Ainda há Condes de Abranhos

Basta olhar para a composição do novo Governo para verificar que o futuro ex-primeiro-ministro, acastelado no seu reduto, não quer mudar praticamente nada.

O novo Governo, anunciado há dias, parece que tem não apenas data marcada para o parto mas também ocasião afixada para o óbito. Apesar desse mais do que provável desenlace fatal, julgo que Cavaco Silva fez bem em indigitar Passos Coelho para primeiro-ministro. Não se trata, como alguns defendem, de uma perda de tempo, mas do cumprimento escrupuloso da Constituição: o Presidente exerceu a sua função ao escolher o chefe do Governo, tendo em conta os resultados das eleições para a Assembleia da República e consultando os partidos nela representados. Fez sentido – e não se trata apenas de manter uma tradição – convidar Passos Coelho, o líder do maior partido da lista mais votada, a formar governo. Mas há uma formalidade essencial, que consiste em verificar se o novo Governo dispõe, como o anterior, do apoio da maioria dos votos da Câmara, um apoio imprescindível caso surja uma moção de rejeição. A democracia funcionará em pleno quando for feita essa votação, que responsabilizará todos, tanto os deputados que votem a favor como aqueles que votem contra, a quem competirá naturalmente apresentar alternativas. Cavaco Silva terá então de optar entre manter um governo de gestão, o que parece insensato (se escolher a insensatez julgo que pouca gente ficará admirada, uma vez que o próprio já preparou esse caminho), ou convidar o líder do segundo partido mais votado a formar governo. Após um governo de quatro anos, teremos agora um dos executivos mais curtos de sempre. Vamos ver quanto tempo durará a segunda vida de Passos Coelho. Para efeitos de comparação, Adelino da Palma Carlos chefiou um governo durante 63 dias, Alfredo Nobre da Costa 85 e Pedro Santana Lopes 238. O que vem a seguir? Eu que nunca esperei ver um “elefante a voar” (foi o nome que dei, antes das eleições, a um acordo entre o PS, o BE e o PCP) cá estarei para assistir, se Cavaco deixar. Em política há surpresas.

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O novo Governo, anunciado há dias, parece que tem não apenas data marcada para o parto mas também ocasião afixada para o óbito. Apesar desse mais do que provável desenlace fatal, julgo que Cavaco Silva fez bem em indigitar Passos Coelho para primeiro-ministro. Não se trata, como alguns defendem, de uma perda de tempo, mas do cumprimento escrupuloso da Constituição: o Presidente exerceu a sua função ao escolher o chefe do Governo, tendo em conta os resultados das eleições para a Assembleia da República e consultando os partidos nela representados. Fez sentido – e não se trata apenas de manter uma tradição – convidar Passos Coelho, o líder do maior partido da lista mais votada, a formar governo. Mas há uma formalidade essencial, que consiste em verificar se o novo Governo dispõe, como o anterior, do apoio da maioria dos votos da Câmara, um apoio imprescindível caso surja uma moção de rejeição. A democracia funcionará em pleno quando for feita essa votação, que responsabilizará todos, tanto os deputados que votem a favor como aqueles que votem contra, a quem competirá naturalmente apresentar alternativas. Cavaco Silva terá então de optar entre manter um governo de gestão, o que parece insensato (se escolher a insensatez julgo que pouca gente ficará admirada, uma vez que o próprio já preparou esse caminho), ou convidar o líder do segundo partido mais votado a formar governo. Após um governo de quatro anos, teremos agora um dos executivos mais curtos de sempre. Vamos ver quanto tempo durará a segunda vida de Passos Coelho. Para efeitos de comparação, Adelino da Palma Carlos chefiou um governo durante 63 dias, Alfredo Nobre da Costa 85 e Pedro Santana Lopes 238. O que vem a seguir? Eu que nunca esperei ver um “elefante a voar” (foi o nome que dei, antes das eleições, a um acordo entre o PS, o BE e o PCP) cá estarei para assistir, se Cavaco deixar. Em política há surpresas.

Se o segundo Governo Passos Coelho findar depressa, terá, no meu entender, a sorte que merece. É, ao fim e ao cabo, uma mera continuação do primeiro, que foi recusado nas urnas pela maioria dos portugueses. O executivo que cessa funções quebrou consensos que existiam, como por exemplo aquele que unia os portugueses em prol do fortalecimento do sistema nacional de ciência. Não penso aliás que Passos Coelho tenha feito tudo o que estava ao seu alcance para obter acordos à esquerda em matérias em que eles eram altamente desejáveis. Na carta que escreveu ao PS com propostas avulsas, não incluiu o recuo na inacreditável “poda” de 50% que fez na rede de ciência e tecnologia, baseada numa avaliação eivada de erros que Nuno Crato lamentavelmente caucionou. E houve enormes “podas” noutros domínios vitais para o país. Nem antes nem depois das eleições Passos Coelho admitiu ceder de forma significativa no seu programa ultra-austeritário, que afectou negativamente a ciência e a educação, mas também a saúde e a justiça. Foi ele aliás que disse que as duas principais propostas nas eleições eram muito distintas, sendo "importante apostar num resultado que dê maioria absoluta, mesmo que seja ao PS” (Jornal de Negócios, 23/7/2015). Agora dá a ideia de que se prepara para ser oposição, esperando uma eventual convocação de eleições pelo próximo Presidente da República.

Basta olhar para a composição do novo Governo para verificar que o futuro ex-primeiro-ministro, acastelado no seu reduto, não quer mudar praticamente nada. Deixou incólume o núcleo duro da anterior governação, incluindo o “irrevogável” vice-primeiro-ministro. Dos 17 novos ministros, 12 eram antes ministros ou secretários de Estado. São, na maior parte, militantes partidários, e os que não são circulam em órbitas do PSD e CDS. Não vejo em que é que este Governo é melhor do que o anterior, que já tinha muitas debilidades. Era preciso um elã que as eleições não deram.

Entre os promovidos e os novatos, alguns nomes surpreenderam-me. Há sempre alguém para ministro. Ocorreu-me O Conde de Abranhos, a novela satírica de Eça de Queirós, em que o principal personagem é o Conde, poeta amador, que entra num governo por pouco tempo como ministro da Marinha. O ministro Abranhos torna-se um estadista que a pátria teima em reconhecer. A quem o emendou na Câmara assinalando que Moçambique não ficava na costa ocidental de África, mas sim na costa oriental, respondeu: “– Que fique na costa ocidental ou na costa oriental, nada tira o que seja à doutrina que estabeleço. Os regulamentos não mudam com as latitudes!” Escreve Eça, ou melhor Z. Zagalo, o secretário e confidente do Conde: “Esta réplica vem mais uma vez provar que o Conde se ocupava sobretudo de ideias gerais, dignas do seu grande espírito, e não se demorava nessa verificação microscópica de detalhes práticos, que preocupam os espíritos subalternos.” Ainda há Condes de Abranhos.

Professor universitário (tcarlos@uc.pt)