Sedução falhada
O futuro não se constrói com ressentimento e vingança, mas com grandeza, o que aqui parece faltar.
Duvido que o Doutor Cavaco Silva tivesse antecipado todos os efeitos do seu gesto de hostilidade aos partidos da esquerda. Não se entende o porquê de tamanha agressão. Na verdade, anunciar que não conta com os partidos à esquerda do PS para as funções normais da vida política, nomeadamente para a constituição de governos, afastando-os da mesa constitucional parece longe do senso comum. Mas o Presidente não se ficou por aqui. Lançou uma tentativa de sedução-sedição aos deputados socialistas que estivessem dispostos a rebelarem-se contra a liderança. Pior ainda, açulou os mercados a ladrarem e morderem o pequeno e frágil País a cuja República preside. A resposta do sistema político foi a incredulidade, a rejeição liminar da atitude, e um coro enfraquecido e pouco convicto dos tenores do PSD e do CDS. A resposta dos partidos da nova maioria foi demolidora: se tinham dúvidas sobre a coligação, esqueceram-nas; se estavam titubeantes na parceria, tornaram-se lázaros que dispensam muletas; se estavam mudos passaram a audaciosos opositores ao Presidente; se tinham receios passaram a afoitos; se temiam cisões fratricidas, esqueceram o risco e suturaram feridas. Poucas vezes se viu o imediato impacto de uma peça política tão contrário ao que pretendia o emissor. Se não passámos a reconhecer o Doutor Cavaco como socialista militante, passámos a ver nele, ao menos, o grande aglutinador e o principal ator do processo político de união das esquerdas. O PS, relutante em moção própria de rejeição, passou a propô-la. Se receava no Parlamento uma derrota anónima para Ferro Rodrigues presidir, ou pelo menos uma arrastada negociação em várias votações inconclusivas, reconheceu na vitória à primeira um poder que quase ignorava. De nada valeram os remoques: que a proposta ia contra a tradição, que Ferro deveria ter engolido em silêncio a injúria presidencial, que doravante o Parlamento passava a estar de risco ao meio, apesar de ter mais cabelo do lado esquerdo. Dos argumentos de vitória eleitoral da coligação já pouco mais resta que a retórica pomposa de Portas a roçar o ridículo. Até os media, finalmente, parece terem caído em si e realizado que tudo mudou. Habituar-se-ão a nova distribuição de poder. E como se alimentam de notícias, depressa reconhecerão que agora elas nascem à esquerda. São as regras da fisiologia do poder.
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Duvido que o Doutor Cavaco Silva tivesse antecipado todos os efeitos do seu gesto de hostilidade aos partidos da esquerda. Não se entende o porquê de tamanha agressão. Na verdade, anunciar que não conta com os partidos à esquerda do PS para as funções normais da vida política, nomeadamente para a constituição de governos, afastando-os da mesa constitucional parece longe do senso comum. Mas o Presidente não se ficou por aqui. Lançou uma tentativa de sedução-sedição aos deputados socialistas que estivessem dispostos a rebelarem-se contra a liderança. Pior ainda, açulou os mercados a ladrarem e morderem o pequeno e frágil País a cuja República preside. A resposta do sistema político foi a incredulidade, a rejeição liminar da atitude, e um coro enfraquecido e pouco convicto dos tenores do PSD e do CDS. A resposta dos partidos da nova maioria foi demolidora: se tinham dúvidas sobre a coligação, esqueceram-nas; se estavam titubeantes na parceria, tornaram-se lázaros que dispensam muletas; se estavam mudos passaram a audaciosos opositores ao Presidente; se tinham receios passaram a afoitos; se temiam cisões fratricidas, esqueceram o risco e suturaram feridas. Poucas vezes se viu o imediato impacto de uma peça política tão contrário ao que pretendia o emissor. Se não passámos a reconhecer o Doutor Cavaco como socialista militante, passámos a ver nele, ao menos, o grande aglutinador e o principal ator do processo político de união das esquerdas. O PS, relutante em moção própria de rejeição, passou a propô-la. Se receava no Parlamento uma derrota anónima para Ferro Rodrigues presidir, ou pelo menos uma arrastada negociação em várias votações inconclusivas, reconheceu na vitória à primeira um poder que quase ignorava. De nada valeram os remoques: que a proposta ia contra a tradição, que Ferro deveria ter engolido em silêncio a injúria presidencial, que doravante o Parlamento passava a estar de risco ao meio, apesar de ter mais cabelo do lado esquerdo. Dos argumentos de vitória eleitoral da coligação já pouco mais resta que a retórica pomposa de Portas a roçar o ridículo. Até os media, finalmente, parece terem caído em si e realizado que tudo mudou. Habituar-se-ão a nova distribuição de poder. E como se alimentam de notícias, depressa reconhecerão que agora elas nascem à esquerda. São as regras da fisiologia do poder.
