A Turquia de mal a pior
Dois errados não fazem um certo.
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Dois errados não fazem um certo.
Aqui há uns anos, a mensagem que Merkel passou para a Turquia foi: não importa que reformas democráticas conseguirem fazer, o vosso país não entrará nunca na União Europeia. Aqui há umas semanas, a mensagem que Merkel deixou numa visita à Turquia foi: não importa quão ditatorial se esteja a tornar este país, nós podemos acelerar o processo de adesão à União Europeia.
Isto é mais do que duplamente errado, e tem consequências para todos nós. A Turquia, que foi ontem a votos com uma oposição desmoralizada, reforçou a concentração de poder em curso e o poder de chantagem do seu homem forte sobre a União Europeia.
Pouco importa que, em substância, Merkel possa dizer que não mudou. Há uns anos ela era contra a entrada da Turquia, mas o país já era candidato à União, e agora essa candidatura pode ser apressada mesmo que Merkel continue a ser oposta à adesão. O que importa é o conteúdo prático dos seus gestos políticos.
O primeiro teve um efeito devastador sobre a sociedade civil turca. Os jovens reagiram dizendo “vocês não nos querem porque somos muçulmanos, por muito europeus que sejamos”. As minorias, e especialmente os curdos, desesperaram de algum dia vir a ter um nível de proteção dos seus direitos que se equiparasse aos dos países desenvolvidos. E a própria administração turca, minada pelas suas rivalidades, pela corrupção, e pela omnipresença (real ou imaginada) do seu famoso “estado profundo” deixou de fingir que fazia qualquer coisa pelo estado de direito naquele país.
O pior efeito foi, contudo, ter cortado as amarras políticas ao então primeiro-ministro, e agora presidente, Recep Tayyip Erdogan, que tem nos últimos anos construído um estado autoritário — ou mesmo, na essência, ditatorial. Na Turquia pode ser-se preso por ler um livro, conhecer a pessoa errada ou escrever um artigo de opinião que “insulte a nação turca” — e ficar preso durante muito tempo. Conspirações reais ou inventadas permitiram ao regime manter a oposição sob suspeita permanente. Partidos que defendem as minorias e os direitos fundamentais estão sempre em risco de serem ilegalizados.
E é nesse contexto que Angela Merkel vai à Turquia e, mantendo aparentemente a sua posição, dá um sinal político de que Erdogan pode fazer o que quiser e, ainda assim, ser premiado.
O que mudou entretanto? Numa palavra: refugiados. A Europa dos governos tem com Erdogan uma relação de dependência. Pode achar o homem desagradável, mas precisa dele para conter os “fluxos migratórios” que trazem à nossa porta os problemas que estes governos prefeririam ignorar. E Erdogan faz sentir aos governos europeus que será cooperante se tiver aquilo que deseja: respeitabilidade política, vitórias externas para mostrar em casa e mais dinheiro. Três mil milhões de euros já foram prometidos, mais virão em breve.
Por que é isto importante para todos nós? Porque se o estado de direito passa a ser um detalhe no processo de adesão é a própria União que se torna insustentável: nem mercado único, nem espaço Schengen, nem fronteiras comuns resistem. Ter negado a entrada à Turquia antes fez tanto para minar a União Europa quanto acelerar agora o processo de adesão de uma Turquia que vai de mal a pior.