Sobre a aliança à esquerda
É a recusa da agenda das políticas de defesa do Estado social pela direita que torna impossível qualquer entendimento entre PS e PSD.
A possibilidade de um acordo entre o PS, o BE e o PCP para a formação de um governo com apoio parlamentar à esquerda foi considerada pelos seus críticos, numa primeira fase, como ilegal e inconstitucional, depois como ilegítima do ponto de vista político. Mais recentemente, têm surgido no debate público novos argumentos invocando a necessidade de (1) respeitar as tradições de funcionamento do nosso regime democrático, (2) proteger a participação de Portugal na União Europeia e na NATO e (3) proteger a democracia e a liberdade ameaçadas pela natureza antidemocrática e antiliberal do PCP e do BE.
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A possibilidade de um acordo entre o PS, o BE e o PCP para a formação de um governo com apoio parlamentar à esquerda foi considerada pelos seus críticos, numa primeira fase, como ilegal e inconstitucional, depois como ilegítima do ponto de vista político. Mais recentemente, têm surgido no debate público novos argumentos invocando a necessidade de (1) respeitar as tradições de funcionamento do nosso regime democrático, (2) proteger a participação de Portugal na União Europeia e na NATO e (3) proteger a democracia e a liberdade ameaçadas pela natureza antidemocrática e antiliberal do PCP e do BE.
1. Devo confessar que não costumo ter grande respeito pelo argumento da tradição, quando usado independentemente da avaliação da sua bondade. A tradição de termos apenas governos apoiados pelo PS, o PSD e o CDS e a tradição de empossar governos sem apoio parlamentar maioritário não eram boas práticas. É preciso lembrar e compreender a sua origem e as razões por que estão a mudar. Os acordos não escritos que vigoraram, desde os primeiros governos constitucionais, entre o PS e o PSD, foram necessários para proteger a governabilidade do país sem a qual teriam sido muito mais difíceis a construção da democracia e do Estado social e o desenvolvimento do país nos 40 anos que se seguiram ao 25 de Abril. Contudo, esses acordos têm estado a ser violados desde 2009. Os vários episódios de convergência negativa que culminaram com o chumbo do PEC IV e a queda do Governo minoritário do PS foram o primeiro sinal de que a utilidade daqueles acordos estava esgotada. O segundo e mais definitivo sinal foi o abandono do estatuto de partido de protesto pelo BE e pelo PCP.
2. O PS é um partido europeísta e esteve na linha da frente de todos os passos que demos para a integração plena na Europa. Foi uma integração não só política e económica como social, com expressão no aumento dos níveis educacionais dos jovens, no desenvolvimento científico, na melhoria das condições de vida, na proteção do emprego e nos cuidados de saúde. Uma longa história de políticas públicas democráticas, demasiadas vezes subestimada, tornou Portugal e os portugueses mais europeus. Numa aliança liderada pelo PS não estão em causa nem aqueles desenvolvimentos, nem a saída da NATO, da União Europeia ou do euro. É verdade que BE e PCP têm propostas programáticas críticas em relação à União Europeia, nas quais a maioria dos portugueses provavelmente não se revê. Contudo, os próprios dirigentes do BE e do PCP declararam já, por diversas vezes, que estes temas não estão em causa numa coligação de esquerda. E a possibilidade de coabitação de orientações europeístas e eurocéticas numa coligação de governo não é uma ilusão: no Reino Unido permitiu quatro anos de governação pela aliança entre conservadores e liberais. A questão não é essa. O que nos deveria preocupar não são os riscos de virmos a sair da União Europeia ou do euro por pressão da esquerda, mas os riscos das mudanças que nos últimos tempos estiveram na origem de uma nova Europa que exclui, trata mal e desvaloriza uma parte dos seus Estados-membros. Cresce, também por isso, o número de cidadãos que não se reconhecem nas instituições europeias, como crescem sentimentos difusos de rejeição de uma Europa mais nacionalista e desigual, também em Portugal. Devia fazer-nos refletir o facto de um milhão de portugueses terem votado no PCP e no BE, isto é, em partidos que têm posições críticas sobre a União Europeia.
3. No debate sobre alianças à esquerda, têm sido lembrados episódios da história da nossa democracia dos tempos do PREC, como a intervenção de Melo Antunes contra a ilegalização do PCP ou o comício do PS na Alameda. Em 1974 e 1975 estiveram em causa a liberdade e a democraticidade do regime. Hoje, a liberdade não está em causa em Portugal. O contexto internacional mudou, a União Soviética desapareceu, integramos a União Europeia, a nossa democracia está consolidada. O que hoje está em causa em Portugal é a igualdade como valor social. Igualdade que é posta em causa por um modelo de desenvolvimento económico assente em baixos salários e na desqualificação dos recursos humanos, bem como na degradação das condições de trabalho de milhões de portugueses e na destruição de serviços públicos e de prestações sociais. O que está em causa é a necessidade de diminuir as desigualdades sociais e económicas. O que está em causa é a defesa do Estado social, construído com o esforço de muitas gerações de portugueses e que, pela mão da coligação de direita, está em risco de desmantelamento.
A agenda das políticas de defesa do Estado social opõe hoje, como nunca no nosso passado recente, esquerda e direita. É a recusa daquela agenda pela direita que torna impossível qualquer entendimento entre PS e PSD. E é a necessidade de a concretizar que torna desejável e urgente a aliança à esquerda hoje possível.
Ex-ministra da Educação