Um romance histórico relutante
Um livro que se recomenda sem hesitações aos apreciadores de Mia Couto, mas que pode defraudar essa recente subcategoria de leitores mais ou menos especializados em romances históricos
Na capa de Mulheres de Cinza anuncia-se que este é o primeiro livro de uma “trilogia moçambicana” intitulada As Areias do Imperador. Só na badana interior se precisa que a anunciada trilogia é “sobre os derradeiros dias do chamado Estado de Gaza” e que o imperador a que o título alude é Ngungunyane, que governou toda a metade sul do território de Moçambique no final do século XIX.
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Na capa de Mulheres de Cinza anuncia-se que este é o primeiro livro de uma “trilogia moçambicana” intitulada As Areias do Imperador. Só na badana interior se precisa que a anunciada trilogia é “sobre os derradeiros dias do chamado Estado de Gaza” e que o imperador a que o título alude é Ngungunyane, que governou toda a metade sul do território de Moçambique no final do século XIX.
Uma opção editorial sensata, já que este livro não é de todo uma biografia romanceada do rei africano que em Portugal ficou conhecido como Gungunhana. Embora referido por algumas personagens, Ngungunyane não é, ele próprio, uma personagem. O leitor sente a sua presença, mas não o vê, não o ouve falar, não sabe o que pensa.
Mia Couto já adiantou que o imperador aparecerá nos próximos volumes, mas em Mulheres de Cinza os verdadeiros protagonistas são Imani, uma rapariga de 15 anos oriunda de uma das raras tribos da região que se aliaram aos portugueses e não adoptaram a língua e os usos dos invasores VaNguni, liderados por Ngungunyane -, e o sargento Germano de Melo, um militar português que se vê desterrado em Moçambique como castigo pela sua participação na fracassada intentona republicana de 31 de Janeiro de 1891.
Reconstituir ficcionalmente o extraordinário trajecto de Ngungunyane, opondo uma espécie de versão moçambicana ao mitificado retrato que dele foi sendo construído em Portugal em sucessivos momentos, do final da monarquia à I República e ao Estado Novo, parecia um desafio adequado ao estatuto daquele que é hoje o mais reconhecido escritor moçambicano.
Mas não é bem isso que o autor faz, ou começa a fazer, em Mulheres de Cinza, um livro que se recomenda sem hesitações aos apreciadores da obra de Mia Couto, mas que pode talvez defraudar um pouco as expectativas dessa recente subcategoria de leitores mais ou menos especializados em romances históricos.
É certo que a acção decorre no final do século XIX, numa região de Moçambique disputada pelo Estado de Gaza e pela Coroa portuguesa, e que há referências a várias figuras históricas, como o próprio Gungunhana, Mouzinho de Albuquerque - o português que o derrotou e aprisionou sem saber que a sua acossada presa já praticamente se dera por vencida -, ou ainda o militar e político Henrique Paiva Couceiro, futuro impulsionador da Monarquia do Norte. Mas não há (por enquanto, já que faltam dois volumes) uma verdadeira interacção entre personagens históricas e ficcionais.
Como escritor, Mia Couto sempre preferiu as pequenas histórias humanas, vividas por protagonistas oprimidos, divididos e vulneráveis, do que a grande História, representada por figuras de dimensão épica ou heróica. Já era assim no seu marcante romance de estreia, Terra Sonâmbula, que abarca o período final da guerra civil pós-independência, e este Mulheres de Cinza não trai essa vocação.
O contexto histórico é aqui um dado de partida, recriado mais como atmosfera do que como sucessão de acontecimentos, e serve ao autor como pano de fundo para desfiar os seus tópicos de sempre: os dilemas da identidade, os conflitos de consciência, o racismo, a discriminação das mulheres, a importância da língua e dos nomes, a sobrevivência da tradição no mundo moderno, o poder poético e criativo da cultura oral, a indiferenciação entre passado e presente e entre real e maravilhoso, para referir apenas alguns dos temas mais recorrentes.
Talvez possa ainda assim observar-se que este novo romance, sem se despojar da poesia que sempre alimentou a sua prosa, se mostra bastante menos carregado - ia dizer sobrecarregado - dessa constante invenção lexical e gramatical que se tornou a imagem de marca da sua escrita.
Um leitor português tenderá a sair deste livro sem ter a certeza se acabou mesmo de ler um romance histórico, pelo menos no sentido convencional do termo. Mas a questão talvez esteja precisamente nessa convenção, que é afinal a da tradição literária europeia e ocidental, que Mia Couto sempre tentou conciliar com a invenção de uma criação literária genuinamente africana, alimentada pela tradição oral e capaz de dar voz a uma visão do mundo naturalmente mítica e poética.
Daí que este possa ser visto como uma espécie de romance histórico híbrido, no qual um relato mais racionalizado e cronológico - plasmado nas cartas que o sargento Germano de Melo envia a um superior - se vai cruzando com o muito diverso olhar dos africanos sobre as mesmas circunstâncias.
E o aspecto mais conseguido do livro talvez seja o modo como o autor consegue, recorrendo apenas ao que seria minimamente verosímil um militar escrever na sua correspondência, mostrar-nos o processo simultaneamente doloroso e jubiloso que leva o sargento português a deixar-se progressivamente contaminar pelo olhar do outro, a ponto de essa conversão a um mundo em que trânsitos invisíveis e inescapáveis unem delírio e realidade vir a receber confirmação simbólica no seu próprio corpo. Há nesta personagem de Germano de Melo, na sua progressiva desagregação interior, um pathos quase conradiano.
Já o que em Mulheres de Cinza, um romance imaginativo e inegavelmente bem construído, agrada menos ao particular gosto deste leitor - e trata-se mesmo de mera questão de gosto - é o que sempre lhe resistiu na obra de Mia Couto: algum excesso lírico, o aqui menos frequente ludismo verbal, uma certa propensão didáctica, suplementos que adoçam um pouco de mais esta prosa para quem for, digamos assim, um apreciador de vinhos secos.