efectivo, não dissimular o seu não cumprimento.
4. Na Turquia, a eleição legislativa de 1 de Novembro era particularmente crítica para o respeito das minorais (especialmente curdos mas também alevis), para os direitos humanos e liberdade de expressão (pressões políticas e intimidações dos órgãos de informação críticos do governo) e para evitar a tentação autoritária de Erdogan em transformar a Constituição da Turquia num sistema presidencialista à sua medida. Depois do impasse em formar governo, ocorrido após as eleições de 7 de Junho último, a intensificação das clivagens da vida política turca, com o AKP apelando ao sentimento nacionalista turco contra os curdos e outros supostos inimigos, a importância destas tornou-se ainda maior. A União Europeia sabia-o bem. O mínimo que se esperava era que se abstivesse de praticar actos que pudessem favorecer o AKP no governo e a tentação autoritária de Erdogan, o Presidente da República. Mas com uma Comissão Europeia fragilizada e com um líder como Jean-Claude Juncker, contestado e à procura dum papel relevante, a fraqueza da União é explorada interna e externamente. Tal como durante a crise da Grécia e do Euro, deixou a sensação, agora em plena crise dos refugiados, de não ser mais do que uma sombra política da Alemanha e da chanceler Angela Merkel. Concordou com o plano alemão de ajuda financeira de 3,0 mil milhões de Euros à Turquia, um trunfo óbvio para Erdogan e o governo antes das eleições. Aceitou ligar as negociações dos refugiados a concessões no processo de adesão – e em facilitar os vistos –, outro trunfo usado na política interna pelo AKP. Mais grave, em arrepio dos princípios e valores europeus, deixou pairar uma “cortina de silêncio" sobre o relatório de progressos de adesão da Turquia. Pelas informações já vindas a público, o teor seria contundente em matéria de direitos humanos, liberdades democráticas e minorias. As vantagens políticas e eleitorais para Erdogan e o governo na sua não divulgação foram evidentes.
5. Por último, importa notar que não está em causa a necessidade de negociar com a Turquia sobre os refugiados. Por razões geopolíticas esta é inevitável e necessária, dado o principal fluxo chegar à União por esse território e não directamente da Síria. O que está em causa é a forma como a negociação tem decorrido. A União Europeia prestou um mau serviço a si própria e à democracia pluralista na Turquia. Os partidos mais genuinamente pró-europeus – o CHP (Partido Republicano do Povo) e os curdos do HDP –, foram prejudicados por esta perniciosa realpolitik europeia. Os grandes beneficiários foram o AKP e Erdogan. A hábil estratégia de pressão e intimidação, interna e externa, trouxe dividendos. Para Erdogan e Davutoglu a ilação a é simples: tendo trunfos na mão, os valores europeus são descartáveis. Com tudo isto, a União Europeia deixou uma imagem de intrínseca fraqueza e falta de determinação na defesa dos seus valores mais profundos, os quais deviam ser inegociáveis. Criou ainda um perigoso precedente. Mas a ironia final é que nada indica que a vitória do AKP vá facilitar as negociações sobre os refugiados, nem do processo de adesão. Pelo contrário, com o seu poder reforçado por uma maioria absoluta, o que será de antever é um subir da parada nas concessões a obter da União Europeia.
Investigador