Turquia, uma democracia sob pressão

Erdogan convocou eleições antecipadas na esperança de conseguir a maioria absoluta que não obteve em Junho, e por causa da qual pôs o país em pé de guerra. Mas é pouco provável que os turcos votem como ele quer.

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O Presidente Erdogan está numa deriva autoritária ADEM ALTAN/AFP

A Turquia vai a votos outra vez este domingo, porque com os resultados das legislativas de Junho, o AKP, partido no poder desde 2002, fundado pelo agora Presidente Recep Erdogan, não conseguiu formar governo sozinho nem fazer uma coligação. Mas o mais provável é que com a deriva autoritária de Erdogan e sob ameaça do regresso da guerra civil contra os curdos, os turcos votem para que tudo fique na mesma – com o risco de o país se afundar ainda mais numa espiral de violência.

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A Turquia vai a votos outra vez este domingo, porque com os resultados das legislativas de Junho, o AKP, partido no poder desde 2002, fundado pelo agora Presidente Recep Erdogan, não conseguiu formar governo sozinho nem fazer uma coligação. Mas o mais provável é que com a deriva autoritária de Erdogan e sob ameaça do regresso da guerra civil contra os curdos, os turcos votem para que tudo fique na mesma – com o risco de o país se afundar ainda mais numa espiral de violência.

A guerra contra os curdos reacendeu-se durante o Verão, após um atentado na cidade de Suruç, no qual as vítimas foram 34 activistas curdos – presume-se que de bombas do grupo jihadista Estado Islâmico, como vingança por terem perdido a cidade de Kobani, no Norte da Síria. O PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) com quem a Turquia negociava a paz há anos, por iniciativa de Erdogan, enquanto primeiro-ministro, culpou o Estado turco por não garantir a segurança dos curdos, e dois dias depois matou polícias turcos.

Foi a fagulha para um enorme fogo que continua a alastrar. A Força Aérea turca recomeçou a bombardear posições do PKK, que considera uma organização terrorista, a pretexto de lançar uma guerra “contra todos os terrorismos”, mas que tem sido sobretudo contra os curdos. O Sudoeste do país, onde vive a maioria curda, regressou à guerra civil, que começou em 1984.

A leitura que é feita desta reviravolta drástica na atitude em relação aos curdos centra-se nos resultados do Partido Democrático do Povo (HDP). Pela primeira vez nas legislativas de 7 de Junho, uma formação pró-curda ultrapassou a barreira dos 10% de votos e entrou no Parlamento (teve 13%). Os 80 deputados que obteve travaram a maioria absoluta do Partido da Justiça e Desenvolvimento de Erdogan e do primeiro-ministro Ahmet Davutoglu. Não só roubaram votos ao AKP no Sudeste curdo, como conquistaram um espaço novo no espectro político turco, firmando-se com um partido de esquerda moderna, com temas como a defesa da igualdade de género, por exemplo.

“Inimigo interno”

Face a estes resultados, o AKP tem-se esforçado por transformar o partido de Selahattin Demirtas no “inimigo interno”, afirmando que o HDP é o rosto apresentável da guerrilha do PKK.

Até depois do atentado de 10 de Outubro em Ancara, quando uma manifestação pela paz foi atacada por dois bombistas suicidas, e muitas das 102 vítimas eram militantes ou simpatizantes do HDP, o primeiro-ministro incluiu na lista de suspeitos o PKK, ao lado do Estado Islâmico. Em vez de criar um sentimento de solidariedade nacional, o atentado serviu para acentuar as divisões: nem Davutoglu nem o Presidente visitaram o local. Aliás, Davutoglu, ao decretar três dias de luto nacional, sublinhou que seria “por todas as vítimas do terrorismo”, incluindo os polícias e militares mortos pelo PKK.

No entanto, a grande maioria das sondagens aponta para que o AKP de Erdogan e de Davutoglu obtenha 42 ou 43% - semelhante aos 40,7% que teve a 7 de Junho. Com estes resultados, teria uns 269 deputados dos 550 que compõem o Parlamento – bem longe dos 400 que Erdogan diz que seria “o ideal”, a pensar nos seus planos de mudar a Constituição para instituir um regime presidencialista, concentrando poderes nas suas mãos.

O sultão ainda mora aqui?

Mas o momento para realizar a ambição de se tornar o novo sultão pode já ter passado. Segundo o instituto norte-americano Pew, 56% dos turcos preferem um Governo democrático. Apenas 36% confessam a sua preferência por um “líder forte” – a imagem de marca de Erdogan. Mas hoje em dia, 51% dos cidadãos tem uma visão negativa do Presidente, eleito com 52% dos votos em Agosto de 2014.