Há quem diga que a decisão que Cavaco teria já tomado de nunca dar posse a Costa apoiado à esquerda teria efeitos para memória futura. Se assim for, tentou ler um jornal com binóculos. O futuro não se constrói com ressentimento e vingança, mas com grandeza, o que aqui parece faltar. O que mais surpreende em Cavaco, não é a mercearia de cartucho. O que mais nos intriga é a falta de visão de futuro, de perspectiva do País na Europa e no Mundo. Cavaco tratou este assunto como uma dona de casa alimenta galinhas: dá milho às que considera poedeiras e farelo às restantes. Assim nunca terá ovos das segundas.
E agora? Cavaco insinua, sem ser explícito, que recusará o governo de Costa e entronará Passos em governo de gestão. O que significaria meses de espera, de instabilidade, de protesto, de não-resposta à Europa, de alibis decisórios em temas que não esperam. Recorre-se ao Tribunal Constitucional a cada lei canhestra e arrogante? Retomam-se os cortes ou abatem-se desde já, por omissão? Mantém-se o sistema fiscal intocado ou afina-se? Financiam-se os hospitais por duodécimos ou modelam-se os recursos segundo o desempenho? Sancionam-se os dirigentes que violam no quotidiano a regra dos compromissos, ou muda-se a lei? Mantém-se o sistema de pensões tal como está, ou tenta-se algum aperfeiçoamento? Corta-se a gasolina aos aviões da Força Aérea, ou aceitamos as obrigações internacionais de cooperação militar? Saímos com os submarinos, ou deixamo-los acostados no Alfeite? Nomeiam-se os altos cargos da República por consenso, ou atrasa-se tal nomeação? Preferimos gastar os recursos de Bruxelas na agricultura ou no terminal do Barreiro? Usamos os fundos para crescimento e emprego ou continuamos a desperdiçá-los no alindamento das estatísticas? Em cada sector as alternativas confrontar-nos-ão.
Um governo de gestão não governa, flutua. Sem rumo, o País deixa de ter comando interno, de ter voz externa, de pensar, de prever o futuro. Instabilidade governativa gera incerteza económica, fuga do investimento, menos emprego. Em breve faltará o pão, culpa exclusiva dos que não respeitam as regras do jogo. Goste-se ou não de quem ganha, a democracia é o governo das maiorias.
Mas a alternativa tem que ser sólida. Os acordos têm que ser passados a escrito. Nada está acordado até tudo ser acordado, como se aprende em qualquer manual de negociação. O programa económico do PS, tão apreciado ele foi, pode ser certamente negociado, mas não desfigurado. Os limites são para cumprir. Se a relutância de muitos Portugueses assenta nos compromissos internacionais, pois então o acordo tem de ser explícito nessa matéria, não pode tomar a omissão por consentimento. Quanto ao compromisso temporal, claro que não são exigíveis cheques em branco, nem anos de fidelização como nos contratos de telecomunicações. Mas o tempo é elemento essencial da estabilidade. Tempo e vinculação, sem duplicidades. Entre gente séria não pode haver ambiguidades.
Professor catedrático reformado