Guilherme nunca deixará de ser Hamlet
Graças a Guilherme Gomes, o dia de despedida de Luis Miguel Cintra enquanto actor na Cornucópia foi “um dia de festa”. Porque pôde anunciar ao público o orgulho na escolha do seu Hamlet e garantir que os palcos ficam em boas mãos.
“Finalmente, o Hamlet!”, escreveu Sophia de Mello Breyner na tradução que entregou a Luis Miguel Cintra daquela que é provavelmente a peça maior do reportório teatral. Há muito que o fundador do Teatro da Cornucópia esperava poder deitar as mãos à obra-prima de Shakespeare que parece conter toda a vida lá dentro. É frequente dizer-se que se trata de uma peça que eclipsa todas as outras, à qual talvez só se possa suceder um vazio. Talvez por isso, Cintra escolheu a última representação de Hamlet na Cornucópia – até 15 de Novembro as derradeiras apresentações acontecem no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada – para anunciar o seu abandono dos palcos devido às dificuldades levantadas pela doença de Parkinson de que sofre.
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“Finalmente, o Hamlet!”, escreveu Sophia de Mello Breyner na tradução que entregou a Luis Miguel Cintra daquela que é provavelmente a peça maior do reportório teatral. Há muito que o fundador do Teatro da Cornucópia esperava poder deitar as mãos à obra-prima de Shakespeare que parece conter toda a vida lá dentro. É frequente dizer-se que se trata de uma peça que eclipsa todas as outras, à qual talvez só se possa suceder um vazio. Talvez por isso, Cintra escolheu a última representação de Hamlet na Cornucópia – até 15 de Novembro as derradeiras apresentações acontecem no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada – para anunciar o seu abandono dos palcos devido às dificuldades levantadas pela doença de Parkinson de que sofre.
Um outro facto, no entanto, parecia emprestar ao anúncio que partilhou com o público (ao interromper os aplausos finais) uma aura de decisão pacificada: a segurança de se retirar do teatro enquanto actor depois de ajudar Guilherme Gomes a ocupá-lo com a sua interpretação de Hamlet. Cintra diria na ocasião que o jovem actor revelava “qualidades de tal modo raras e surpreendentes” e de tal maneira se apoderou daquela personagem que o encenador confessava tornar o seu “dia de despedida destas tábuas num dia de festa”. Apanhado de surpresa, tal como os restantes actores da casa, Gomes desconfia da decisão, nem que seja pela sua firme esperança de que possa não se cumprir por inteiro. “Acho muito difícil de acontecer”, diz. “Não esperava, nem espero, que ele faça isso. Até porque, mesmo encenando, imagino que o Luis Miguel não consiga escapar à tentação de representar, mesmo que apenas diante dos privilegiados que façam parte de um espectáculo.”
À ideia que parece ressaltar das palavras de Luis Miguel Cintra de nele ter encontrado um sucessor ou, pelo menos, alguém em quem pode delegar a sua vontade de estar em palco e vê-la cumprida por um actor que seja sempre mais profundo do que qualquer extensão dos desejos do encenador, Guilherme Gomes não dá especial provimento. “Qualquer passagem de testemunho”, argumenta, “acontece comigo e com os meus colegas ao trabalharmos com o Luis Miguel porque cruzamo-nos com o pensamento dele e com a maneira de ele lidar com o teatro, com as pessoas e com o texto. O que me pode ele passar para além das coisas que me ensina? Não me pode nomear qualquer coisa.” Até porque, reforça o actor, a acção de Luis Miguel Cintra junto dos actores passa por estimulá-los na procura do seu espaço e da sua linguagem. Daí que recuse com assertividade qualquer leitura sucessória que o distinga dos demais: “Tenho a certeza de que o Luis Miguel não quereria nunca que alguém pensasse com a cabeça dele. Nem ninguém quer pensar com a cabeça de outra pessoa.”
