Não é só o Estado Islâmico que usa o património como propaganda. Assad fez o mesmo

Dois arqueólogos, um israelita e um francês que viveu na Síria até 2011, reflectem sobre a destruição de património e as acções de propaganda do autodesignado Estado Islâmico. O que está a acontecer é catastrófico, mas não é novo. O Presidente sírio também fazia dos monumentos bandeiras.

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A Guerra da Síria tem marcado a actualidade. E não é só pela violência dos confrontos nem pelo papel que tem na crise dos refugiados. No último domingo, a acção do autoproclamado Estado Islâmico (EI) voltou a ser notícia – desta vez, os extremistas mataram três pessoas na antiga cidade de Palmira, atando-as a colunas que depois fizeram explodir. O que ganham em fazer de uma cidade património mundial palco de execuções? Que papel têm a destruição e o saque de sítios arqueológicos da Síria e do Iraque na estratégia de controle destes radicais islâmicos? E que medidas pode - e deve - tomar a comunidade internacional para impedir que tanta história desapareça?

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A Guerra da Síria tem marcado a actualidade. E não é só pela violência dos confrontos nem pelo papel que tem na crise dos refugiados. No último domingo, a acção do autoproclamado Estado Islâmico (EI) voltou a ser notícia – desta vez, os extremistas mataram três pessoas na antiga cidade de Palmira, atando-as a colunas que depois fizeram explodir. O que ganham em fazer de uma cidade património mundial palco de execuções? Que papel têm a destruição e o saque de sítios arqueológicos da Síria e do Iraque na estratégia de controle destes radicais islâmicos? E que medidas pode - e deve - tomar a comunidade internacional para impedir que tanta história desapareça?

Estas e outras perguntas estão na base de discussões que têm preenchido páginas de jornais e animado debates nas redes sociais e nos círculos culturais e académicos. Portugal não é excepção. Até porque o problema é de todos, e não apenas de sírios e iraquianos, lembraram dois especialistas que passaram recentemente por Lisboa.

Foi na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, em Lisboa, que o francês Michel al-Maqdissi, responsável pela Arqueologia na Direcção Geral de Antiguidades e Museus de Damasco até 2011, falou sobre O Património Cultural e a Guerra na Síria. O arqueólogo, que ocupou durante 11 anos um cargo que lhe permitiu estar próximo das principais figuras do regime sírio, não poupa críticas à política cultural do Presidente Bashar al-Assad — “A Síria não tem um bom político que tome uma boa medida para proteger e reabilitar o património. Antes do conflito, o regime usava os monumentos e as antiguidades como propaganda”.

Em 2008, Damasco foi nomeada Capital da Cultura Árabe. Maqdissi decidiu então organizar uma exposição sobre a história da arqueologia síria e, para isso, contactou uma petrolífera francesa para pedir financiamento para a exposição e conseguiu-o. Depois ligou para o Museu do Louvre, em Paris, para pedir emprestada uma escultura que estava em exposição e também foi bem sucedido. Certo dia, Asma al-Assad, a primeira-dama da Síria, decidiu pôr fim aos projectos de Maqdissi, porque, dizia ela, era preciso "algo mais grandioso". E nenhuma exposição foi feita.

O episódio foi contado por Michel al-Maqdissi ao PÚBLICO depois da conferência. O arqueólogo de 55 anos vê o uso do património cultural enquanto propaganda como uma característica comum entre o regime sírio e o autodesignado EI. É o que se tem visto nos vídeos e fotografias lançados ao ritmo das destruições, e em particular nas últimas semanas, em Palmira. “O EI está a usar Palmira como propaganda”, afirma.

Itzick Shai, arqueólogo israelita que no início de Outubro deu uma conferência sobre a destruição provocada por este grupo de extremistas na Fundação Calouste Gulbenkian, vai mais longe. Olha para a divulgação dos ataques ao património cultural como uma estratégia propagandista, mas também “performativa”. E compara o EI, que define como uma organização terrorista “fascista”, aos nazis: a destruição do património cultural é, tal como foi para os nazis, uma forma de controlar o poder político. “Em 1939, antes do regime Nazi, viviam na Polónia cerca de três milhões de judeus. Hoje, vivem apenas alguns milhares. A maioria dos que sobreviveram ao Holocausto não ficou na Polónia porque os Nazis destruíram as suas comunidades, as suas sinagogas e os seus cemitérios. Destruíram a ligação que os judeus tinham com a Polónia.”

