Todos serão culpados

Não me lembro, depois do PREC, de uma crise tão profunda e tão angustiante como esta que hoje vivemos.

1. Estamos hoje para lá do pior dos cenários que conseguíamos imaginar há uma semana. O Presidente decidiu lançar fogo à tenda, onde já ninguém se entendia. Cavaco tinha e tem o direito e o dever de lembrar aos principais partidos políticos que há coisas inegociáveis, como o destino europeu do país sufragado em todas as eleições, do qual PCP e BE se auto-excluíram. Desse destino faz parte a pertença ao euro, que está hoje no centro da integração europeia. A opção estratégica pela Europa envolve igualmente uma componente atlântica, que sempre fez parte da nossa identidade (mesmo que ultimamente bastante descurada pela coligação). Relembrar isto tudo seria útil. Transformar isto tudo numa bomba sem retardador, que apenas serviu para agudizar as divergências e as frustrações, era tudo aquilo que não se esperava de um Presidente em fim de mandato, que conseguiu a proeza de ser o mais impopular da democracia. O seu discurso pode, talvez, incluir-se numa série de outros nos quais parece haver mais motivações “pessoais” e os respectivos ajustes de contas do que propriamente uma visão estratégica. O Presidente está sempre a lembrar que é o político que mais anos exerceu funções cimeiras: 10 anos em São Bento e outros tantos em Belém. Essa experiência devia ter-lhe permitido de forma muito mais eficaz criar as condições para um entendimento entre os dois maiores partidos, feito com convicção e com discrição. Não foi assim. A sua comunicação ao país teve 122 palavras a mais (confio plenamente nas contas de Paulo Ferreira), que conseguiram piorar ainda mais a crise pós-eleitoral e oferecer de bandeja a António Costa a unidade do PS em torno de uma opção necessariamente controversa. A Assembleia abriu as portas em clima de enorme crispação. Ninguém sabe o que acontecerá depois de o Parlamento rejeitar o programa do Governo da coligação.

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1. Estamos hoje para lá do pior dos cenários que conseguíamos imaginar há uma semana. O Presidente decidiu lançar fogo à tenda, onde já ninguém se entendia. Cavaco tinha e tem o direito e o dever de lembrar aos principais partidos políticos que há coisas inegociáveis, como o destino europeu do país sufragado em todas as eleições, do qual PCP e BE se auto-excluíram. Desse destino faz parte a pertença ao euro, que está hoje no centro da integração europeia. A opção estratégica pela Europa envolve igualmente uma componente atlântica, que sempre fez parte da nossa identidade (mesmo que ultimamente bastante descurada pela coligação). Relembrar isto tudo seria útil. Transformar isto tudo numa bomba sem retardador, que apenas serviu para agudizar as divergências e as frustrações, era tudo aquilo que não se esperava de um Presidente em fim de mandato, que conseguiu a proeza de ser o mais impopular da democracia. O seu discurso pode, talvez, incluir-se numa série de outros nos quais parece haver mais motivações “pessoais” e os respectivos ajustes de contas do que propriamente uma visão estratégica. O Presidente está sempre a lembrar que é o político que mais anos exerceu funções cimeiras: 10 anos em São Bento e outros tantos em Belém. Essa experiência devia ter-lhe permitido de forma muito mais eficaz criar as condições para um entendimento entre os dois maiores partidos, feito com convicção e com discrição. Não foi assim. A sua comunicação ao país teve 122 palavras a mais (confio plenamente nas contas de Paulo Ferreira), que conseguiram piorar ainda mais a crise pós-eleitoral e oferecer de bandeja a António Costa a unidade do PS em torno de uma opção necessariamente controversa. A Assembleia abriu as portas em clima de enorme crispação. Ninguém sabe o que acontecerá depois de o Parlamento rejeitar o programa do Governo da coligação.

2. Talvez valha a pena, para entender melhor o que está em causa, deixar de pensar como nos habituámos a pensar antes da crise financeira internacional e da Grande Recessão que se lhe seguiu. A crise não alterou apenas os termos da economia europeia, mas levou a profundas mudanças políticas, que se traduzem, em maior ou menor grau, na quebra dos grandes partidos europeus e na ascensão de novas forças políticas nacionalistas, populistas, xenófobas e extremistas, que têm em comum a rejeição da Europa e que se constituem como as únicas alternativas às opções determinadas pela necessidade de salvar o euro nos termos definidos por Berlim. Essa resposta com uma só saída afectou ainda mais os países que tiveram programas de resgate, sujeitos a duras medidas de austeridade, que aceitaram como o preço a pagar para garantir a sua permanência no euro, mas que deixaram feridas económicas e sociais profundas.  Já conhecemos esta história bem demais e já pagámos boa parte do preço. Entretanto, o mundo à nossa volta entrou em convulsão, desafiando directamente a Europa na Ucrânia, no terrorismo ou no barril de pólvora do Médio Oriente. Mas hoje, como ontem, nem vale a pena imaginar o que seria Portugal desligado da União e do euro, deixado à sua pequena sorte, incluindo no mundo de língua portuguesa onde o Brasil e Angola querem mandar. É no espaço europeu que se joga de novo o nosso interesse estratégico, numa altura em que a Europa joga também o seu destino e as previsões não são as melhores.

