Um governo de gestão tem os poderes que conseguir justificar
Acórdão do Tribunal Constitucional de 2002 diz que seria "altamente inconveniente" limitar o governo aos actos de gestão corrente e defende que as decisões devem ser justificadas por serem inadiáveis e absolutamente necessárias.
Um governo de gestão não está limitado por uma lista de poderes plasmados na lei, mas antes pela necessidade que tem de tomar determinadas decisões num momento exacto e pela forma como as conseguir justificar. A conclusão é de um acórdão do Tribunal Constitucional (TC) de 2002, em que os juízes consideram que um governo demitido não tem “nenhuma limitação” nos actos legislativos que pratica, frisando que o “critério decisivo” é o da “estrita necessidade da sua prática” – ou seja, se é algo “inadiável” e absolutamente “necessário”.
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Um governo de gestão não está limitado por uma lista de poderes plasmados na lei, mas antes pela necessidade que tem de tomar determinadas decisões num momento exacto e pela forma como as conseguir justificar. A conclusão é de um acórdão do Tribunal Constitucional (TC) de 2002, em que os juízes consideram que um governo demitido não tem “nenhuma limitação” nos actos legislativos que pratica, frisando que o “critério decisivo” é o da “estrita necessidade da sua prática” – ou seja, se é algo “inadiável” e absolutamente “necessário”.
A Constituição define que, “antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o governo limitar-se-á à prática dos actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”. Que actos são esses e quem define exactamente os seus limites? O próprio governo, diz o constitucionalista Tiago Duarte, da Universidade Nova de Lisboa.
“O primeiro juiz do que é inadiável é o próprio governo, que faz essa apreciação. Fará os actos de governo que achar inadiáveis. Se o Presidente tiver dúvidas sobre leis ou decretos-lei, pode enviar para o TC aferir da constitucionalidade desse seu poder. E essa avaliação é feita em torno do que é adiável ou inadiável.” É ao executivo que cabe, por isso, justificar, na própria legislação, as decisões que toma. E isso poderia ir das decisões simples até a uma tentativa de Orçamento.
“O interesse público pode reclamar a prática inadiável, por exemplo, de actos legislativos; limitar a competência do governo demitido à prática de actos de gestão corrente – sabendo-se, além do mais, que a existência de governos com competência diminuída se pode arrastar no tempo – seria, pois, altamente inconveniente”, diz também o acórdão do TC.
Ora, o arrastar de um governo demitido é precisamente um dos cenários temidos, já que o Presidente da República deixou no ar a ideia que não estará disponível para nomear um executivo de esquerda depois da rejeição do programa da coligação de direita. E não tem, por lei, imposições de prazos.
Se não o fizer, o governo poderá manter-se em gestão até que possa haver novas legislativas em Junho? O constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos prefere não pensar nisso. Um governo de gestão é uma “solução transitória, um acidente e não uma solução governativa”. Num quadro de “conflito aberto entre o Presidente e o Parlamento, seria grave para o país entrarem numa guerra e o Presidente usurpar os poderes da Assembleia e optar por um governo de gestão da coligação”, em vez de permitir uma solução de esquerda. O jurista antevê “consequências gravíssimas para a economia e as finanças” e considera que seria um “crime de responsabilidade política do Presidente”.
Governo de iniciativa presidencial?
Tiago Duarte diz que Passos Coelho não pode recusar ficar em gestão, se essa for a decisão de Cavaco. Mas o politólogo António Costa Pinto considera “muito difícil forçar um governo a aguentar tanto tempo”, mesmo que encontre artimanhas, como um pedido de reformulação do programa rejeitado. Por isso, diz, a alternativa é um governo de iniciativa presidencial. O problema será a "bipolarização" no Parlamento e na sociedade, antevendo-se meses de contestação.
A possibilidade de um governo de iniciativa presidencial já não consta na Constituição desde o início dos anos 80, mas essa é uma ideia que anda na cabeça de alguns analistas. Porém, teria sempre de fazer passar o seu programa na Assembleia da República, o que levaria a que uma decisão da primeira figura do Estado fosse colocada à votação do Parlamento.
Para Pedro Bacelar de Vasconcelos, esta “não é uma hipótese séria a considerar” e diz mesmo que seria “um golpe de Estado”. “A experiência portuguesa diz-nos que esses são governos falhados; acabaram todos em eleições antecipadas.” O politólogo André Freire também rejeita tal solução, argumentando “não ser democrática” e ser um “quadro contrário ao interesse nacional” por manter o país “congelado” quase um ano em “medos e incertezas” nos sectores político, económico e financeiro.
Em 2013, aquando da crise governativa da demissão “irrevogável” de Paulo Portas, o Presidente da República afastou a ideia do recurso a um governo de iniciativa presidencial, argumentando com a revisão constitucional de 1982, em que os executivos passaram a responder perante a Assembleia da República – ou seja, não faria sentido o chefe de Estado indicar agora um governo que depois teria recusa certa no Parlamento.
OE em duodécimos
O acórdão de 2002 foi uma resposta ao pedido de fiscalização de Jorge Sampaio ao decreto do Governo de António Guterres sobre um novo regime de organização hospitalar, quando já tinha pedido a demissão – o Presidente queria saber se o executivo ainda podia fazer este tipo de legislação. O TC acabou por concordar que era uma medida “estritamente necessária” naquela altura, já que estava inscrita no Programa de Estabilidade e Crescimento para 2002-2005, apresentado a Bruxelas no ano anterior.
Não havendo um Orçamento do Estado (OE) aprovado para arrancar a 1 de Janeiro de 2016, isso significa que o actual Orçamento, feito para 2015, se mantém em vigor no próximo ano e que o país, como já aconteceu em diversas ocasiões, passa a ter uma execução orçamental em regime de duodécimos. Na prática, o que acontece é que a despesa realizada por cada organismo durante um mês não pode ultrapassar um duodécimo da despesa total prevista no OE para todo o ano. Ao nível da receita, mantêm-se as taxas de impostos previstas no OE 2015.
No entanto, nem todas as medidas previstas no OE do ano passado continuam em vigor. A Lei de Enquadramento Orçamental prevê três excepções. A primeira tem que ver com as autorizações legislativas que, de acordo com a Constituição, caducam no final do ano económico a que respeita a lei. Depois, ainda segundo a LEO, não se continua a aplicar “a autorização para a cobrança das receitas cujos regimes se destinavam a vigorar apenas até ao final do ano económico a que respeitava aquela lei”. Nesta excepção podem ser incluídas a sobretaxa de IRS e a CES, por exemplo. A última excepção tem que ver com a realização de despesas relativas a programas que é suposto extinguirem-se no final do ano.
No actual cenário, há ainda a considerar a despesa com salários que, devido a legislação aprovada fora do OE e que vigora apenas até ao final de 2015, foi sujeita a cortes durante este ano. Esses cortes, em princípio, deixam de vigorar em 2016.