Maqdissi estabelece um paralelo semelhante ao de Itzick Shai. O arqueólogo é cristão — pertence a uma minoria que na Síria corresponde a apenas 10 % da população - e, por esse motivo, nunca chegou formalmente a director, apesar de ter sido o responsável por todas as grandes decisões na Direcção de Antiguidades e Museus de Damasco no que à arqueologia dizia respeito. “A minoria cristã sempre se viu oprimida pelo regime. Agora, os cristãos são oprimidos também pelo Estado Islâmico. Os nazis fizeram o mesmo”, diz. Tal como Shai, Maqdissi lembra que os nazis também destruíram património judeu. O que o EI está a fazer não é nada de novo, defende.

O património e a guerra

A verdade é que, por mais mediáticas que sejam as suas intervenções, o EI não é o único responsável pela devastação do património sírio e iraquiano. Pilhagens e escavações ilegais em busca de antiguidades para venda na Europa e nos EUA são praticadas por todos os envolvidos na Guerra da Síria. Na semana passada, um estudo realizado pela Universidade de Dartmouth (EUA) e publicado na revista Near Eastern Archaeology veio prová-lo. Através da análise de imagens de satélite de 1300 sítios arqueológicos na Síria, o estudo mostra que é nas áreas controladas pelas milícias curdas YPG (Unidades de Protecção do Povo), que mais locais têm sido pilhados - 27.6%. Nas regiões sob o controlo das forças de oposição foram 26.6% os sítios arqueológicos saqueados e o EI aparece em terceiro lugar com 21.4 %. Em último lugar está o regime sírio: 16.5 % dos sítios arqueológicos sob seu domínio foram devassados.

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A acção do EI é, no entanto, a mais noticiada. Isto porque, associada às pilhagens e às explosões de templos e outras estruturas, os extremistas divulgam provas dos seus raids de destruição nas redes sociais. Provas que depois passam nas televisões de todo o mundo em horário nobre. A sua intervenção no museu de Mossul e nas cidades milenares de Nimrud e Hatra, todos no Iraque, foram particularmente "espectaculares", com militares a partirem estátuas de grandes e pequenos formatos, representando diversas divindades. O arqueólogo Itzick Shai explica que, como rejeitam tudo o que foge à sua interpretação do islamismo, estes radicais praticam uma certa “iconoclastia” (rejeição do culto das imagens) e pretendem “destruir toda e qualquer idolatria”.

Muito já se perdeu, é certo, mas muito se conseguiu salvar também. Juan Luis Montero, arqueólogo da Universidade da Corunha que participou na mesa redonda que se seguiu à conferência de Michel al-Maqdissi, revelou que 300 mil objectos foram retirados de 34 museus sírios e levados para um “lugar seguro e desconhecido”, segundo dados da Direcção Geral de Antiguidades e Museus de Damasco.

A lógica e a acção do EI

Ana Pinto, docente do departamento de Estudos Políticos da Nova, que também participou na mesa redonda, sublinha que o EI quer destruir símbolos da identidade colectiva, que se opõem à sua própria identidade. A sua acção é um “instrumento de exercício de poder e de reconhecimento, dentro de uma lógica de ‘eu sou capaz de fazer isto e vocês não me podem impedir’”.

Irina Bokova, directora-geral da UNESCO, o braço cultural das Nações Unidas, disse em Paris há algumas semanas que os militantes do EI destroem símbolos do passado porque “têm medo da história”. Michel al-Maqdissi discorda: “O EI não tem medo da história. Precisa, sim, de arranjar pretextos para fazer propaganda. Não há uma explicação lógica para a sua acção sem ser a propaganda. Faz tudo pela propaganda.”

Apesar das pilhagens, Maqdissi desvaloriza o lucro proveniente do tráfico de antiguidades e esclarece que o financiamento principal da actividade destes terroristas advém da venda de petróleo, gás e algodão. “O algodão, em particular, é muito facilmente contrabandeado e há muitas marcas que o usam nos seus produtos. A camisa que estou a usar pode ter algodão sírio contrabandeado pelo EI, quem sabe.”

O arqueólogo considera “inquietante” o silêncio da comunidade internacional perante a acção do radicais islâmicos. Também Itzick Shai questiona essa passividade, criticando em particular o “desinteresse” das Nações Unidas em proteger os sítios arqueológicos. Entretanto, o anúncio feito pelo ministro da Cultura italiano, Dario Franceschini, de que a UNESCO vai pôr os capacetes azuis - a força de paz da ONU - a proteger o património, motivada pelos ataques a Palmira, respondeu finalmente às preocupações destes arqueólogos e de vários defensores do património. Para já, contudo, tudo não passa de um plano.