Hamlet, portanto. Este Hamlet da Cornucópia que para Cintra passa, em larga medida, pela tomada de consciência da chegada do príncipe à idade adulta e de uma certa autodeterminação geracional, recusando ser o mandatário da vingança encomendada pelo fantasma do seu pai. “Sinto muito essas tomadas de consciência”, confirma Guilherme. “Associo-o muito a esse crescimento, a esses pensamentos que de repente o assaltam e com que começa a descobrir e a descodificar aquilo que encontra à sua volta, deixando cair algumas coisas que tinha como garantidas.” O efeito de Hamlet em si foi, assim, o de estimular a decifração do mundo através das suas próprias lentes.
Não podia ser mais evidente: quando endossa o papel de Hamlet a Guilherme Gomes, Cintra está a empurrá-lo não apenas para o lugar do protagonista mas também para um lugar de afirmação pessoal e geracional. É como uma mensagem que importa não explicitar e que convida Guilherme a agarrar com os seus recursos.
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A preparação
Guilherme Gomes, actualmente com apenas 22 anos, foi chamado pelo decano encenador pela primeira vez para integrar o elenco de Íon, de Eurípides, estreado no Teatro São Luiz em Abril de 2014. A partir daí, tornou-se uma presença regular nas produções da Cornucópia, como se estivesse silenciosamente a ser preparado para chegar até ao príncipe da Dinamarca. “Estou em crer, e não é garantido porque é uma suposição minha”, diz o actor ao Ípsilon, “que fui sendo preparado ao longo dos espectáculos. E digo isto porque a primeira vez que se falou no Hamlet foi no final do Íon. Quase que se adivinhava porque o Luis Miguel baptizou um dos monólogos como ‘ser ou não ser’. Na altura pensei nisso. Mas, na verdade, era um pensamento não pensado, uma coisa quase utópica.” Se entender cada um dos projectos seguintes como decisivos degraus de aprendizagem na escalada até Hamlet, Guilherme consegue, sem dificuldade, entrever em Íon um primeiro contacto com conflitos geracionais; em Pílades, cabendo-lhe uma personagem menos central mas com grandes períodos em cena, um treino de escuta; em Lisboa Famosa, Portuguesa e Milagrosa a transmissão clara de um texto difícil e a sua exigência física. Embora ignore se este trajecto foi desenhado desta forma por Cintra, foi nestas experiências que forjou as ferramentas fundamentais para aquilo que o texto de Shakespeare exige: “capacidade de escuta, tornar acessível um texto poético, perceber o pensamento que lhe está por detrás, a exigência em termos físicos, de agilidade e de jogo com os colegas”.
Foram estas experiências que, claramente, convenceram Cintra de que a qualidade poética – Guilherme manteve durante quatro anos no YouTube o canal Dizedor, onde declamava Ruy Belo, Herberto Helder ou Adília Lopes, entre muitos outros – do jovem actor de Viseu era a matéria de que precisava para forjar este Hamlet de rumores psicanalíticos, que deixa de ser filho para despontar como adulto, livrando-se dos preceitos morais caducos herdados pelos pais. Foi precisamente a vizinhança da linguagem da poesia sustentada pela Cornucópia que primeiro aproximou Guilherme. E não terá sido acidental que Luis Miguel Cintra lhe tenha escrito manifestando o interesse em que se juntasse à trupe da Cornucópia num Dia Mundial da Poesia. Era o início do caminho até aqui.
O mais complicado virá, talvez, agora. “Isto só tem um problema”, alertou-o o encenador ao avançar para Hamlet. “Tudo o que fizeres a seguir nunca vai ser tão interessante.” Guilherme descarta a ideia de que isso será um problema. Porque tudo o que fizer em seguida partirá do facto de ter sido, aos 22 anos, o Hamlet de Luis Miguel Cintra. “E isso não é nada desconsolador”, diz. As suas futuras personagens erguer-se-ão sempre deste espantoso chão.