O Brasil tem um novo herói: um juiz anticorrupção
A operação Lava-Jato revelou o maior escândalo de corrupção da história do Brasil. Pela primeira vez, grandes empresários estão na prisão pela prática de suborno. Vários políticos estão na mira das investigações. Revolução ou cruzada anti-PT?
“Sérgio Moro? Ele representa a figura do herói nacional para mim.” Sentada no sofá do seu apartamento em Ipanema, a engenheira Ana Paula de Lacerda Paiva, 43 anos, faz uma pausa, como se pensasse no que acabou de dizer. “A gente só conhece o homem público, não é? Espero que ele não bata na mulher!”, diz, referindo-se ao juiz que no último ano e meio tem exposto a intrincada teia de corrupção política e empresarial na operação Lava- Jato. O riso mais sonoro na sala não é brasileiro, talvez porque os brasileiros se tenham habituado a esperar o pior de quem ocupa cargos públicos.
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“Sérgio Moro? Ele representa a figura do herói nacional para mim.” Sentada no sofá do seu apartamento em Ipanema, a engenheira Ana Paula de Lacerda Paiva, 43 anos, faz uma pausa, como se pensasse no que acabou de dizer. “A gente só conhece o homem público, não é? Espero que ele não bata na mulher!”, diz, referindo-se ao juiz que no último ano e meio tem exposto a intrincada teia de corrupção política e empresarial na operação Lava- Jato. O riso mais sonoro na sala não é brasileiro, talvez porque os brasileiros se tenham habituado a esperar o pior de quem ocupa cargos públicos.
“O Congresso é um antro de bandidos. O presidente da Câmara [de Deputados] é corrupto. O presidente do Senado é corrupto”, diagnostica o marido de Ana Paula, Raimundo Sampaio Neto, 63, professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
“Infelizmente, o Brasil não tem partidos políticos – apesar de serem 32. Tem uns grupos de pessoas que se juntam para defender os próprios interesses. Cada um vota de acordo com o que receber. A não ser os partidos radicais, onde você identifica um pensamento partidário, os outros são uma massa cinzenta”, diz Raimundo. “Não tenho partido. Sou contra a corrupção.”
No Brasil é comum a ideia de que a corrupção é endémica – isto é, depois de ter desembarcado no Rio de Janeiro juntamente com a Coroa portuguesa –, permeando todos os poderes e sectores da sociedade. Como pensar de outra forma, quando os escândalos se repetem, quando as manchetes sérias dos jornais parecem rivalizar com noticiários humorísticos (Estado de São Paulo: “Eduardo Cunha tem Porsche em nome de Jesus.com”), quando é habitual políticos serem investigados pela polícia por clientelismo, lavagem de dinheiro, peculato, enriquecimento ilícito, fuga ao fisco?
“Não adianta sequer o cara se confessar culpado, porque vão soltar ele”, nota Raimundo.
“Um cara no 'mensalão' [escândalo da compra de votos no Congresso pelo partido no Governo, o PT] foi fotografado com dólares na cueca! O Collor foi retirado da presidência e hoje é um político de prestígio e, mais uma vez, envolvido em falcatruas.” O ex-Presidente Fernando Collor de Mello, que se viu forçado a renunciar ao seu mandato em 1992 por corrupção política e que hoje é senador, faz parte da meia centena de políticos investigados no âmbito da operação Lava-Jato, que expôs uma rede criminosa de subornos, falsos concursos públicos e lavagem de dinheiro envolvendo as maiores empresas do país, incluindo a petrolífera estatal Petrobras, que teve o seu boom durante os Governos de Lula da Silva.
“É outro problema da nossa democracia. É muito pouco resistente a subornos”, sentencia Raimundo.
O "mensalão" foi considerado o maior caso de corrupção da história do Brasil – até surgir a Lava-Jato. Mas a Lava-Jato surge como a última esperança de que “as coisas realmente mudem”. Desde logo, trouxe uma novidade: pela primeira vez, altos executivos de multinacionais como as construtoras Odebrecht e a Andrade Gutierrez foram detidos.
