A falsa tese da marginalização política da extrema-esquerda
O PS, como já aqui o referi na semana passada, não pode deixar-se aprisionar por compromissos impeditivos da prossecução de uma acção reformista de que o país notoriamente carece.
1. A comunicação presidencial da semana passada teve, entre outras, a consequência nefasta de consolidar a ideia de que ao longo dos últimos 40 anos se viveu num regime de apartheid político com a exclusão dos partidos situados à esquerda do PS. Com o apoio activo de alguns sectores do Partido Socialista – nuns casos por pura má-fé, noutros por manifesto desconhecimento da nossa história democrática – os partidos da extrema-esquerda têm vindo a impor a tese segundo a qual foram objecto de uma ostensiva marginalização parlamentar de carácter não democrático. Ora isso pura e simplesmente não é verdade. E não só não é verdade, como constitui um monumental embuste directamente filiado na tradição leninista e estalinista de falsificação primária dos fenómenos históricos. Que aqueles que ainda hoje se reconhecem nessa tradição política se dediquem a tais práticas não pode constituir motivo de especial surpresa; que haja sectores do Partido Socialista dispostos a aderir acriticamente a tal tipo de procedimentos e até a participarem entusiasticamente neles já é razão para uma reacção indignada. O conceito de “arco da governação” nunca teve, da parte de quantos perfilham os princípios e valores de natureza demo-liberal, um significado ontológico ou sequer normativo. Tão-pouco ele resultou de uma vontade premeditada de exclusão de quem quer que fosse do debate político nacional. E de tal forma assim foi que em bom rigor essa exclusão jamais se verificou. Senão vejamos: os deputados do PCP e do Bloco de Esquerda – uns logo desde o início da Segunda República e os outros mais recentemente – contribuíram para a tomada de decisões parlamentares da maior relevância pública. Foram determinantes para derrubar governos, concorreram para a aprovação de legislação de inegável importância, participaram activamente no processo de fiscalização da acção executiva. Carece por isso de qualquer fundamento a proclamação em voga de que esses partidos vão agora ser resgatados a uma espécie de condição de clandestinidade parlamentar a que estariam votados.
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1. A comunicação presidencial da semana passada teve, entre outras, a consequência nefasta de consolidar a ideia de que ao longo dos últimos 40 anos se viveu num regime de apartheid político com a exclusão dos partidos situados à esquerda do PS. Com o apoio activo de alguns sectores do Partido Socialista – nuns casos por pura má-fé, noutros por manifesto desconhecimento da nossa história democrática – os partidos da extrema-esquerda têm vindo a impor a tese segundo a qual foram objecto de uma ostensiva marginalização parlamentar de carácter não democrático. Ora isso pura e simplesmente não é verdade. E não só não é verdade, como constitui um monumental embuste directamente filiado na tradição leninista e estalinista de falsificação primária dos fenómenos históricos. Que aqueles que ainda hoje se reconhecem nessa tradição política se dediquem a tais práticas não pode constituir motivo de especial surpresa; que haja sectores do Partido Socialista dispostos a aderir acriticamente a tal tipo de procedimentos e até a participarem entusiasticamente neles já é razão para uma reacção indignada. O conceito de “arco da governação” nunca teve, da parte de quantos perfilham os princípios e valores de natureza demo-liberal, um significado ontológico ou sequer normativo. Tão-pouco ele resultou de uma vontade premeditada de exclusão de quem quer que fosse do debate político nacional. E de tal forma assim foi que em bom rigor essa exclusão jamais se verificou. Senão vejamos: os deputados do PCP e do Bloco de Esquerda – uns logo desde o início da Segunda República e os outros mais recentemente – contribuíram para a tomada de decisões parlamentares da maior relevância pública. Foram determinantes para derrubar governos, concorreram para a aprovação de legislação de inegável importância, participaram activamente no processo de fiscalização da acção executiva. Carece por isso de qualquer fundamento a proclamação em voga de que esses partidos vão agora ser resgatados a uma espécie de condição de clandestinidade parlamentar a que estariam votados.