A crescente deriva autoritária de Erdogan tem sido o seu maior inimigo.

O ex-Presidente Abdullah Gul - tal como Erdogan, fundador do AKP, mas que se afastou dele - disse esta semana ao Financial Times que considera a presença do HDP no Parlamento “positiva para a Turquia”. “Sempre acreditei que os problemas devem ser resolvidos envolvendo todas as partes, e não fazendo exclusões”, afirmou.

É uma posição bem diferente da de Erdogan e do seu primeiro-ministro, que não conseguiram formar. A Turquia é uma democracia sob alta pressão, em risco de rebentar - se os resultados forem semelhantes aos de Junho, o que acontecerá?

“Vamos perceber muito rapidamente se poderá haver um governo de coligação”, disse ao PÚBLICO o analista político turco Sinan Ülgen, do think tank Carnegie Europe, em Bruxelas, especialista nas relações da Turquia com a União Europeia e com os Estados Unidos. “As negociações não se vão arrastar tanto como da última vez, porque já muita coisa foi discutida.”

A sua perspectiva é optimista: “Se surgir uma fórmula de coligação, podemos esperar o fim da instabilidade política e da espiral negativa de instabilidade e repressão.”

Repressão dos media

Os sinais não têm sido de apaziguamento. A censura aos media e a violência contra os jornalistas acentuou-se de forma insuportável. Este ano, a Turquia está na 149.ª posição entre 180 países, atrás da Birmânia, na classificação de liberdade de imprensa dos Repórteres Sem Fronteiras. A sede do jornal de centro-esquerda Hürriyet foi atacada por uma multidão em fúria, com um deputado do AKP a liderá-la, e um comentador deste diário e da televisão CNN-Türk (do mesmo grupo) foi espancado por quatro homens, que lhe partiram vários ossos.

Só na última semana, a polícia antimotim tirou do ar à força dois canais de televisão do grupo Koza-Ipek, e impediu a publicação de dois jornais, para os quais um juiz nomeou administradores judiciais - que os transformaram em publicações favoráveis ao AKP.

Qual a justificação desta tomada de assalto? A holding de 22 empresas de que fazem parte está sob investigação de financiar “actividades terroristas” do imã Fethullah Gülen, um ex-aliado de Erdogan, mas com o qual entrou em conflito de forma espectacular. Auto-exilado desde a década de 1990 nos EUA, Gülen foi esta semana posto à cabeça de uma recém-criada lista dos mais procurados na Turquia.

Gülen é considerado suspeito de conspirar para derrubar o Governo através de actividades do chamado “Estado paralelo” - uma expressão cheia de significados na Turquia, onde nos tempos da ditadura organizações de extrema-direita ligadas aos militares raptavam e matavam pessoas consideradas incómodas. Os processos por corrupção iniciados em 2013 contra empresários e figuras do AKP, por juízes ligados à organização de Gülen - Hizmet, ou Serviço, uma espécie de Opus Dei muçulmana - são o motivo desta acusação.

UE atrasa relatório

Perante tudo isto, a Comissão Europeia atrasou a publicação do relatório anual sobre os progressos da Turquia como país candidato à adesão. Segundo a Reuters, o documento diz que Ancara andou para trás no que toca ao respeito pela lei, a liberdade de expressão e a independência dos tribunais.

O momento é delicado: a UE está a pedir ajuda à Turquia para controlar a maré de refugiados que fogem da guerra da Síria. “Quer gostemos quer não, temos de trabalhar com a Turquia”, declarou o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, em resposta a eurodeputados que levantaram questões sobre o respeito pelos direitos humanos na Turquia. “Não vamos conseguir nada” se desafiarmos Erdogan, disse ainda.

A esperança europeia é que o AKP forme uma coligação com o partido secularista CHP, uma formação social-democrata. Seria uma “grande coligação”, como a que governa a Alemanha, que poderia travar os ímpetos absolutistas de Erdogan e favorável a um acordo da UE com a Turquia para manter refugiados sírios no seu território.

“O acordo pode ser feito independentemente das condições domésticas turcas. Está a ser negociada uma maior assistência da UE para ajudar a Turquia a lidar melhor com a crise dos refugiados, em troca de facilitar as viagens de cidadãos turcos para a Europa e da revitalização das negociações de adesão”, resume o analista turco Sinan Ülgen. “Porém, a sustentabilidade a longo prazo deste programa ambicioso de cooperação aumentaria muito com um governo de coligação de base ampla, que fizesse a Turquia regressar ao caminho das reformas democráticas com apoio Ocidental”, conclui.