As crises acumulam-se e agravam-se a uma velocidade incompatível com a capacidade de resposta europeia. Nos Balcãs, milhares de refugiados correm o risco de viver mais uma tragédia, quando as temperaturas se começam a aproximar de zero. Ao ponto de Jean-Claude Juncker ter convocado uma mini-cimeira europeia para hoje, em Bruxelas, com a presença da Alemanha e dos países mais afectados, incluindo os balcânicos que estão a ser usados como corredores. Em Berlim, Merkel tenta não perder o controlo de uma estratégia que só lhe fica bem e ao seu país, mas que está a ter consequências inesperadas. Não são apenas as críticas internas em tom cada vez mais alto que a chanceler tem de enfrentar, mas o número cada vez maior de actos de violência contra os refugiados. A cimeira europeia do passado dia 15 serviu-lhe de pouco no que respeita ao seu objectivo de dividir o fardo de forma mais equilibrada. Teve de ir a Ancara convencer o Presidente Erdogan, na sua actual deriva autoritária e nacionalista, a permitir fazer a triagem in loco aos mais de 2 milhões de refugiados que estão na Turquia. Levou o livro de cheques mas também uma reviravolta na sua anterior oposição à entrada da Turquia na União Europeia. Não houve a mínima coerência na política externa da União em relação à Turquia, que ocupa o centro de uma região mergulhada em conflitos, que afecta directamente a Europa. Mas, mais uma vez, ninguém se salvará sozinho nesta tempestade. Nem a Alemanha nem, muito menos, nós.

3. Também não é por acaso que em Berlim, Paris ou Varsóvia (para já não falar dos países de Leste) reaparece um debate sobre a identidade, que precisa de ter uma resposta positiva. Merkel não deixou esta dimensão fundamental de parte, lembrando que a Alemanha sempre se viu como um país que não era destino de imigração (as necessidades económicas eram resolvidas com os “trabalhadores convidados”) e que tem hoje de se preparar para integrar milhares de cidadãos de outras culturas e outros costumes. François Hollande agarra-se, também ele, à noção de identidade (que, na França, não tem o mesmo sentido que na Alemanha, assentando na igualdade republicana de todos os cidadãos), para encontrar uma plataforma eleitoral que não o condene a ser um Presidente de um só mandato e lhe permita uma resposta consistente a Marine Le Pen. No Reino Unido é o que se tem visto. Na Polónia, oito anos de governo da Plataforma Cívica com resultados visíveis (o país passou a pesar de forma real e positiva no concerto europeu e conseguiu passar a crise com crescimento e emprego) parecem não servir de nada. Os polacos vão hoje às urnas para dar à vitória ao Partido nacionalista e eurocéptico Justiça e Liberdade. Este é talvez o maior desafio que a Europa enfrenta e nem vale a pena erguer fronteiras ou preferir uma Europa homogénea e cristã, pela simples razão de que o mundo não se pode rebobinar. Bem ou mal, as sociedades europeias vão ter de saber integrar muita gente que vem de fora, sob pena de se transformar num belíssimo museu.

4. Habituámo-nos a confiar que o vendaval político não nos atingiria, garantindo a razoável resistência do sistema partidário à crise. Mero engano. A geração que tomou conta do PSD em 2010 era, por ideologia, muito mais à direita do que o velho PSD, de matriz social-democrata. Como se viu nos últimos quatro anos, essa viragem ajudou a bloquear qualquer entendimento com o PS. Por sua vez, a dose de austeridade que tivemos de suportar acabou por empurrar o PS para a esquerda, na busca de uma alternativa dentro do euro, deixando vazio um espaço central que sempre sustentou um entendimento estratégico entre PS e PSD. A crise pós-eleitoral veio abrir ainda mais o fosso que os separa. Mas isso não quer dizer que o PS não continue a ser um partido profundamente empenhado na Europa e que não seja sua intenção respeitar as regras do jogo em Bruxelas. É o PS garantia suficiente? Em matéria europeia, sem qualquer dúvida. São os seus parceiros totalmente confiáveis? Não. Falta ainda ao líder socialista apresentar, preto no branco, um programa que dê garantias assentes em “boas contas”, independentemente das cedências que teria sempre que fazer aos seus parceiros de extrema-esquerda (algumas bastante lamentáveis no que respeita por exemplo à reforma das leis laborais). Falta um pequeno pormenor: vai o Presidente dar-lhe posse? Ninguém sabe.

Nunca deveríamos ter chegado aqui. Não me lembro, depois do PREC, de uma crise tão profunda e tão angustiante como esta que hoje vivemos. Se as coisas correrem mal, todos serão culpados.

Jornalista