Ao longo destes 40 anos a extrema-esquerda estabeleceu como verdade axiomática o princípio de que a direita começava na sua própria fronteira e que, no fundo, não haveria substanciais diferenças entre o PS, o PSD e o CDS-PP. Recordemos como fundamentavam tal afirmação. No 25 de Novembro, o PS, aliado à direita e a sectores conservadores das forças armadas, tinha interrompido um processo revolucionário destinado à edificação de uma verdadeira sociedade socialista; ao liderar o processo conducente à adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia, o PS desvelava a sua genuína natureza de partido empenhado na consolidação de um modelo de sociedade situado nos antípodas do modelo autoritário e colectivista preconizado pelos seguidores da ortodoxia leninista pró-soviética; ao participar activamente em sucessivos processos de revisão constitucional, visando a depuração da lei fundamental de uma ganga pró-marxista manifestamente alheia aos caminhos democraticamente escolhidos ao longo de sucessivos actos eleitorais, o PS foi identificado com os adversários dos “valores de Abril”.
Perante tudo isto não é de espantar que a extrema-esquerda nunca tenha votado senão contra todo e qualquer projecto de Orçamento do Estado apresentado pelos vários governos socialistas e nunca tenha manifestado a mais ligeira aproximação sempre que estiveram em causa votações relacionadas com a adesão e participação de Portugal no projecto europeu. Bem pelo contrário. Nessas ocasiões usaram de uma retórica extremista com o intuito de apoucar as legítimas opções feitas pelo Partido Socialista. Fizeram-no impiedosamente, atacando o esforço bem sucedido de construção e ampliação do Estado social que constitui património da nossa democracia e factor de promoção da liberdade e da igualdade. Como tal, só é possível extrair uma conclusão séria: a extrema-esquerda parlamentar optou deliberadamente – com uma legitimidade, de resto, inatacável – por um acantonamento político impeditivo de qualquer participação não só na esfera estrita da governação, como no horizonte mais vasto de definição das grandes prioridades nacionais. Não foi excluída: auto-excluiu-se em nome da fidelidade a um modelo de regime e de organização económica e social claramente repudiado pela maioria dos cidadãos portugueses. Tentar inverter a situação releva de despudorado cinismo político. Seria bom que alguns actuais deputados do Partido Socialista que andam por aí levianamente a proferir barbaridades olhassem com mais rigor para a história do partido que conjunturalmente representam.
2. Há quem, mesmo reconhecendo todas estas divergências passadas e não embarcando nesta operação de falsificação histórica, saliente como muito positiva a possibilidade agora entreaberta de celebração de um acordo governativo de incidência parlamentar entre os vários partidos da esquerda. Um dos argumentos mais respeitáveis que têm sido utilizados é o de que só com esta aliança será possível garantir a preservação do Estado social, o qual se teria transformado num alvo prioritário a abater por parte dos partidos da direita. Se no passado, em nome da defesa da liberdade e da consolidação da democracia representativa, se justificara um entendimento preferencial com esses partidos, agora, pelo contrário, dever-se-ia privilegiar um diálogo à esquerda em nome do princípio premente da igualdade. O argumento enferma pelo menos de duas insuficiências notórias. Desvaloriza absolutamente a importância das divergências permanecentes à volta de questões tão importantes como a política europeia e desconsidera a necessidade de adopção de políticas económicas centradas na preocupação de atracção do investimento e do estímulo à iniciativa empresarial. O PS, como já aqui o referi na semana passada, não pode deixar-se aprisionar por compromissos impeditivos da prossecução de uma acção reformista de que o país notoriamente carece. Essa acção reformista tem de se manifestar desde logo no âmbito do Estado social como condição necessária à sua salvaguarda. Basta recordar como a extrema-esquerda reagiu aos ímpetos reformadores exibidos por Correia de Campos e por Maria de Lurdes Rodrigues nas áreas da Saúde e da Educação para percebermos o alcance desta afirmação. Como se sabe, ambos foram acusados de tenebrosos intentos neoliberais, quando apenas visavam garantir a viabilidade e a modernização do Estado social nas áreas que tutelavam. Nessa altura, pelo menos, a separação de águas era clara.
No ambiente de crispação que estamos a viver é difícil impor os pontos de vista de quem continua a pensar que é ao centro que se podem alcançar os entendimentos verdadeiramente virtuosos de que a sociedade portuguesa precisa. Não é isso, porém, razão para desistirmos de lutar por aquilo que estamos convencidos ser o caminho mais correcto a trilhar por um partido de centro-esquerda como é o Partido Socialista.