Palmira, o "toque sírio"

Michel al-Maqdissi, Itzick Shai e Juan Luis Montero destacam, entre outros, Nimrud, Nínive e Hatra, no Iraque, e Dura-Europos, Mari e Alepo, na Síria, como os mais importantes sítios arqueológicos destruídos pelo EI. Mas é ao falarem de Palmira, onde os radicais tem concentrado os seus ataques nos últimos meses, que os arqueólogos mais se demoram e parecem não ter palavras suficientes.

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Itzick Shai define Palmira como um “oásis no deserto sírio” e lembra que foi uma “povoação próspera no período helénico, conquistada depois pelos romanos”, um ponto de paragem obrigatório das caravanas que faziam a Rota da Seda. Atribui a singularidade da cidade à sua “multiculturalidade, prova de que muitas pessoas diferentes podem viver juntas, no mesmo local”.

Foi em Palmira que Maqdissi fez o seu último trabalho de campo na Síria, em 2011. Recorda com um sorriso a surpresa que a cidade proporciona quando se vai de carro de Damasco ou de Hama e de repente, no deserto, "se vêem aquelas ruínas tão bem conservadas”. Considera Palmira “um sítio único na região, muito importante” porque “os edifícios são do período clássico, mas não são como os edifícios da Grécia antiga em Atenas, por exemplo. Têm um estilo especial – têm influências ocidentais e orientais. É uma mistura, um resultado perfeito de elementos com origens diferentes”. E acrescenta: “Palmira é o ‘toque sírio’, é o símbolo da identidade síria.”

Quanto a uma eventual destruição de todas as ruínas da antiga cidade, à sombra da qual existe hoje outra, Itzick Shai é cauteloso: “Há muitas ruínas que não têm nenhuma ligação a deuses pagãos e que, por esse motivo, [os extremistas] não devem ter interesse em destruir." Maqdissi é menos optimista. “Palmira vai ser completamente destruída. O próximo alvo é o tetrápilo [monumento de planta quadrada com uma porta em cada um dos lados] e depois o teatro”, garante, lamentando em seguida: “Claro que o Estado sírio, os Estados Unidos da América e a Rússia podiam fazer alguma coisa para tirar o EI de Palmira, mas não faz parte da agenda deles...”

O que fazer agora?

“Temos de travar os mercados ilegais, pôr guardas a proteger os lugares arqueológicos e levar as populações locais a fazerem-no também. Além disso, devemos documentar a sua história e aumentar a consciencialização pública para o problema e para a importância do património cultural em geral e destes sítios arqueológicos em particular”, defende Itzick Shai. Realça ainda que a situação em Palmira está a influenciar a forma como os governos olham para o património e o valorizam. "O Departamento de Estado norte-americano já começou a financiar as Escolas Americanas de Investigação Oriental com muito dinheiro para, entre outras coisas, documentarem os danos infligidos ao património”, exemplifica o arqueólogo israelita que acredita na reconstrução no pós-conflito.

Michel al-Maqdissi mostra-se mais contido: “A consciência e a forma como a comunidade internacional e os governos olham para o património não vai de todo mudar depois da Síria. Isto já aconteceu antes no Afeganistão e no Iraque e nada mudou.” E não considera a reconstrução uma solução viável: “Eu sou contra a reconstrução do Templo de Bel [o principal de Palmira], por exemplo. Não podemos fazê-lo. Temos o plano, está tudo documentado, mas não será a mesma coisa construído em betão. O templo de Baal-Shamin é impossível de refazer. A pedra original perdeu-se, foi tudo completamente destruído.”

Tanto Itzick  Shai como Michel al-Maqdissi defendem que estes crimes contra o património têm de ser julgados. Contudo, Shai confessa não saber se será isso que irá travar ataques futuros porque, diz, “o fanatismo dos radicais é muito profundo”. Maqdissi, por sua vez, não tem dúvidas: tal como se fez nos Julgamentos de Nuremberga, "pode-se enforcar os culpados, mas nada se pode fazer quanto ao que se perdeu. Os crimes vão continuar a ser cometidos”. Para o arqueólogo, que vive em Paris há três anos e hoje é investigador na secção de Arqueologia do Médio Oriente no Louvre, a solução passa por “ajudar os estudantes no pós-conflito, porque são os jovens que vão fazer o futuro da Síria”.

 

Texto editado por Lucinda Canelas