Marcelo Odebrecht, presidente do grupo com o mesmo nome e um dos homens mais ricos do Brasil, encontra-se em prisão preventiva desde Junho e na última semana viu o seu pedido de libertação ser recusado pelo Supremo Tribunal Federal. “Isso é uma revolução. Há dez anos, se você falasse que Marcelo Odebrecht poderia ir para a cadeia, eu diria: você está tendo delírios. Isso nunca vai acontecer”, diz uma jornalista de São Paulo. O recurso a subornos para fazer negócios nunca antes tinha corrido mal. A Lava-Jato tem um forte potencial moralizador, ao desafiar esse modelo de corrupção. Dezena e meia de empresas estão a ser investigadas e o seu desempenho económico está a ser afectado. Talvez seja irrealista esperar que a Lava-Jato acabe de vez com a corrupção, mas pode, pelo menos, mostrar que a impunidade não é total.
“A Lava-Jato é a possibilidade de uma Justiça mais actuante. É um exemplo que pode ou não virar uma tendência. Não sabemos ainda”, diz Joaquim Falcão, professor de Direito Constitucional e director da FGV Direito Rio. Tudo depende de como o processo termine, o que ainda parece longe. “O país está apreensivo e optimista.”
Uma Justiça branda
Com o "mensalão", pela primeira vez os brasileiros viram políticos serem condenados e presos por corrupção – o que aconteceu tão recentemente quanto 2010. “Mas como o sistema penal e judicial no Brasil é muito frouxo, se você for bem-comportado, pode sair depois de cumprir um sexto da pena. Se for sentenciado a 12 anos, pode sair em dois anos por bom comportamento”, nota David Fleischer, cientista político e professor da Universidade de Brasília, um norte-americano naturalizado brasileiro.
Alguns políticos condenados no escândalo do "mensalão" passaram a cumprir pena em regime semiaberto: podem trabalhar fora durante o dia, voltando à prisão apenas para dormir. José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil no primeiro Governo de Lula, identificado como o mentor do "mensalão", foi condenado a uma pena de prisão de quase 11 anos, mas ainda nem cumprira um ano quando passou para prisão domiciliária. Foi de novo detido em Setembro deste ano, pelo seu alegado envolvimento no escândalo da Lava-Jato.
Uma das singularidades do sistema brasileiro – “que norte-americanos e europeus não entendem”, frisa Fleischer – é que acusações de crime envolvendo deputados e senadores, ministros, Presidência da República e outras autoridades nacionais só podem ser julgadas pelo Supremo Tribunal, contrariando o princípio democrático de que todos são iguais perante a lei. “Surpreende-me os directores de grandes empresas ainda estarem presos”, diz Raimundo sobre a Lava-Jato. “Isso já mostra que a classe política é mais forte do que a classe empresarial. Não tem quase políticos presos.”
A investigação que diz respeito aos empresários e intermediários no esquema de corrupção da Lava-Jato tem sido mais veloz do que a que tem seguido as ramificações políticas do escândalo. A primeira tem a sua base em Curitiba, capital do estado do Paraná, no Sudeste brasileiro, abaixo de São Paulo – e, sobretudo, longe da influência política de Brasília – e é levada a cabo por uma task force de procuradores do Ministério Público e polícias federais comandados pelo juiz Sérgio Moro, especializado em crimes financeiros e lavagem de dinheiro e um estudioso da operação Mãos Limpas em Itália, cujas estratégias tem procurado aplicar na condução da Lava-Jato. Uma delas é a fuga de depoimentos e provas para a imprensa e a ampla exposição mediática do processo – reforçada pela disseminação nas redes sociais –, garantindo o apoio da opinião pública e impedindo as figuras investigadas de travar o trabalho judicial.
“Os brasileiros estavam indignados com a evidência da corrupção e com a impunidade. Evidentemente que aderiram a esses juízes pela coragem e pela inovação”, diz Joaquim Falcão. “Nunca se aplicou a delação premiada – comum noutros países, nomeadamente nos Estados Unidos – como se está aplicando no Brasil hoje.”
A delação premiada, que consiste na atribuição de condições penais mais vantajosas a um réu que aceite colaborar com a investigação e denunciar terceiros, passou a ter um novo enquadramento legal em 2013 e configura-se como um importante instrumento no combate aos crimes de colarinho branco. Algumas destas medidas são polémicas no meio jurídico, o que revela até que ponto Moro e a sua equipa introduziram novidades neste tipo de investigações.
“O que está acontecendo é que, de há uns tempos para cá, a Justiça foi renovada por pessoas jovens”, diz Ana Paula Paiva. “São pessoas preparadas, com uma certa sede de justiça e de mudança do statu quo.” Sérgio Moro tem 43 anos. Os procuradores do Ministério Público que trabalham com ele têm idades entre os 28 e os 50. Ana Paula refere-se ao coordenador, Deltan Dallagnol, 34, como “um menino do Ministério Público”. “Você olha para a cara dele e ele não parece ter mais de 30 anos.”
A origem social desta nova geração de investigadores, incluindo os delegados da Polícia Federal, é um factor a ter em conta: fazem parte da “pequena burguesia que chega ao poder, com forte sentimento moralizante e conservador”, disse o advogado Lenio Streck ao El País Brasil.
Cruzada anti-PT?
Sérgio Moro, em particular, é um herói dos brasileiros que se dizem indignados com o statu quo político e económico do Brasil e que clamam pelo destituição da Presidente Dilma Rousseff a todo o custo. “Nós sentimo-nos representados por ele”, diz Raimundo Sampaio Neto. Nas manifestações de protesto contra o Governo que ocorreram nas principais cidades brasileiras nos últimos meses, entre gritos de “Fora Dilma!” e um boneco insuflável de Lula vestido como um recluso, tornou-se habitual verem-se cartazes de apoio a Moro (“Je suis Moro”, “Moro, não nos abandone”). Uma sondagem realizada em Setembro pelo Instituto Paraná de Pesquisas revelou que 71,5% dos brasileiros consideram que a investigação da Lava-Jato é positiva para o país; 21,4% têm uma opinião negativa.
Os apoiantes do partido no Governo desconfiam das intenções políticas por trás da operação. Oposição e frente anti-PT parecem frustrados por a Lava-Jato ainda não ter atingido mais directamente Dilma e Lula.
“A oposição está de saco cheio do PT no poder e sabe do potencial que Lula tem para se eleger em 2018”, diz Patrícia Froes, documentarista, 31 anos. “O caso da Lava-Jato visa criminalizar o PT, não tenho dúvidas sobre isso. Ele está sendo usado por quem não aceita o resultado das últimas eleições para desestabilizar a democracia no Brasil”, acusa.
"Estamos vivendo um momento muito nebuloso e de muito ódio. As pessoas têm muita raiva. No ano passado, durante a campanha eleitoral, eu era a única, entre os meus amigos, que saiu à rua com uma T-shirt do PT porque estava grávida e sabia que não me iam bater.” Segundo ela, o processo da Lava-Jato e a forma como é tratado na imprensa brasileira contribuem para o clima de ódio e pessimismo que o país atravessa.
“A imprensa é muito responsável por esse sentimento de que o Brasil está muito mal. A cobertura que a imprensa dá à Lava-Jato é diferente se for um político do PT ou de outro partido. Não dão um vigésimo da cobertura e do espaço que dão quando o suspeito é um político do PT. Se o Moro estivesse prendendo um monte de políticos que não fossem do PT, não acho que ele teria a projecção que tem.”
Patrícia Froes votou em Dilma e é “superpetista”. “O brasileiro é o único povo que, se estivesse todo o mundo dentro do mesmo avião, iria torcer para que caísse porque odeia o piloto. Existe uma torcida muito grande para que tudo dê errado.”